Danzinho narrando
Eu nunca pedi pra vida ser fácil, não. Desde pequeno aprendi que se eu quisesse alguma coisa, ia ter que correr atrás. Meu pai morreu cedo demais, minha mãe sumiu no mundo dizendo que queria ser atriz, que aquele lugar não era pra ela. Nunca mais voltou. Então, quem me criou de verdade foi minha avó. Uma mulher guerreira, forte, que mesmo com as limitações nunca deixou faltar nada dentro de casa.
Eu e a Cecília, minha irmã mais nova, crescemos no colo dela. Cecília hoje tem dezessete anos, e eu não canso de me orgulhar dessa menina. Desde cedo, sempre foi estudiosa, dedicada, o tipo de pessoa que parece carregar dentro dela uma esperança diferente da que a gente tá acostumado a ver no morro. Quando ela passou numa prova e foi aceita na faculdade de medicina mesmo ainda sem ter completado dezoito anos, eu quase chorei de alegria. É como se, através dela, eu visse uma chance de redenção para nossa família. Ela vai ser médica. E eu vou fazer de tudo para garantir que nada atrapalhe esse futuro.
Só que a vida não para de testar a gente. Ano passado, minha avó recebeu o diagnóstico que nenhum de nós queria ouvir: câncer. Eu me lembro do dia em que ela me chamou no quarto, com aquele olhar sereno, e disse: “Não se preocupe, meu neto, eu já vivi bastante”. Mas como não me preocupar? Era ela quem segurava tudo de pé, e agora dependia de mim. Desde então, eu me desdobro pra fazer dinheiro extra, porque o tratamento é caro, e mesmo com a ajuda da aposentadoria dela, eu sei que se eu não me mover, as coisas desandam.
Foi aí que entrei de cabeça no corre. Eu nunca quis essa vida. Meu sonho sempre foi ser jogador de futebol. Até hoje, quando consigo uma folga, corro pra quadra, bato uma bola, esqueço do mundo. É ali que eu respiro, que eu lembro quem eu poderia ter sido se as coisas fossem diferentes. Mas o corre foi a única saída que encontrei para manter a casa de pé e garantir o tratamento da minha avó.
Há uns dias, o morro virou um inferno. A polícia subiu com tudo, dois dias seguidos de caveirão, tiro, helicóptero. Eles mataram o Foguete e o Martelo, dois caras de peso aqui dentro. Eu vi com meus próprios olhos o desespero dos moradores, as casas sendo reviradas, as crianças chorando. A sensação era de que a gente era rato sendo caçado. E mesmo assim, eles não conseguiram pacificar o morro.
Depois disso, quem apareceu foi o Cabeça, o chefão da facção. Ele trouxe a notícia que mudou minha vida: em alguns dias chegaria o novo dono do morro. E, até lá, eu estava no comando já que agora eu seria o sub, com o Leto de gerente. Eu fiquei em choque. Nunca imaginei que alguém fosse olhar pra mim com esse tipo de confiança. E não vou negar: na hora, minha primeira reação foi pensar no dinheiro. Mais grana significa melhor tratamento pra minha avó, mais condições pra minha irmã focar nos estudos.
Mas ser sub também significa responsabilidade. E eu não sou burro, sei que qualquer deslize pode custar minha vida.
Assim que voltei pra casa, contei pra minha avó e pra Cecília da novidade. As duas ficaram preocupadas, claro. Minha avó, mais ainda. Ela me olhou com aqueles olhos cansados e disse que não queria me ver perder a vida no mesmo mundo que já levou tantos. Mas eu tentei tranquilizar, prometi que sempre voltaria pra casa. Essa promessa eu não sei se vou conseguir cumprir, mas precisava dar a elas algum tipo de paz.
Hoje acordei cedo, decidido a entender como as coisas funcionam agora. Não tenho manual, não tem ninguém me ensinando. O Martelo fazia de tudo: cuidava da contabilidade, das rondas, da segurança. Vou ter que dividir essas funções com o Leto e, na marra, aprender o que significa ser sub.
É verdade o que dizem: quanto mais alto o cargo, mais mulher aparece. Nem deu tempo da notícia correr direito e já tem uma porção de mina querendo ficar comigo. Mas eu não sou bobo. Sei que a maioria só enxerga o poder, a grana. No fundo, eu sempre tive olhos pra uma só. Uma que nunca me deu moral, que me humilhou dizendo que jamais ficaria com um “vaporzinho”.
Quero só ver agora que as coisas mudaram se ela vai olhar pra mim diferente.
O dia foi longo. Resolvi umas pendências, conferi as contas que o Leto deixou organizadas, dei uma volta pra mostrar presença. Cansaço pesando no corpo, eu já pensava em voltar pra casa quando o Dadinho apareceu na boca com um malote.
Eu conheço a Manu desde os tempos de escola. A gente estudou na mesma sala. Eu lembro de como ela era fechada, sempre na dela, mas ao mesmo tempo firme. Quando ela entrou no movimento como aviãozinho, fiquei surpreso. Pouca gente sabe dessa parte da vida dela, porque ela é ligeira, discreta. E talvez seja isso que eu mais admira nela: nunca precisou falar alto pra ser respeitada.
— Eu trouxe a grana da droga que a Manu foi levar mais cedo — ele disse, meio apressado. — Já vim ver se o que ela precisa levar amanhã já tá separado.
Olhei pra ele com atenção. Dadinho sempre foi um cara atuante, presente, desses que corre de verdade. Pra falar a real, eu sempre achei que ele seria um dos que subiriam de patente. Ver ele ali, entregando o malote, me deu uma sensação estranha.
Peguei a grana da mão dele, pesado o suficiente pra me lembrar do risco que a Manu correu pra trazer aquilo. Abri a porta da minha sala, dei um passo pra dentro e acenei com a cabeça pra ele.
— Já tá sim. O Leto já deixou separado aqui.
Ele entrou, pegou a carga nova, agradeceu e saiu sem muita conversa.
Fiquei sozinho na sala, contando o dinheiro, pensando em como tudo tinha mudado tão rápido. Eu agora era responsável por cada nota, cada decisão, cada vida que dependia das minhas ordens. A pressão era gigante. Mas ao mesmo tempo, era a oportunidade que eu precisava para segurar minha família.
E enquanto o barulho do morro seguia lá fora, eu só pensava em uma coisa: não importa o que aconteça, eu não posso falhar. Nem comigo, nem com eles.