Capítulo 3

1101 Words
Capítulo 03 MURALHA NARRANDO 🪨 O rádio seguia chiando no meu ouvido, a frequência tomada por vozes nervosas, atropeladas, uma em cima da outra. — Tão subindo pela viela da central! — Tem helicóptero atirando! — Viatura blindada quebrando portão! — Tem homem caído! Ajuda porrä! Desci os becos estreitos em velocidade, as botas estalando no cimento úmido, o fuzil colado no peito. Os olhos varriam tudo, frestas, telhados, vultos. Do alto, o caos se derramava. A fumaça de gás lacrimogêneo já começava a cobrir parte da favela como neblina tóxica. O som dos helicópteros cortava o céu, baixo, ameaçador. O bater das hélices misturava com os estampidos secos dos primeiros tiros. Era como se o próprio infernö tivesse se instalado aqui. “A casa caiu”, disseram. Não. A casa não caiu. Ainda não. Atravessei uma viela e cheguei na base da nossa trincheira principal, um barraco reforçado com sacos de areia, janelas com visão ampla das rotas de acesso da polícia. Dois dos meus estavam lá, armados, com expressão fechada. — Visual?— perguntei, sem tempo pra cerimônia. — Caveirão entrou pela Leste. Estão espalhando. Tentaram subir a escadaria da escola, mas botamos dois pra cair.— respondeu um dos rapazes, o Tevinho. Novo, mas com sangue frio nas veias. — E o helicóptero?— questionei, agachado junto à parede, fuzil em riste. — Tá circulando baixo, só observando. Ainda não atiraram direto na gente. — Vai atirar. Já, já. Apoiei o fuzil na janela e mirei. Não atirei — ainda não era hora. Respirei fundo, buscando um momento de clareza no meio da fumaça. Peguei o rádio de novo. Minha voz saiu firme, cortante — Atenção todos. Aqui é o Muralha. Escutem bem vamos segurar essa porrä até o último cartucho. Não quero pânico, não quero correria. As rotas de fuga continuam como ensaiamos se pressionarem demais, cai pro beco três, e dali pra Caverna. Mas só recuam sob ordem minha, entendido? — Entendido, chefe! — ecoaram várias vozes, em uníssono. — Quero as granadas nos pontos estratégicos. Nada de jogar à toa. Visou grupo grande, atira. Visou comando, derruba. Helicóptero for baixo demais, quero fogo cruzado nele. Cês sabem o que fazer. — Pode deixar! — alguém respondeu. Outro soldado, o Dego, chegou correndo, o rosto suado, sem fôlego. — Muralha! Pegaram o Rato na subida da quadra. Tava com dois moleque. Um caiu. Outro tá cercado. — Manda cinco pro resgate agora. Pela lateral da lavanderia. É subida difícil, mas dá cobertura. Cês têm três minutos pra tirar os nossos de lá. Se não der… explode o beco e não deixa sobrar ninguém, entendeu? Ele assentiu, correu de volta. Lá fora, o som das sirenes misturava com os gritos dos moradores que tentavam correr pras casas, abaixar cortinas, proteger crianças. As mães gritavam pelos filhos. Os cães latiam como loucos. Tensão. Medo. Pavor. Mas meus homens sabiam o que fazer. A gente treinava pra esse tipo de inferno. Os primeiros clarões das granadas começaram a pintar o céu acinzentado. Ouvi os estampidos ecoarem entre as vielas pequenos trovões.Logo depois, vieram os gritos. Alguém no rádio berrava — Alvejamos um do caveirão! Mas tem outro entrando pela parte de cima! — Distribui a tropa. Quero homem em cima de cada entrada. Os que tiverem visão, fiquem em cima dos telhados. Sem descuido. Eles tão vindo com tudo. Mais tiros.Tiros de grosso calibre. Metralhadoras giratórias dos blindados vomitando rajadas pela favela. — Filhos da putä tão destruindo as paredes, Muralha! — alguém gritou no rádio. — Então destrói os pneus deles.— respondi frio. — Arrebenta os trilhos, explode a p***a do chão se precisar. Mas ninguém entra no miolo. Corri pra um dos pontos altos da comunidade um mirante improvisado, com visão ampla da entrada principal. Chegando lá, vi os homens do BOPE abrindo caminho, escudos táticos, armamento pesado, andando devagar, como quem sabe que pode matar e morrer. Do meu lado, Mico, um dos veteranos, preparava um lançador. — Quer que solte?— ele perguntou, olhando a movimentação abaixo. — Agora. Ele disparou. A granada voou, cortando o ar com um assovio mortal, até explodir bem no meio do avanço.O estouro foi seco. Chuva de estilhaços. Gritos. Alguns recuaram. Outros tentaram se proteger.Mas a frente deles se quebrou por alguns segundos. — VAMOS!— gritei no rádio. — TODOS OS GRUPOS , AGORA! ATACA GERAL! Os nossos saíram dos becos como sombra. Dez, quinze, vinte homens. Fogo cruzado. Balas zunindo. Pólvora no ar. Ali, não tinha mais conversa. Não tinha mais aviso. Era guerra. Eu observava tudo, controlando como um maestro. Mandava recuar, avançar, atacar em X. Cortava o rádio de quem gritava demais. Mantinha a frieza. Porque nesse jogo, quem surta primeiro, morre primeiro. O helicóptero deu rasante, atirando. Por instinto, rolei pro lado, cobrindo a cabeça. Metralhadora rotativa cuspindo chumbo como chuva de prego. Mico gritou, atingido no ombro. — Merdä!— ele grunhiu. — Recua! Vai pra base dois. Médico tá lá.— empurrei ele, e voltei a mirar. — Tão cercando a escola, Muralha!— veio outro aviso no rádio . — Não vão entrar.— minha voz saiu como uma sentença . Peguei outra frequência . — Ponto seis, é agora. Quero a explosão na linha dos fundos. Atrapalha a subida deles. Fumaça bora . Segundos depois, mais um estouro. A terra tremeu debaixo do pé. Parte de uma das vielas veio abaixo. Estratégia. Risco calculado . Eles ainda vinham, claro. Mas estavam no nosso terreno. No nosso território. O relógio marcava 6h28 da manhã . Só duas horas desde o primeiro disparo. Mas parecia uma eternidade . O rádio chiou de novo . Era Tevinho . — Chefe … tem mais chegando pela Leste. Tão descendo o morro com apoio de sniper . Fechei os olhos por um instante . O silêncio interno era quase um transe . No fundo, eu sabia. Hoje não era só mais uma operação. Hoje era a operação . Poderia ser o fim. Ou poderia ser o reforço da nossa força . Ergui o fuzil, voltei a falar no rádio, firme, direto . — Atenção, tropa toda. Escutem bem . — A ordem tá dada ataca. Essa porrä . — É pra derrubar cada verme que tentar subir esse morro. Sem piedade, sem dúvida. Hoje é até o fim. Se vier, cai. Se insistir, morre . Fechei o punho, o fuzil pesado como uma extensão do meu braço . — Só paramos quando não sobrar nenhum . O estalo dos gatilhos respondeu antes mesmo de qualquer voz . E então, o morro rugiu .
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