Capítulo 04

1375 Words
Manu narrando Eu já estava quase terminando de limpar a sala, quando eu fiquei um tempo parada, sentada no chão, olhando pro nada. Minha cabeça girava com tanta coisa ao mesmo tempo que eu nem sabia por onde começar a colocar ordem dentro de mim. O barulho das crianças brincando lá fora continuava, como se o mundo estivesse seguindo normalmente, mas dentro da minha casa parecia que um furacão tinha passado. E de certa forma tinha mesmo. Escutei o barulho da porta do banheiro se abrindo devagar e o Dadinho apareceu, enrolado numa toalha. O rosto dele estava abatido, o olhar perdido, como se tivesse carregando um peso que não cabia no corpo dele. Por um instante, eu quase não reconheci o cara que sempre fazia piada de tudo, que tentava mostrar confiança até quando não tinha motivo nenhum pra rir. — Já tá melhor? — perguntei, sem conseguir esconder a dureza da minha voz. Ele assentiu devagar, mas não respondeu. Veio até mim, olhou a bagunça da sala e suspirou fundo. — Eu fiz merda, né? — disse, passando a mão molhada no cabelo. — Fez. — respondi direto, porque eu não tinha mais energia pra passar pano. — Quebrou minhas coisas, minhas lembranças… e quase se acabou junto. Ele abaixou a cabeça, como se fosse uma criança sendo repreendida. Por dentro, eu senti vontade de abraçar, de falar que tava tudo bem, mas não tava. Eu também estava destruída, e se eu aliviasse, ele nunca ia entender o quanto isso doía. — Eu só… — ele começou, mas a voz falhou. — Eu só queria que alguém me enxergasse, Manu. Que olhassem pra mim e dissessem: “esse moleque tem valor”. — Você não precisa se acabar pra provar nada pra ninguém — falei, firme, mesmo com a garganta apertada. — Quem decide seu valor não são esses caras. É você. Ele me encarou com aqueles olhos vermelhos, cheios de lágrimas que ele tentava segurar. Eu vi a dor, mas também vi o medo. O medo de ser esquecido, de ser deixado de lado. — E se eu nunca for nada? — ele perguntou, num sussurro. Fiquei em silêncio por alguns segundos, tentando encontrar a resposta certa. Mas a verdade é que eu não tinha. Eu também me perguntava isso, sobre mim mesma todos os dias. Então eu só disse o que eu sabia ser real: — Então você vai ser alguém pra mim. E isso já é alguma coisa. Ele respirou fundo, desviou o olhar e foi se vestir. Eu continuei ali na sala, recolhendo os últimos cacos. Minhas mãos tremiam, mas eu insistia, porque era isso ou desmoronar de vez. Quando ele voltou, vestido com uma bermuda velha, se jogou no sofá de qualquer jeito e ficou em silêncio. Eu terminei de limpar, lavei as mãos e sentei do outro lado da sala, de frente pra ele. O clima estava pesado, mas tinha uma parte de mim que não queria deixar isso virar só mais um buraco. — Dadinho… — chamei. Ele levantou os olhos. — Se você quiser mesmo ser reconhecido, começa por você. Para de se autodestruir. Para de tentar provar pros outros. Mostra pra si mesmo. Ele ficou me olhando, sério, como se aquelas palavras tivessem batido em algum canto escondido dele. Depois soltou um riso fraco, quase irônico. — Fala bonito, hein, Manu. — disse. — Você devia ser psicóloga, não aviãozinho. Revirei os olhos, mas por dentro, senti uma pontada de orgulho. Eu sempre me esforcei pra ser discreta, pra não me envolver demais com nada. Mas, naquele momento, percebi que talvez eu fosse o único pilar que ele ainda tinha em pé. E isso me assustava. Porque se ele caísse de vez, será que eu ia ter força pra segurar nós dois? Depois de um tempo em silêncio, meu estômago começou a reclamar. Já era tarde, eu não tinha colocado nada no corpo desde cedo, e só agora percebi o vazio me corroendo por dentro. Olhei pro Dadinho largado no sofá, com a cara cansada, e pensei que talvez a melhor forma de puxar ele de volta fosse com alguma coisa simples, básica, que sempre salvou a gente nas horas ruins: comida. Levantei sem falar nada, fui até a cozinha e comecei a preparar o que tinha. Coloquei arroz no fogo, tirei o feijão do congelador e coloquei no microondas para descongelar. Peguei a carne e eu já deixo separada em cubinhos, cortei tudo, refoguei com alho, botei bastante cebola porque eu sabia que ele gostava, e deixei a panela trabalhar no fogo baixo. Enquanto o cheiro ia tomando conta da casa, senti que um pouco da bagunça dentro de mim também se ajeitava. Cozinhar sempre foi isso pra mim: um jeito de organizar a mente. Enquanto mexia a panela, lembrei da minha mãe, de quando ela chegava exausta do trabalho e ainda fazia questão de preparar comida pra gente. “Comida é abraço em forma de prato”, ela dizia. Eu nunca entendi muito bem até hoje. Agora fazia sentido. — Tá cheirando bem, hein… — ouvi a voz do Dadinho atrás de mim. Ele se encostou no batente da porta da cozinha, de braços cruzados, me observando. — Vai sentando — respondi, sem olhar. — Já tá quase pronto. Ele obedeceu. Peguei dois pratos, servi a comida e levei até a mesa. Sentamos frente a frente. No começo, nenhum dos dois falou nada, só o barulho dos talheres batendo. Mas a cada garfada eu via a expressão dele mudar, como se aquela comida simples estivesse puxando ele de volta pro chão. — Tava precisando disso — ele disse, depois de um tempo. — Obrigado, Manu. Dei de ombros, mas por dentro fiquei quente. — Se cuida, Dadinho. Não quero te ver daquele jeito nunca mais. Ele assentiu, mas eu conhecia bem o olhar dele. Era aquele “sim” que não prometia nada. Quando terminamos, levantei para lavar os pratos. Enquanto eu estava de costas, ouvi o barulho de gaveta abrindo. Virei rápido e vi o Dadinho pegando a sacola onde eu tinha guardado a grana da entrega. — O que você tá fazendo? — perguntei, já sabendo a resposta. Ele contou as notas com calma, como se estivesse conferindo um prêmio. Depois enfiou tudo no bolso da bermuda. — Vou levar pro Danzinho. — disse, sem olhar pra mim. — Preciso mostrar que ainda tô no jogo, que não tô de fora. Fui até ele, segurei o braço. — Tudo bem, e já vê se a entrega de amanhã já está separada, acho que amanhã é na boate do senhor Jorge. Ele me encarou, sério porque ele odeia que eu vá naquele lugar, senhor Jorge vive dizendo que eu sou muito bonita e que eu aceitasse trabalhar lá para ele eu renderia uma boa grana. — Pode pah, daqui a pouco eu tô de volta, se eu demorar é porque tô esperando eles separarem a carga, quem sabe eu trocando um papo com o Danzinho, ele não me ajuda a subir de patente, ainda vão escolher os chefes dos vapores. — Você tá sempre se vendendo pros outros, Dadinho. Quando é que você vai entender que ninguém lá em cima se importa com você? Para de ficar tentando provar que você é bom, porque você acaba se sobrecarregando fazendo o seu trabalho e o dos outros e ninguém nota. Ele puxou o braço, duro. — Eu me importo. Eu não vou ser esquecido, Manu. Não tive mais o que dizer. Fiquei parada, vendo ele ajeitar a roupa, passar a mão no cabelo e se preparar para sair como se tivesse indo pra um encontro importante. Antes de bater a porta, ele olhou pra mim e tentou um sorriso fraco. — Daqui a pouco eu tô de volta. A porta se fechou. O silêncio que ficou foi tão pesado que parecia gritar dentro da casa. Me apoiei na pia, respirei fundo e senti as lágrimas queimando os olhos, mas não deixei cair. Eu já estava cansada de chorar. O que eu queria mesmo era gritar pra ele que ele não precisava provar nada, que ele já era suficiente. Mas no fundo, eu sabia: o morro não deixa ninguém acreditar nisso.
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