Capítulo 5

968 Words
Capítulo 5 MURALHA NARRANDO 🪨 Eu via tudo meio embaçado, como se meus olhos fossem duas janelas sujas e trincadas, e o mundo lá fora estivesse derretendo. O céu… já não era mais azul. Era um borrão acinzentado se misturando com a fumaça das granadas e da pólvora. Meus ouvidos zuniam, como se um enxame tivesse entrado pela cabeça e dançasse entre as ideias. A dor… Ela vinha em ondas. Violentas. Frias. E depois sumia. Volta e meia eu achava que já tinha morrido. Mas não. Ainda tava aqui. Ainda era eu. Tevinho gritava meu nome, mas parecia distante. Como se estivesse gritando debaixo d’água. — CHEFE! OLHA PRA MIM! NÃO DORME, CARALHÖ! Senti alguém me sacudir com força. Os estalos da bota dele no chão, o som de outros chegando correndo. Passos apressados. Gritos. E o cheiro…, o cheiro de sangue quente misturado com cimento… marcando o fim de mais uma batalha. Meu corpo tremia, mas não sentia frio. Era o contrário. Um calor estranho subia pelas minhas pernas, como se eu estivesse me afundando numa poça fervente de angústia. O Zulu apareceu com a cara toda suja de fuligem. Quando viu meu estado, arregalou os olhos. — Caralhö… acertaram ele. Foi sniper? — Foi! Filho da putä tava escondido. Já pegamos!— respondeu Tevinho, enquanto rasgava minha camisa com a faca. Senti o ar tocar a ferida aberta na costela. O sangue escorria sem trégua, como se meu corpo tivesse cansado de guardar tudo que sofreu.Tudo o que vivi. “É assim que acaba?” “É agora?” Mas por mais que a morte soprasse no meu cangote, alguma coisa dentro de mim gritava ainda não.Porque eu ainda era a p***a da Muralha. — Levanta ele! Bota no ombro! VAMO, PORRÄ!— Tevinho ordenava, a voz cheia de desespero e liderança misturados. Me jogaram sobre um dos moleques, e o mundo girou. Passei pelas vielas como num delírio. Vários rostos me olhando, alguns chorando, outros rezando, alguns em choque. Ninguém acreditava no que via. É o chefe. “Pegaram o Muralha.” “Não… não é possível.” Atravessamos a Laje do Seu Naldo, depois o beco da quadra, até sairmos no asfalto. O sol agora batia forte, como se zombasse da gente. Como se dissesseVocês ainda estão vivos… por enquanto. Chegamos no posto de saúde da comunidade. O pequeno prédio branco, já sujo e rachado, com o letreiro apagado e uma fila de gente estendida até o portão lateral. Gente tossindo, desmaiada, com criança no colo… um retrato do abandono. Tevinho arrombou a porta com o pé. — ATENÇÃO! O CHEFE FOI BALEADO! SOCORRO, CARALHÖ! A mulher da recepção levantou assustada. O segurança botou a mão na cintura, mas travou quando viu os fuzis. — Não tem médico!— ela gritou, ofegante. — Tá tudo lotado! TÁ TODO MUNDO LOTADO AQUI! — QUEM É QUE MANDA NESSA PORRÄ?— berrou Zulu, apontando a arma pra cima. As pessoas começaram a gritar, se jogando no chão. Um enfermeiro apareceu correndo, levantando as mãos. — A gente… a gente tá com superlotação! Já recusamos três ambulâncias hoje! Não tem sala! Não tem UTI! Não tem nem oxigênio sobrando! Tevinho se aproximou dele, olhos ardendo. — TU TÁ ME DIZENDO QUE O MURALHA VAI MORRER AQUI NA PORTA DESSA MERDÄ PORQUE FALTOU SALA?! — A culpa não é nossa! Não tem estrutura! Os médicos estão sobrecarregados! A última cirurgia foi feita na maca com lanterna de celular! Eu ouvia tudo como se fosse de longe, como se estivesse dentro de uma garrafa sendo chacoalhada por mãos invisíveis. A dor… tinha voltado. Rasgando por dentro. Mas o que mais doía… era o som do medo nos meus soldados. Eles estavam ali. Desesperados.Por mim. Era estranho. Eu que sempre fui o escudo. O que protegia. O que tomava a frente. Agora… eu era o ferido. O que sangrava. O que podia cair. E mesmo assim… algo dentro de mim ainda resistia.Comecei a ver cenas na minha mente. Como num filme acelerado. Laís… sorrindo na cozinha, com o cabelo preso e o vestido florido, a barriga enorme carregando nosso Samuel . As noites de guerra, os tiros, os enterros. Bráulio rindo bêbado numa laje qualquer. Cecília, ainda bebê, na foto que o Bráulio mandou uma única vez Olívia me dando parabéns num Natal triste. A comunidade toda cantando parabéns no meu aniversário, quando eu completei 40. Era como se minha vida estivesse rebobinando.Mas eu sabia o que aquilo queria dizer. Era a morte… cochichando. Sussurrando no meu ouvido. “Vem comigo…” E eu, mesmo fraco, mesmo morrendo… respondi dentro da mente “VAI TOMAR NO CUU.” Não era agora. Eu sabia que não.Um dos soldados gritou — FODÄ-SE! LEVA PRO BAR DO DICO! BOTA ELE NA MESA! QUALQUER LUGAR É MELHOR QUE ESSA PORRÄ! Fui carregado mais uma vez, enquanto o sangue me escorria pelas costas. Meus dedos formigavam. A boca seca. Mas ainda tava acordado. Viu? Ainda aqui. Ainda ouvindo. Ainda sentindo. O Bar do Dico virou improviso de centro cirúrgico. Jogaram uma toalha de mesa no balcão, afastaram as garrafas e abriram espaço. Zulu cortou minha calça, rasgou a camisa completamente, e Tevinho começou a limpar a ferida com álcool de posto. Gritei. Do fundo da alma. Pensei que ia desmaiar. Mas não deixei. Minha vontade de viver era maior que a dor. — Aguenta, chefe. Aguenta mais um pouco. Um médico tá vindo. Ele é do particular… a gente pagou. — Ele… vai vir mesmo?— perguntei com a voz rouca, quase sumindo. — Vai sim. Já tá subindo. Aguenta só mais um pouco. Fechei os olhos. Senti minha respiração falhar. MMas repeti pra mim mesmo, como reza Eu sou a muralha. Eu sou a muralha. Eu sou a muralha. E a muralha não cai
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