Capítulo 4
MURALHA NARRANDO 🪨
O cheiro de pólvora já tinha se impregnado nos pulmões, queimando por dentro, como se eu respirasse fogo. Meus olhos ardiam da fumaça, mas eu não desviava o olhar. Cada viela, cada telhado, cada sombra… tudo precisava passar pelo meu radar.
As balas ainda zuniam pelos becos, mas com menos intensidade. Era o som da resistência deles vacilando. A nossa ofensiva estava funcionando. Os grupos da polícia começaram a se dispersar, desorganizados, sem apoio aéreo depois que conseguimos danificar o helicóptero com um disparo certeiro no motor de cauda. O bicho quase caiu na laje do Bar do Seu Dico. Desde então, estavam só com viatura e blindado e mesmo os blindados estavam sendo forçados a recuar por falta de rota segura.
Vi o corpo do Neguinho estendido no chão da Viela Três. Tinha só dezenove anos. Um dos melhores atiradores do nosso bonde. Tinha um olho que parecia régua o que ele mirava, ele derrubava. Mas não deu tempo de mirar hoje. Um sniper levou ele quando ia cobrir a retaguarda.
Me ajoelhei ao lado do corpo dele. A bala atravessou o pescoço.
— Foi rápido, irmão.— murmurei, fechando os olhos dele com a mão enluvada. — Vai em paz.
Levantei de novo, coração acelerado, mas alma endurecida. Não dava tempo de sofrer agora. Quem para pra chorar no meio da guerra, morre chorando.
O rádio estalou na minha cintura. Era Tevinho, com a voz ofegante
— Chefe… base da Caverna tá segura. Eles recuaram do beco da lavanderia. Tão voltando em direção ao caveirão.
— Mantém dois lá de guarda. Os outros seguem comigo pela subida do reservatório.
— Entendido.
Segui em direção ao miolo da favela, pisando entre escombros, cartuchos vazios, sangue derramado. Vi a Dandara ajudando um dos nossos a se arrastar com a perna estourada. Moleque novo, gemendo, agarrado a ela como se fosse mãe. Dandara era enfermeira, mas nessas horas virava médica, psicóloga, santa.
— Consegue levá-lo até a base do Seu Jorge?— perguntei.
— Consigo. Já avisei pra abrirem espaço— ela respondeu, os olhos duros. Não era a primeira vez que via a guerra de perto.
Segui adiante, fuzil firme nas mãos. O sol já começava a abrir entre as nuvens pesadas da manhã, e os últimos clarões das granadas se apagavam lentamente. Por cima dos telhados, dava pra ver o recuo da tropa. Três viaturas já voltavam pela Estrada Velha, protegendo o blindado com escudos. A infantaria caminhava atrás, cabeça baixa.
A favela resistiu. Mais uma vez.
Mas o preço… o preço nunca vinha barato.
Sentei num dos parapeitos da Laje do Bill, sentindo o corpo inteiro tenso, os ombros duros como pedra. Ouvi os passos dos meus vindo atrás. Tevinho, Zulu, Pio, mais três. Todos ofegantes, suados, sujos de pó e sangue alguns do próprio, outros nem sabiam de quem.
— Parece que acabou…— disse Zulu, abaixando o fuzil pela primeira vez.
— Eles tão indo embora.— Pio acrescentou, se apoiando na parede.
Eu olhei lá pra baixo. As ruas da favela, agora mais calmas, pareciam suspensas no tempo. O silêncio que vinha depois da guerra era o mais crüel de todos. Não tinha mais gritos, não tinha tiro, não tinha sirene. Só a respiração pesada dos vivos e os olhos fechados dos mortos.
— Contem os nossos.— falei, ainda sem levantar. — Os caídos e os feridos. Quero o nome de cada um. Ninguém vai ser só mais um número.
Eles assentiram e começaram a descer. Fiquei sozinho por um instante.
Fechei os olhos e respirei fundo. A dor do pulmão inflamado me fez tossir. Senti gosto de metal na garganta. Mas deixei passar.
Eu devia estar aliviado. Deveria. Mas não tava. Tinha alguma coisa… errada.
O ar ainda parecia carregado. Meus ouvidos latejavam. E aquele silêncio… não era um silêncio de fim de confronto. Era o silêncio da calma antes da última tempestade.
Quando me levantei pra voltar, foi que senti.
A primeira coisa foi um estalo seco no ar..
Depois, uma ardência violenta na altura da costela.
Olhei pro lado, meio confuso, sem entender de onde tinha vindo. A pancada me girou o corpo. Cai de joelhos. Outra bala veio logo em seguida, pegando no ombro. Não ouvi o disparo.
Só senti o impacto me jogando pro chão com força.
Fiquei no concreto, respirando com dificuldade, vendo o céu se apagando em fragmentos de nuvem.
Sniper.
n
Um malditö sniper escondido. Devia ter ficado pra trás. Ou estava no topo de algum prédio mais afastado. Não era um erro que eu costumava cometer. Mas com a guerra, com a correria, com as perdas… deixei uma brecha.
Tentei gritar, mas minha voz saiu como um chiado rouco.
— T-T…
Minha mão buscava o rádio, mas os dedos tremiam. O sangue quente escorria pela minha barriga, encharcando a roupa, vazando rápido demais.
Tevinho voltou correndo, desesperado.
— CHEFE?!
— Sniper…— murmurei, cuspindo sangue. — Topo… alguém no topo… pega… pega ele…
— Não fala! Fica quieto! A gente vai tirar você daqui! PIO! ZULU! SOCORRO AQUI! — ele gritava enquanto tentava pressionar o ferimento.
Senti minha visão embaralhar. O céu rodava. O mundo parecia se dissolver aos poucos. As mãos de Tevinho tentavam me manter acordado, mas o cansaço me puxava pra baixo como correnteza.
— Fica comigo, chefe. Pelo amor de Deus. Tu não pode ir agora… tu é a p***a da Muralha…
Sorri. Ou pelo menos tentei.A Muralha… agora ruía.Mas ainda não tinha caído.Não por completo.Não ali.Não daquele jeito.
Ouvi o disparo final vindo de longe. Um dos nossos devolveu o tiro. Depois, mais silêncio.
E antes de apagar, eu só pensava numa coisa
Se eu cair… vão levantar outro. Mas enquanto meu coração bater, ninguém vai tomar esse morro da gente.