capítulo 03

1342 Words
Fantasma narrando Tem gente que nasce com o destino marcado. Eu sempre soube qual seria o meu, mesmo quando fingia que não. Cresci na beira do abismo, e cedo demais aprendi que o mundo não tinha espaço pra moleque de periferia sonhar alto. Eu não era filho de empresário, nem herdeiro de ninguém. Era só mais um menino correndo descalço na rua, ouvindo minha mãe repetir todos os dias que eu podia ser diferente. Ela acreditava nisso com uma fé que doía. Eu? Nem tanto. Minha mãe trabalhava feito condenada. Lavava roupa pros outros, fazia faxina, cozinhava marmita… o que aparecesse. Nunca deixou faltar comida no prato, mas também nunca me deixou esquecer de onde a gente vinha. "Bernardo, a promessa de um homem se cumpre. Mulher não se toca. O errado nunca vira certo." Essas eram as frases dela, repetidas como oração. Só que no morro, a oração que mais vale é a da lei do fuzil. E eu cresci vendo quem seguia as regras da rua se dar bem rápido, enquanto quem tentava ser honesto morria devendo no mercado. Não demorou pra eu escolher o caminho que parecia mais fácil. Entrei no movimento pequeno ainda, carregando recado, levando droga escondida. Era só um moleque, mas aprendi ligeiro que no crime a confiança vale mais que a bala. Quem erra, morre. Quem entrega, morre. Quem fala demais, morre também. Meu apelido nasceu nessa época. Fantasma. Primeiro porque eu sumia quando a polícia entrava, ninguém me pegava. Depois, porque diziam que eu aparecia do nada na frente dos inimigos, silencioso, frio. Gostei do nome. Fantasma não sente, não chora, não ama. Fantasma só existe. Mas minha mãe nunca deixou de ver o Bernardo por trás do apelido. Ela sabia quem eu era antes da rua me moldar. Por isso, quando o tempo fechou, eu não pensei duas vezes. Foi numa noite de baile, quando tudo pareceu desmoronar de vez. A polícia cercou o morro, helicóptero no ar, sirene na quebrada inteira. O bonde que eu fazia parte estava marcado. A informação tinha vazado e, se alguém não caísse, ia ser chacina. Eu podia fugir, mas enquanto alguém não se entregasse eles não iam recuar. Estávamos exaustos, e eu sabia bem o peso das minhas escolhas. A escolha foi minha. Eu sabia que se o Cabeça fosse pego, tornaria tudo muito pior, então depois de fazermos um acordo e ele prometer não deixar a minha coroa desamparada, assumi o bagulho sozinho. Não entreguei ninguém, não chorei, não pedi ajuda. O juiz bateu a sentença: doze anos. Doze anos. Na hora que ouvi, pensei que minha vida tinha acabado. Mas foi só no primeiro dia atrás das grades que eu entendi o que era estar morto por dentro e respirando por fora. Cadeia não é lugar de gente, é cova aberta onde a gente caminha vivo. A sobrevivência lá dentro exige mais que força. Exige mente fria, palavra firme e respeito. E isso, graças a minha mãe, eu tinha. Nunca levantei a mão pra mulher, nunca mexi com inocente. Sempre cumpri minha parte e nunca quebrei minhas promessas. Essas coisas, no crime, pesam mais que um fuzil. Passei anos ouvindo o barulho das grades fechando toda noite. Anos sonhando com a rua, com a liberdade que parecia cada vez mais distante. Vi amigo enlouquecer, vi n**o se matar, vi outros se perder no ódio. Eu me agarrei nas palavras da minha mãe. E foi assim que o tempo passou. Lento, c***l, mas passou. Ela sempre tava aqui comigo, toda visita ela fazia questão de vir me ver, nunca soltou minha mão pra nada. Agora, depois de doze anos, eu tô de frente pra uma realidade que eu nunca imaginei: vou sair. E não só sair. A notícia chegou por carta, escrita com letra firme, o que eu fiz foi reconhecido e como forma de agradecimento Cabeça disse que, quando eu botar o pé fora dessa cadeia, o morro é meu. Assumir o comando. Ser o dono da quebrada. Eu devia estar feliz. Devia sentir que finalmente o sacrifício valeu a pena. Mas a verdade é que eu sinto um peso no peito que nem sei explicar. Não pedi isso. Nunca quis ser dono de nada. Mas no movimento não existe recusa. Se a liderança cai na tua mão, ou você segura, ou é enterrado. Penso na minha mãe de novo. No jeito como ela segurava meu rosto quando eu ainda era moleque e dizia que eu ia ser diferente. — Promete, Bernardo. Promete que você nunca vai ser o homem que bate, que humilha, que destrói. — Eu prometi. E até hoje cumpri. Talvez seja isso que eles esperam de mim agora. Que eu seja diferente. Que eu seja o cara que protege o morro, que segura a quebrada unida. Não sei se consigo, mas vou tentar. Porque se tem uma coisa que eu aprendi nesse tempo todo é que o poder não dura. O respeito, sim. Logo vou botar o pé na rua de novo. Vou respirar o ar de liberdade que já nem lembro o cheiro. Vou olhar pro morro não mais como soldado, mas como comandante. E sei, lá no fundo, que esse vai ser só o começo da minha verdadeira vida. Eu não sabia ainda qual era a quebrada que eu ia assumir. A única coisa que eu sabia é que não era o lugar onde eu nasci, o chefe dessa comunidade morreu e como eu tô prestes a sair, acharam que seria uma boa me colocar no comando. Ele se foi há algumas semanas, numa invasão da polícia que deixou o chão coberto de sangue. Um ataque daqueles que chegam sem aviso, helicóptero no ar, blindado subindo rua estreita como se fosse dono de tudo. Só que não foram donos de nada. Levaram o chefe, mas não mataram a história dele. Quem tá na linha de frente agora é o sub e o gerente, dois caras que também acabaram de assumir. Seguram o morro na marra, tentando manter a ordem, mas eu sei como funciona. Quando a liderança cai em mãos novas, o medo corre solto. Todo mundo testa até onde dá pra ir, todo mundo quer ver se o comando é forte ou se vai ruir na primeira ventania. É nesse cenário que eu vou chegar. Não é a minha quebrada de nascimento, mas vai ser a minha quebrada de comando. E isso muda tudo. Eu não vou olhar para esse lugar como um território para explorar. Vou olhar como lar, como família. Porque se tem uma coisa que minha mãe sempre me ensinou, foi respeito. Eu sei que no movimento muita gente esquece disso. Confunde poder com terror, acha que ser dono é só encher o bolso e botar fuzil na mão de moleque. Mas pra mim nunca foi assim. Ser dono de morro é bem mais que segurar arma e gritar ordem. É ser o homem que dá segurança quando a polícia fecha o cerco. É ser o cara que garante que o morador vai poder descer pra trabalhar sem tomar tapa na cara de soldado. Eu aprendi cedo: se você quer ser um bom comandante, precisa primeiro ser um bom dono. E ser dono, no meu entendimento, não é mandar. É cuidar. A favela é feita de gente. De criança correndo com caderno na mão, de mãe carregando sacola pesada, de idoso sentado na calçada vendo o tempo passar. Se eu não tiver essas pessoas do meu lado, nada vai se sustentar. Porque o fuzil impõe medo, mas só o respeito constrói reinado. É isso que eu levo comigo agora que o portão da cadeia que tá prestes a se abrir. Eu não vou herdar só um morro. Vou herdar o medo, a esperança e a vida de todo mundo que mora nele. E eu sei que, a partir do momento que eu botar o pé lá dentro, cada decisão minha vai ecoar em cada viela, em cada barraco, em cada coração que ainda acredita que pode viver em paz, mesmo no meio da guerra.
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