Capítulo 01
MURALHA NARRANDO 🪨
Eu sempre gostei de ver o nascer do sol daqui de cima, o céu começa a mudar de cor devagar, se tingindo de laranja, depois rosado, como se até ele tivesse vergonha de clarear esse lugar tão marcado por dor.
No alto do morro, o vento é frio mesmo no verão. E eu fico aqui, parado, com o fuzil jogado nas costas, firme como uma soldado que nunca saiu do posto.
Dezoito anos.
Já fazem dezoito anos desde que a Laís e o nosso menino partiram, parece que foi ontem. Parece que foi em outra vida.
A dor não foi embora, não. Só aprendeu a se esconder. E eu aprendi a andar com ela, como quem aprende a viver com uma ferida aberta que nunca cicatriza de verdade. Cada passo que eu dava depois daquele dia sangrava por dentro. Cada manhã era um teste, e cada noite um castigo. Mas eu resisti. Fiquei de pé. Vi gente boa cair, vi covarde fugir, vi traidor pagar com a vida. E eu? Eu fiquei.
Fiquei porque tinha que ficar, porque esse lugar, essa favela que me ensinou a sobreviver, precisava de alguém forte. E eu virei o que o nome já dizia Muralha.
Não por escolha. Por necessidade.
Nos primeiros meses depois do tiroteio, eu era só um corpo no automático. Dormia pouco, comia menos ainda. Minha vontade era morrer, mas minha missão era vingar.
Matei o desgraçadö do Matheus com minhas próprias mãos, foi pouco. Foi nada. Nenhuma dor que eu causei naquele infeliz se comparava com a dor de ver a Laís no caixão. Com a dor de enterrar um filho que nunca chegou a dizer “papai”.
E foi ali que eu jurei que ninguém mais ia mandar aqui. O morro era nosso, e eu ia fazer valer essa porrä.
Com o Bráulio fora do país, depois que levou a Olívia e a filha pra recomeçar longe, ficou tudo nas minhas costas. Ele confiou em mim.
Eu nunca disse isso pra ele, mas ter essa confiança foi o que me impediu de me entregar à loucura de vez. Porque eu tinha motivos demais pra perder o juízo.
Mas eu tinha um legado pra proteger.
Comecei arrumando a favela. Impus respeito, reorganizei o comando, cortei pela raiz qualquer rastro do que Matheus tinha deixado. Qualquer homem que tivesse sido fiel a ele desapareceu. Se fosse inocente, sumia com aviso. Se tivesse sangue nas mãos, sumia sem chance.
Reestruturei as bocas, melhorei a segurança da comunidade, investi em quem era da favela. Fiz parceria com quem valia a pena, dei estudo pra molecada que queria sair do crime. Mas nunca me iludi.
Nunca achei que isso aqui ia virar paraíso.
Favela é campo de guerra, e eu aceitei ser o general.
Tinha dia que eu acordava com o cheiro da Laís no travesseiro, mesmo depois de anos.
Tinha noite que eu sonhava com o rosto do meu filho, mesmo sem nunca ter visto o olhar dele.
Às vezes eu sentia como se elas estivessem perto, me olhando.
E era nesses momentos que eu ficava mais frio. Porque saber que elas nunca mais iam voltar me fazia lembrar de tudo que eu perdi.
Mas se tem uma coisa que o tempo me ensinou, foi que a dor não me matou, ela me esculpiu. Me endureceu por dentro.
Me transformou no homem que eu precisava ser pra manter isso aqui de pé.
Os moleques que hoje me chamam de chefe nem sonham metade do que eu vivi.
Eles veem o Muralha de agora postura firme, olho cortante, voz que não repete ordem. Mas não sabem do Muralha que chorava sozinho no telhado da casa, com uma arma na mão e o coração quebrado.
Não sabem do homem que passava pela praça onde queria levar o filho pra brincar, e sentia o mundo desabar por dentro.
Me acostumei a sorrir com o rosto e calar com o peito. A dar exemplo sem mostrar fraqueza. A manter todos vivos, mesmo sentindo que eu já tinha morrido por dentro.
O morro me respeita.E eu respeito o morro.
Cada viela, cada barraco, cada criança correndo descalça me lembra por que eu continuei, por que eu não desisti.
Laís sempre dizia que eu tinha coração, mesmo quando eu negavä.
Ela enxergava algo em mim que nem eu via. E foi por ela que eu deixei de ser só um soldado. Foi por ela que eu virei dono.
Hoje, quando eu vejo o sol subindo e batendo nos telhados de zinco, eu penso que talvez, em algum lugar, ela esteja vendo também.
E que esteja orgulhosa.
O tráfico ainda existe. A guerra ainda existe.
A polícia ainda invade, o sistema ainda massacra. Mas eu tô aqui.
Com cada ruga no rosto contando uma história. Com cada cicatriz no corpo lembrando que eu lutei e eu lutei pra caralhö irmão
Eu não sou santo. Nunca fui.
Fiz o que precisei fazer.
Fui crüel quando a justiça falhou, fui leal quando ninguém mais era.
E não me arrependo.
A saudade é meu combustível.
E a memória dos dois é o que me mantém inteiro.
Hoje, olhando pra favela ainda adormecida, com os primeiros raios de luz batendo no chão de paralelepípedo, eu penso, valeu a pena ter resistido.
A vida me tirou muito, mas também me deu um propósito. Ser Muralha não é só um apelido. É ser abrigo pros meus, proteção pra comunidade , ameaça pros inimigos.
E enquanto eu respirar, enquanto o sol nascer e o fuzil pesar nas costas, ninguém vai tirar isso de mim.