Onde estou?

1856 Words
O corredor a sua frente era longo, o piso, as paredes e o teto eram brancos cobertos por douradas inscrições pequeninas. Sara tentou ler o que diziam, mas não conseguia, pareciam desbotar a cada esforço que fazia para compreendê-las. O local era bem iluminado e havia enormes livros de cada lado, todos com números enormes no meio e o seu nome, Sara Almeida, em brilhantes letras de ouro. Sentindo-se minúscula perto dos grandes encadernados, Sara caminhou devagar. Ao parar na frente de um livro, ele se abria. Folhas viravam lentamente, letras formavam palavras, frases e se mesclavam até que, como mágica, Sara era transportada para alguma cena referente ao número do livro. No volume sete, viu-se pequena olhando para sua mãe falando no telefone. Sua mini versão admirou a roupa imaculadamente branca - uniforme de trabalho no hospital geral de Cezário -, assim como o cabelo castanho claro preso em um coque. O rosto de Minerva Almeida estava vermelho, os olhos furiosos e a voz irritadiça aumentava a cada segundo da ligação. Preocupada, a pequena Sara caminhou até a mãe, que a repeliu sem nem mesmo olhar, sem reparar que a rejeição encheu os olhos verdes da filha com lágrimas. A pequena Sara correu, passando pela Sara observadora, entrando no quarto, se jogando na cama e dando vazão ao choro. Minerva encerrou a ligação minutos depois e chamou a filha. Sua versão menor engoliu o choro e foi até a mãe esperando um abraço, uma demonstração de afeto. No entanto, sempre apressada, Minerva a levou até a vizinha, para quem pediu que olhasse a filha enquanto trabalhava. Amargando a recordação da constante falta de carinho da mãe, a Sara observadora continuou a andar, vendo outros momentos tristes, felizes, de bobeira, de silêncio de sua vida em cada volume. No de numeração doze, observou sua versão adolescente caminhar de mãos dadas com seu primeiro namorado. Sorriam, o sol iluminando sua face, seu corpo aproximando-se do rapaz. Podia sentir, como se eclipsando as reações da lembrança, o rosto dolorido de tanto sorrir. No quinze estava no quarto do segundo namorado. Mãos afobadas, roupas sendo jogadas longe, uma tarde de descobertas na casa dele após, inconsequentemente, faltarem à aula. No dezesseis chorava copiosamente. Sua mãe a reprovava, dizia que era fraca, emotiva, que devia se dar o valor. O seguinte, de número dezessete, não se abriu, não folheou e nem mostrou alguma cena para a Sara observadora. Curiosa, caminhou até ele e o abriu com as próprias mãos, tendo que colocar toda sua força devido o tamanho descomunal da capa e das folhas. Na primeira folha, no lugar de serem douradas, as letras eram acinzentadas, fixas, mas que mesmo assim Sara não conseguia ler. Virou mais e mais folhas, mas todas estavam do mesmo jeito. Não havia lembranças, não conseguia ler o que havia escrito e quando forçava os olhos e a mente para compreender algo, as letras sumiam e só restavam páginas e mais páginas em branco. Seguiu para os outros volumes, sentindo uma sensação opressora no peito, um sentimento de erro, de falta, e, assim como o dezesseis, os demais a partir dele estavam do mesmo jeito. Letras acinzentadas que sumiam quando se forçava a lê-los. Reparou que os números e o nome na capa também tinham coloração diferente das anteriores, estavam acinzentados, quase apagados. Angustiada, virando mais e mais páginas do volume vinte, cujas palavras desapareciam assim que as olhava, assustou-se quando as luzes piscaram e um eco aterrorizante reverberou pelo corredor. — Dentro destas páginas só há palavras que doem e sangram. Foi quando a viu, em pé em frente ao último volume no corredor, sua mão pousada no meio do grande número vinte e sete. Aquele volume, diferente dos demais, tinha a numeração em vermelho e o sobrenome estava apagado. Não conseguia ver o rosto da mulher, tanto por causa da distância quanto por ela estar voltada para o número. Mas conseguia perceber que usava um vestido vermelho na altura dos joelhos, os pés descalços, o cabelo uma massa de desordenados fios acobreados. — O livro do amor é como um jogo c***l. Você o ganha apenas para perder. — A voz triste e chorosa ecoava pelos corredores, causando um frio em sua espinha. — Perco meu tempo vendo os dias passarem, me sentindo insignificante, esperando que pense em mim, que diga que me ama. A mulher caiu de joelhos no chão, às mãos no rosto, lágrimas pingando em seu vestido. O choro aumentou de intensidade, perturbando Sara. Quis se aproximar, mas sentiu as pernas pesadas e os pés presos no chão. Abriu a boca, querendo consolar, perguntar o que abatia a mulher de vermelho, mas nenhuma palavra passava por sua garganta. A mulher ergueu os olhos, dois brilhantes círculos verdes, voltados para Sara, a face retorcida de dor e ódio flamejante. — Se eu pudesse, passaria uma borracha nos últimos anos e te apagaria para sempre do meu coração. Aquelas palavras atingiram Sara como socos por todo seu corpo, empurrando-a para trás com força descomunal, golpeando violentamente sua cabeça. Sua vista escureceu e tudo ao redor sumiu, mas ainda conseguia ouvir o choro doloroso da mulher de vermelho misturado com um ruído agudo. ~*~ Um ruído irritante e insistente se infiltrou em seus ouvidos, alastrando-se, latejante e dolorosamente, da raiz dos cabelos até às sobrancelhas. Forçou as pálpebras a se abrirem. Uma fresta foi o suficiente para gemer, a luz aumentando a dor por cada centímetro de sua cabeça, e fazê-la cerrar os olhos com um gemido trêmulo. Confusa, com uma sensação pastosa na língua, braços e pernas pesando como chumbo, Sara insistiu e, piscando para se adaptar a claridade, conseguiu ver o que a cercava. E não reconheceu nada. Tentou se mover, mas, além de pesarem, seus braços tinham fios, agulhas, gazes e tanto aparato que teve medo do que aconteceria se os desconecta-se sem ajuda. — Onde estou...? Uma mulher apareceu em seu campo de visão ainda embaçada. Assim como sua visão, sua audição estava prejudicava, pois ela movia os lábios, mas nada parecia compreensível para a mente confusa de Sara. — Onde estou? — repetiu com esforço, a garganta seca dificultando a fala. No lugar de fazer Sara compreender o que falava, a mulher se afastou. O barulho da porta fechando retumbou dolorosamente nos tímpanos de Sara, que se encolheu na cama, no rosto uma máscara de dor. Fechou os olhos e inspirou profundamente, tentando acalmar o coração e não surtar. Erguei a mão devagar, levando-a ao rosto ao notar que havia algo em seu nariz. Mais tubos. Continuou a explorar e seus dedos encontraram um pano em volta de sua cabeça. Bandagens, supôs, concluindo que as pontadas na cabeça se deviam a alguma ferida ali. Piscou para aclarar a vista e a mente, forçando-se a captar os objetos. Aos poucos focalizou as coisas ao redor. Estava em um quarto espaçoso, com paredes, chão e móveis brancos. Do seu lado direito havia uma máquina emitindo um barulho incomodo, dela saiam vários fios que se conectavam ao seu corpo. A esquerda tinha uma cômoda, lotada de vasos com vários tipos de flores, cartões e ursinhos, uma janela fechada e uma poltrona. Na sua frente, acomodada em um suporte no teto, uma televisão ligada, transmitindo a conversa de um grupo de pessoas. Ficou evidente que estava em um quarto de hospital. "O que aconteceu comigo?". Nenhuma informação coerente lhe vinha à mente, nada explicava como acabara naquela situação, por mais que se esforça-se. Gemeu, fechando os olhos com força quando uma dor intensa fez tudo a sua volta rodopiar. Não soube quanto tempo depois, mas, ouvindo passos se aproximando, abriu os olhos e viu, passando pela porta aberta duas mulheres. Uma era baixinha, de cabelo castanho preso em um coque alto, trajando um vestido branco. A outra, usando calças e jaleco branco, era alta e tinha longo cabelo loiro preso na nuca. Não conhecia a primeira, mas identificou rapidamente a segunda. — Madrinha...? O que... Aconteceu...? — perguntou com dificuldade, a garganta seca e a língua grudenta atrapalhando sua fala. Tatiana Santana, a melhor amiga de sua mãe, sua madrinha e uma médica renomada na capital de São Paulo, se aproximou com um sorriso aliviado. — Estamos no hospital, querida. — Segurou a mão de Sara com carinho. — Você ficou em coma por duas semanas após o acidente. Deixou todos apavorados. — Sua voz transmitiu preocupação e reprovação ao questionar: — No que estava pensando, Sara? Você sabe o que acontece com quem dirigi em alta velocidade. Podia ter ferido outras pessoas ou morrido. Não faça isso novamente, eu te proíbo. Como médica, Tatiana sabia que devia confortar os pacientes, mas aquela jovem era sua pupila, afilhada e filha de sua melhor amiga, falecida em um acidente semelhante ao sofrido por Sara. Tinha que colocar um pouco de juízo na cabeça dela. — Que acidente...? Nem sei dirigir — comentou baixinho, confusa com a acusação. Não fazia sentido. — Não se preocupe. É normal esquecer alguns fatos após tanto tempo em coma. — Tatiana acenou para a outra. — Essa é sua enfermeira particular, Silvia Vasques — apresentou, antes de declarar sorrindo: — O Rodrigo fez questão de contrata-la para ficar ao seu lado o tempo todo. Ele fez de tudo para garantir seu conforto — declarou esperando que a informação alegrasse sua afilhada, afinal, o mundo dela girava em torno do marido. — Quem é Rodrigo? — Sara questionou confusa, sem reconhecer o nome ou que importância teria em sua vida. Os olhos da médica se estreitaram. — Sara, qual é o último fato importante de que se lembra? Ao pensar no assunto, Sara sentiu a mente embaralhada, a cabeça pesava e novamente uma dor imensa quase a fez desmaiar. — Como assim? De que tipo? — perguntou com as pálpebras fechadas, massageando a fronte com a mão. — Aniversário, formatura, enterro, batizado ou casamento. Não entendeu muito bem o porquê, mas tinha a impressão que sua madrinha dera ênfase na última palavra. Tentou lembrar-se de algo, sua mente estava lenta, mas, por fim, aproximou-se de uma resposta. — Teve a festa de pijama na casa da Isabel. — Olhou para cima pensativa antes de continuar — Ela conseguiu ser aprovada em matemática ou física... Não lembro direito... Isabel, Laura e eu comemoramos ouvindo música, dançando e comendo pipoca. Sua resposta pareceu não agradar sua madrinha, pois torceu os lábios com claro desgosto. — Sabe em que ano estamos, Sara? Essa pergunta era fácil. — 2008. De novo a cara de desgosto. Pelo jeito essa resposta também não agradara, porém, ela não fez outras. Com a ajuda da enfermeira Silvia, Tatiana a examinou e, ao fim, a enfermeira saiu e quando voltou entregou um vidrinho para Tatiana. — Tome esse remédio e descanse um pouco — sua madrinha comandou estendendo um comprimido e um copo de água. — Mais tarde farei novos exames. Obedeceu, tanto pelo tom de Tatiana, que nunca aceitava não como resposta, quanto por sentir o corpo pesado e dolorido. Tomou o medicamento, se endireitou na cama e fechou os olhos. Descansar parecia uma ótima ideia.
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