Capítulo 5
MURALHA NARRANDO 🪨
Eu via tudo meio embaçado, como se meus olhos fossem duas janelas sujas e trincadas, e o mundo lá fora estivesse derretendo. O céu… já não era mais azul. Era um borrão acinzentado se misturando com a fumaça das granadas e da pólvora. Meus ouvidos zuniam, como se um enxame tivesse entrado pela cabeça e dançasse entre as ideias.
A dor… Ela vinha em ondas. Violentas. Frias.
E depois sumia. Volta e meia eu achava que já tinha morrido.
Mas não. Ainda tava aqui. Ainda era eu.
Tevinho gritava meu nome, mas parecia distante. Como se estivesse gritando debaixo d’água.
— CHEFE! OLHA PRA MIM! NÃO DORME, CARALHÖ!
Senti alguém me sacudir com força. Os estalos da bota dele no chão, o som de outros chegando correndo. Passos apressados. Gritos. E o cheiro…, o cheiro de sangue quente misturado com cimento… marcando o fim de mais uma batalha.
Meu corpo tremia, mas não sentia frio.
Era o contrário. Um calor estranho subia pelas minhas pernas, como se eu estivesse me afundando numa poça fervente de angústia.
O Zulu apareceu com a cara toda suja de fuligem. Quando viu meu estado, arregalou os olhos.
— Caralhö… acertaram ele. Foi sniper?
— Foi! Filho da putä tava escondido. Já pegamos!— respondeu Tevinho, enquanto rasgava minha camisa com a faca.
Senti o ar tocar a ferida aberta na costela. O sangue escorria sem trégua, como se meu corpo tivesse cansado de guardar tudo que sofreu.Tudo o que vivi.
“É assim que acaba?”
“É agora?”
Mas por mais que a morte soprasse no meu cangote, alguma coisa dentro de mim gritava ainda não.Porque eu ainda era a p***a da Muralha.
— Levanta ele! Bota no ombro! VAMO, PORRÄ!— Tevinho ordenava, a voz cheia de desespero e liderança misturados.
Me jogaram sobre um dos moleques, e o mundo girou. Passei pelas vielas como num delírio. Vários rostos me olhando, alguns chorando, outros rezando, alguns em choque. Ninguém acreditava no que via.
É o chefe.
“Pegaram o Muralha.”
“Não… não é possível.”
Atravessamos a Laje do Seu Naldo, depois o beco da quadra, até sairmos no asfalto. O sol agora batia forte, como se zombasse da gente. Como se dissesseVocês ainda estão vivos… por enquanto.
Chegamos no posto de saúde da comunidade. O pequeno prédio branco, já sujo e rachado, com o letreiro apagado e uma fila de gente estendida até o portão lateral. Gente tossindo, desmaiada, com criança no colo… um retrato do abandono.
Tevinho arrombou a porta com o pé.
— ATENÇÃO! O CHEFE FOI BALEADO! SOCORRO, CARALHÖ!
A mulher da recepção levantou assustada. O segurança botou a mão na cintura, mas travou quando viu os fuzis.
— Não tem médico!— ela gritou, ofegante. — Tá tudo lotado! TÁ TODO MUNDO LOTADO AQUI!
— QUEM É QUE MANDA NESSA PORRÄ?— berrou Zulu, apontando a arma pra cima.
As pessoas começaram a gritar, se jogando no chão. Um enfermeiro apareceu correndo, levantando as mãos.
— A gente… a gente tá com superlotação! Já recusamos três ambulâncias hoje! Não tem sala! Não tem UTI! Não tem nem oxigênio sobrando!
Tevinho se aproximou dele, olhos ardendo.
— TU TÁ ME DIZENDO QUE O MURALHA VAI MORRER AQUI NA PORTA DESSA MERDÄ PORQUE FALTOU SALA?!
— A culpa não é nossa! Não tem estrutura! Os médicos estão sobrecarregados! A última cirurgia foi feita na maca com lanterna de celular!
Eu ouvia tudo como se fosse de longe, como se estivesse dentro de uma garrafa sendo chacoalhada por mãos invisíveis.
A dor… tinha voltado. Rasgando por dentro.
Mas o que mais doía… era o som do medo nos meus soldados.
Eles estavam ali. Desesperados.Por mim.
Era estranho. Eu que sempre fui o escudo. O que protegia. O que tomava a frente.
Agora… eu era o ferido. O que sangrava. O que podia cair.
E mesmo assim… algo dentro de mim ainda resistia.Comecei a ver cenas na minha mente. Como num filme acelerado.
Laís… sorrindo na cozinha, com o cabelo preso e o vestido florido, a barriga enorme carregando nosso Samuel .
As noites de guerra, os tiros, os enterros.
Bráulio rindo bêbado numa laje qualquer.
Cecília, ainda bebê, na foto que o Bráulio mandou uma única vez
Olívia me dando parabéns num Natal triste.
A comunidade toda cantando parabéns no meu aniversário, quando eu completei 40.
Era como se minha vida estivesse rebobinando.Mas eu sabia o que aquilo queria dizer.
Era a morte… cochichando.
Sussurrando no meu ouvido.
“Vem comigo…”
E eu, mesmo fraco, mesmo morrendo… respondi dentro da mente
“VAI TOMAR NO CUU.”
Não era agora. Eu sabia que não.Um dos soldados gritou
— FODÄ-SE! LEVA PRO BAR DO DICO! BOTA ELE NA MESA! QUALQUER LUGAR É MELHOR QUE ESSA PORRÄ!
Fui carregado mais uma vez, enquanto o sangue me escorria pelas costas. Meus dedos formigavam. A boca seca. Mas ainda tava acordado. Viu? Ainda aqui. Ainda ouvindo. Ainda sentindo.
O Bar do Dico virou improviso de centro cirúrgico. Jogaram uma toalha de mesa no balcão, afastaram as garrafas e abriram espaço. Zulu cortou minha calça, rasgou a camisa completamente, e Tevinho começou a limpar a ferida com álcool de posto.
Gritei.
Do fundo da alma.
Pensei que ia desmaiar. Mas não deixei.
Minha vontade de viver era maior que a dor.
— Aguenta, chefe. Aguenta mais um pouco. Um médico tá vindo. Ele é do particular… a gente pagou.
— Ele… vai vir mesmo?— perguntei com a voz rouca, quase sumindo.
— Vai sim. Já tá subindo. Aguenta só mais um pouco.
Fechei os olhos. Senti minha respiração falhar.
MMas repeti pra mim mesmo, como reza
Eu sou a muralha. Eu sou a muralha. Eu sou a muralha. E a muralha não cai