Capítulo 2
MURALHA NARRANDO 🪨
Dia seguinte …
Ainda era cedo. O sol começava a subir preguiçoso no horizonte, clareando devagar as cores da favela. Do alto, eu via tudo. Cada viela torta, cada telhado remendado, cada passo de gente acordando cedo pra buscar o pão ou o alívio.
Fazia três noites que eu não dormia.
Não era insônia por café ou barulho.
Era um tipo de agonia que roía por dentro.
Um aperto no peito, como se alguma coisa estivesse prestes a estourar.
Não era a primeira vez que eu sentia isso.
Mas fazia tempo que não vinha com tanta força. E quando esse tipo de sensação batia, eu aprendi a respeitar. Não era superstição. Era sobrevivência.
O corpo avisa. A mente sente.
Aqui parado, com o fuzil cruzado nas costas e o cigarro apagado entre os dedos, eu só escutava o vento cortando as frestas da madrugada que ainda se despedia.
E pensava. Pensava demais.
Nos últimos dias, o nome do Bráulio andava vindo muito à minha mente.
E isso sempre mexia comigo.
Era como uma ferida antiga, cicatrizada por fora, mas pulsando viva por dentro.
Eu evitava contato. Fazia tempo que a gente não se via ou se falava.
Não por mágoa, não exatamente.
Eu ainda tinha carinho por ele. Pelo homem que ele foi. Pela amizade que a gente construiu no sangue e no respeito.
Mas era impossível olhar pra cara dele sem lembrar que a Laís morreu por causa do filho dele. O desgraçadö do Matheus.
Aquele verme que destruiu minha vida em segundos.
E por mais que o Bráulio não tivesse culpa direta, foi o sangue dele que causou aquilo.
Foi por causa da obsessão do filho que eu perdi a mulher da minha vida e um filho que nem tive tempo de embalar no colo.
Eu não culpo o Bráulio. Juro que não.
Ele sofreu também. Eu vi nos olhos dele.
Vi no enterro. Vi quando ele levou a Olívia embora, destruída.Vi quando me olhou, envergonhado, pedindo perdão sem abrir a boca.
Mas o perdão, às vezes, não resolve.
Só acalma.
A gente seguiu caminhos diferentes.
Ele foi embora do país, reconstruiu uma vida nova. Criou a filha com amor, com cuidado.E eu fiquei. Fiquei com a dor.Com os estilhaços.
Quando a Cecília nasceu, ele me ligou. A voz dele tremia de emoção, e por um instante, eu quase me permiti sorrir.
Ele me pediu pra ser padrinho dela.
Eu travei. A garganta secou, a mão suou. Respondi que não dava. Disse que não estava pronto. E não estava mesmo.
Porque carregar o título de padrinho da filha do Bráulio seria como carregar uma cruz que eu não queria mais.
Seria viver lembrando, dia após dia, do que me foi tirado. Não da menina, ela não tinha culpa. Mas da lembrança. Do peso. Da ferida.
Eu desejei que ela tivesse saúde, amor, proteção. Mas não consegui me aproximar.
E até hoje, dezoito anos depois, nunca vi a menina pessoalmente.
Sei que ela cresceu bem. Que é inteligente, estudiosa. Bráulio sempre foi linha dura, mas quando se trata dela, amolece.
Ouvia por outros, sabia das coisas. Portuga, que virou o meu braço direito às vezes dava notícias. Mas eu mantinha distância. Porque a dor, mesmo adormecida, ainda lateja quando cutucada.
Suspirei fundo. A favela começava a despertar de vez. Os primeiros sons dos moradores se espalhavam panela batendo, rádio velho chiando numa estação de samba, chinelo arrastando no chão.
Mas mesmo com toda essa rotina familiar, o aperto no peito não passava.
Era como se uma sombra estivesse pairando por cima da comunidade.
Como se alguma coisa alguma merdä grande estivesse vindo.
O rádio de frequência na minha cintura chiou de repente.
— Muralha, na escuta? — a voz de um dos soldados do tráficö soou urgente, acelerada.
Tirei o rádio do cinto e levei à boca, ainda sem pressa, mas com o corpo já em alerta.
— Fala.
— A casa caiu! — ele respondeu de imediato.
Franzi a testa, confuso.
— Como assim caiu? — perguntei, o tom mais firme.
— Caiu, chefe! Tão entrando por tudo quanto é lado! Viatura, caveirão, helicóptero, o caralhö todo!
Antes mesmo que eu pudesse responder, um som cortou o ar. Os primeiros disparos.
Secos. Rápidos.Depois vieram os gritos.
Correria.
Meus olhos varreram o morro lá de cima.
Vi o caos começar a se formar.
Por um segundo, fiquei parado.
O mundo em volta desacelerou, como se tudo tivesse mergulhado debaixo d’água.
E então, meu corpo reagiu.
Desci as escadas da laje correndo, o rádio ainda chiando na mão, o fuzil agora firme no braço. O sangue corria rápido nas veias, o coração martelava no peito.
A sensação que me acompanhava há dias só confirmava que a bomba estourou.
E o infernö estava apenas começando .