Dez anos

2398 Words
Sara mergulhou em um tranquilo mundo sem sonhos e despertou com um agradável calor em sua mão, junto com caricias na palma, fazendo sua pele se arrepiar a partir daquele ponto. Abriu os olhos sorrindo, esperando ver seu namorado ao seu lado. Assustou-se e afastou a mão ao ver, em pé ao seu lado, um desconhecido alto, de porte imponente, vestindo blusa social branca, calça risca de giz e paletó do mesmo material. — Vim o mais rápido que pude — ele disse os olhos cor de carvão analisando Sara de um modo intenso e estranho. Encolheu-se no leito, levantando o lençol até o pescoço. Não notando, ou não ligando, para o medo refletido em seus gestos, o homem inclinou-se. Apavorada por perceber que ele planejava beija-la, mesmo com o corpo fraco e mole, em um ato de proteção, Sara espalmou as mãos no tórax do estranho e o emburrou. — Ainda zangada? — Ele deslizou os dedos pelo cabelo curto, o tom seco evidenciando o desagrado com a atitude dela. — Sara, vamos parar com essa briga estúpida. — Não sei do que o senhor esta falando. Nem te conheço — revidou assustada com o jeito que ele falava com ela e com a tentativa de beija-la. Confuso, o homem a encarou fixamente como se quisesse ler seus pensamentos. Uma pressão no peito de Sara a fez arfar, sua garganta ardia e tinha uma vontade intensa de chorar. Desesperada por ter um estranho em seu quarto, em pânico Sara olhou ansiosa ao redor, identificando Silvia sentada perto da janela. — Por favor, chame a minha madrinha — pediu apavorada, apontando o homem ao seu lado. — E leve esse senhor com você. Silvia olhou de um para o outro com olhos arregalados, abria e fechava a boca, mas nada dizia e nem fazia o que lhe foi pedido. Sara estava a ponto de gritar com a enfermeira quando Tatiana entrou no quarto. — Madrinha... — Sara chamou sentindo-se sem ar e trêmula. Tatiana foi para perto, examinando-a. Percebendo que Sara olhava apavorada para o homem parado observando-a, pediu: — Rodrigo, me espere em minha sala. O estranho titubeou, a expressão fechada fitando Sara. Exasperada com a resistência do homem em fazer o que pediu, Tatiana praticamente o colocou para fora do quarto e, depois de fechar a porta, retornou para o lado de Sara. — Quem era aquele homem? Ele tentou me beijar. — Querida, descanse um pouco. Daqui a pouco conversaremos — Tatiana prometeu antes de deixa-la em companhia da enfermeira. Dessa vez, incomodada com a estranha visita, não conseguiu fazer o que lhe foi pedido. Estava em um hospital e, com exceção de Tatiana, estava sem nenhum de seus conhecidos por perto. Olhou para as flores, cartões e ursos no quarto, sinal de que tivera visitas. — Silvia, por favor, pegue aqueles cartões pra mim. A enfermeira rapidamente pegou todos e levou até ela. Sara abriu cada um, eram cinco no total. Um era de Laura, sorriu ao lembrar-se da amiga de infância. Estranhou que a assinatura dela e os desejos de melhoras vinham junto ao nome Júlio. O único rapaz que conhecia com esse nome era um colega delas do colégio, por quem Laura era secretamente apaixonada. Estavam juntos, agora? Quanto tempo passou desacordada? O que perdeu nesse tempo? Inspirou e espirou para conter a aflição que fazia suas mãos tremerem e um frio subir por sua espinha. Abriu o segundo cartão, não havia assinatura e a mensagem era estranha, sobre ela ter conseguido o palco que sempre desejou. Os outros dois tinham mensagens genéricas dos próprios cartões com a assinatura de Rodrigo Montenegro. Reconhecendo o nome que Tatiana usara com o estranho, perguntou-se quem seria. Um médico? Amigo de sua mãe? Mas, se assim era, por qual motivo tivera coragem de tentar beija-la? — Só tem esses? — perguntou para a enfermeira, estranhando não ver cartões assinados por seus amigos do colégio, por sua mãe e nem pelo namorado. Silvia remexeu entre os vasos e ursos, depois confirmou que eram os únicos. Afundou a cabeça o travesseiro, respirou fundo e pediu a si mesma calma, logo Tatiana retornaria e perguntaria tudo sobre seu estado, o tal acidente e pediria pra acharem sua mãe. Tinha quem manter a calma até Tatiana voltar com respostas, se exigiu fitando o teto, os dedos batendo impacientes no colchão. ~*~ Andando de um lado para o outro do escritório de Tatiana, Rodrigo Montenegro tinha todos os pensamentos voltados para a esposa. Quando recebera a notícia que Sara despertara, através da enfermeira que contratou, largou o trabalho e dirigiu para o hospital o mais rápido que lhe era permitido por lei. Encontrava-se ansioso em rever os brilhantes olhos esverdeados e resolver definitivamente os problemas entre eles. Devido ao que ocorrera antes do acidente, não esperava uma recepção calorosa. Mas o que vira estampado na face dela não fora raiva ou ressentimento, longe disso. Sara parecia ter medo dele e não reconhecê-lo. Podia ser fingimento. A esposa tinha a péssima mania de transformar tudo em uma tragédia grega. Mas, por qual motivo ela fingiria não conhecê-lo? A resposta apareceu veloz e na voz furiosa da esposa antes do acidente. “Te amar é o maior erro da minha vida”. Aquelas palavras tinham perturbado seus dias e noites, pois se sentia culpado pela constante instabilidade dela. O amor obsessivo da esposa o sufocava, mas jamais desejou vê-la machucada e inconsciente em um leito de hospital. Ouviu o barulho da maçaneta e observou com ansiedade Tatiana entrar na sala, que ela ocupava como diretora do hospital particular Santana, situado no centro da capital paulista. — O que Sara têm? — questionou colocando-se na frente da médica. Mesmo compreendendo a angústia de Rodrigo, afinal, ele tinha grande parte da culpa pelo que ocorrera, Tatiana não gostou do jeito que lhe abordou, como um policial interrogando um criminoso. Se o gênio do Montenegro era r**m o seu era pior, porém decidiu colocar Sara a frente de suas diferenças. — Farei alguns exames para ter certeza, mas, previamente, creio que está com perda parcial de memória; — Seu tom era profissional e distante, quando por dentro estava preocupada. — É comum após um longo tempo inconsciente, principalmente se levarmos em conta o forte estresse na hora do acidente e o ferimento na cabeça. — "Por sua culpa", pensou em acrescentar, mas se conteve. Esse tipo de acusação não ajudaria à afilhada. Não simpatizava com Rodrigo. Por causa dele Sara perdera o amor próprio e passara a viver para agradar o marido, mesmo que significasse esquecer que também precisava ser agradada. Duvidava que a afilhada soubesse o que era ser amada de verdade. — Comum? Como perder a memória pode ser considerado comum? — Em alguns casos a memória volta em algumas semanas, meses... — A voz profissional falhou fazendo Rodrigo a encarar interrogativo. Percebeu que havia algo a mais que Tatiana evitava contar. Toda aquela situação, formada ao ser comunicado que sua esposa saíra em alta velocidade da sua empresa, o deixava nervoso, estressado e, não conseguia mais negar, preocupado. — Se tem algo a dizer, o faça logo — ordenou, o tom imperativo de um homem acostumado a ser obedecido. Tatiana sentou em sua poltrona marrom e apontou a cadeira a sua frente, indicando que ele também sentasse. Rodrigo o fez visivelmente irritado. — Devo prepara-lo para o fato de que pode demorar anos para isso ocorrer. A informação fez Rodrigo gelar. — Ela nunca se lembrará de nada? — Só parte da memória foi apagada, o que aumenta as chances de que logo se recorde de tudo ou boa parte do que esqueceu. Algo lhe dizia que não iria gostar da resposta, mesmo assim perguntou: — O quanto ela esqueceu? — Dos últimos dez anos. E não gostou mesmo. Há dez anos, ele, seu tio Mathias e seu irmão Izaque, se mudaram da capital de São Paulo para uma pequena cidade do interior do estado chamada Cezário. Lá conheceu várias pessoas, entre elas, Sara, sua esposa. — Dez anos? Ela não se lembra de mim?! "Bela conclusão, Montenegro", pensou Tatiana, gostando de ver a expressão normalmente indiferente ficar surpresa, confusa e até um pouco apavorada. — Temos de ter esperanças — aconselhou. Rodrigo se levantou furioso e bateu o punho fechado na mesa de Tatiana. — Esperanças? Estou tendo essa merda de esperança há dias. Estou farto de ouvir todos me dizendo para ter esperanças. A diretora do hospital também se levantou irada. Não era obrigada a aturar os ataques daquele esnobe que se achava o dono do mundo, nem ao menos gostava dele, então não precisava ser gentil. — Compreendo seu nervosismo, mas se descontrolar não ajuda em nada — praticamente gritou. — Sara vai precisar de nós, todos nós, quando se der conta do que está acontecendo. Se perdermos o controle quem sofrerá será ela. — Voltou a sentar, respirou fundo e recobrou o tom calmo e profissional, mas com um toque frio e cheio de cinismo. — Creio que você, mais que qualquer um, não quer que isso aconteça, estou certa, Montenegro? Rodrigo se deixou cair pesadamente de volta na cadeira. — Sim, está — falou apertando os punhos com força. — A culpa é minha, se não tivesse permitido que ela saísse da minha sala nervosa... — Não é hora de achar culpados — interrompeu Tatiana. — Nesse momento temos de ser fortes, por nós e por Sara. Mesmo dizendo isso, Tatiana achava que o Montenegro tinha a maior parcela de culpa. Uma pequena parte era da própria Sara, por dirigir em alta velocidade ao perceber que casara com um iceberg. — Droga! — resmungou o Montenegro. Cobrindo o rosto com as mãos, Rodrigo tentava não se culpar, mas não conseguia. Porque sempre afastava ou perdia as pessoas que lhe eram importantes? — E se ela nunca se lembrar de mim? Ver o Montenegro sofrer de culpa, ou algo semelhante, fez Tatiana ter pena dele. No fundo de seu coração e do seu modo, Rodrigo nutria bons sentimentos por Sara. — Ela vai lembrar. Sara te ama — acrescentou para conforta-lo. O Montenegro levantou a cabeça, nos lábios um sorriso triste. — Ela se esqueceu disso. Tatiana estendeu sua mão até à esquerda de Rodrigo e bateu o dedo indicador na aliança de casamento. — Mas você não. ~*~ No que pareceu uma eternidade para Sara, Tatiana entrou em seu quarto novamente. Para estranheza da jovem, logo atrás da médica estava o homem que tentara beija-la. Ele estava muito sério e evitava seu olhar. Foi novamente examinada e respondeu novas perguntas. Percebeu que a cada resposta a cara bonita do sujeito ficava mais carrancuda. — A não ser pela ferida em sua cabeça, fisicamente você está ótima. — Então posso ir embora? — perguntou ansiosa em voltar logo para casa. — Daqui uns dias, sim. — Percebendo que aquele era o momento de revelar a situação para Sara, Tatiana segurou a mão da afilhada entre as suas. — O problema é que você perdeu parte de sua memória, querida. — Você disse que esquecer o acidente era normal. — Você esqueceu muito mais do que só o acidente. Sara estreitou os olhos esverdeados. — O que esqueci? — Fatos que ocorreram após 2008. Estamos em 2018. Sorriu com desconfiança. Tinha de ser uma brincadeira. No entanto, o olhar sério de sua madrinha não deixava dúvidas de que era verdade e isso a assustou. Fechou os olhos e tentou conter a vontade de chorar. Esquecer dez anos da sua vida era muita coisa, muitos acontecimentos. — Minha mãe... Eu quero a minha mãe — pediu num murmúrio. — Infelizmente ela morreu há cinco anos. — Não é verdade, não pode ser... — Abriu os olhos e fitou Tatiana desolada. — Como aconteceu? Quando? — Foi num acidente de carro. Um motorista bêbado em alta velocidade colidiu com o carro dela. Sentindo uma dor intensa no peito, não conteve as lágrimas. Embora fosse uma mulher reservada e rígida, sua mãe foi à única presença constante em seu crescimento. Nunca conhecera seu pai, que fugiu para não assumi-la, e não tinha parentes próximos. Tatiana não contava, pois, era só uma amiga de sua mãe que aceitara ser sua madrinha, não tinha qualquer obrigação com ela. — E o Robson? Onde ele está? Rodrigo fitou a esposa com as sobrancelhas unidas, tentando recordar aquele nome, mas nada lhe vinha à mente. Devia ser alguém de antes de conhecê-la. Trincou os dentes não gostando da sensação de, além de ter sido anulado da vida da esposa, ser trocado por alguém do passado dela. Sara reparou o olhar estranho de Tatiana para o estranho, assim como notou que o homem a fitava com irritação. — Você e Robson não estão juntos há muitos anos. Sara fechou os olhos sentindo-a desnorteada, tentando encaixar essa informação em sua mente. Lembrou-se do rosto sorridente de Robson, da promessa de ficarem juntos para sempre. Perdera sua mãe, o amor de sua vida, seu passado... — Impossível... — murmurou sem fôlego, o pânico se alastrando por sua pele, as lágrimas deslizando por sua face. — Não tenho mais ninguém? — Tem a mim. A voz grave e profunda do sujeito desconhecido, fez Sara sentir um arrepio estranho subir por sua espinha, principalmente pelo que ele dissera. — Você...? Quem é você? Rodrigo se aproximou da cama, mas evitou toca-la novamente. Olhou para Tatiana num pedido mudo. Queria ele mesmo contar que eram casados. A médica percebeu e fez um gesto de permissão. — Eu sei que será difícil de compreender agora... — Tudo está sendo incompreensível — murmurou para si mesma e, pela primeira vez desde que o vira, prestou atenção nele. Era um homem bonito, mas muito sério. Pelo seu porte, seu jeito de andar e falar, o pouco que falara, parecia achar que o mundo girava ao seu redor. Odiava pessoas assim, metidas. Seu corte de cabelo era impecável, não tinha uma só mecha fora do lugar, algo em seu íntimo lhe dizia que seria divertido e gostoso deslizar os dedos pelos fios escuros e bagunça-los. Sentiu a face esquentar ao perceber o rumo que seus pensamentos tomaram. Também notou que ele lhe falara algo e aguardava uma reação dela, pois a encarava intensamente. — Desculpe-me! O que disse? — Que nos casamos há quatro anos.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD