Fantasma narrando
Parece que quando você sabe que vai sair do inferno a hora não passa. Essa semana foi como se arrastasse, cada minuto demorava uma eternidade, como se o relógio tivesse pregado uma peça em mim. Quando finalmente o agente penitenciário bateu na minha cela avisando que eu tava livre, eu só levantei, largando tudo pra trás. Porque, de um lugar como esse, você não leva nada. Nada que valha a pena.
Fizeram a revista geral, como de costume, cada centímetro do meu corpo sendo inspecionado como se eu ainda fosse algum tipo de ameaça. Depois botaram os papéis na minha frente, e eu assinei meu salve-conduto com a mão firme, mas por dentro, o coração disparava. O portão rangeu, abriu, e quando fechou atrás de mim… mano, foi como se uma tonelada tivesse saído das minhas costas. Aquele barulho metálico ecoou nos meus ouvidos como uma sentença diferente: dessa vez não de prisão, mas de vida nova.
Respirei fundo, enchendo os pulmões de um ar que parecia outro. O céu estava ali, aberto, azul, sem barras, sem grades. Do lado de dentro eu até conseguia ver, mas nunca era igual. Agora, olhar assim, livre, me fez cair a ficha: eu tava fora. Eu tava vivo de novo.
Comecei a descer a rua, ainda meio perdido. Cada passo parecia estranho, como se eu tivesse desaprendendo a andar. E foi aí que percebi: tinha um carro preto andando devagar atrás de mim. O motor roncava baixo, mas eu percebia o movimento. Apertei o passo, porque, na moral, eu não fazia ideia de quem poderia ser. E quando a gente sai do sistema, qualquer sombra vira ameaça.
— Qual foi, cria, vai ficar correndo de mim? — ouvi uma voz que fazia anos que não escutava.
Parei na hora. Virei devagar e vi ele: Cabeça. No banco do motorista, com aquele mesmo sorriso debochado de sempre. Na hora, meu instinto foi olhar pros lados, ver se não tinha ninguém por perto.
— Tu brinca muito, maluco. Que porr.a você tá fazendo aqui? — perguntei, já sentindo a estranheza de reencontrar alguém que fez parte da minha vida antes do inferno começar.
Ele abriu a porta do carro, me chamando.
— Achou mesmo que eu não ia vir buscar meu fiote? Tu passou anos aí dentro pra salvar minha pele. O mínimo que eu podia fazer era tá aqui pra te receber.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, só encarando ele. Depois balancei a cabeça, aceitei, e entrei no carro. Ele estendeu a mão, e a gente fez o toque, aquele mesmo de anos atrás. Engraçado como algumas coisas ficam guardadas no corpo, mesmo depois de tanto tempo.
— Sua coroa já tá lá no morro te esperando. Já deixei avisado que você chegava hoje. Teus homens também estão na espera.
— Acha mesmo que eu vou dar conta de um morro? — soltei, meio rindo de lado, meio sério. — Eu era só um vapor quando fui preso.
Cabeça balançou a cabeça, firme.
— As coisas mudaram, cria. O tempo passa, mas o respeito fica. Você fez o que quase ninguém faria. Então agora é tua vez. Qualquer dúvida, qualquer parada que precisar, é só me ligar que eu venho na hora pra te fortalecer.
— Jáé.
O resto do caminho foi ele falando das paradas do morro, das mudanças, dos aliados, dos inimigos, do dinheiro que circula. Eu ouvia calado, absorvendo cada detalhe. Ele me dizia que eu precisava ser duro, que se eu mostrasse moleza os caras iam montar em cima. Que eu tinha que prezar pelos meus moradores porque na hora do sufoco é ele que nos ajuda, e que eu tinha que saber manusear a grana porque se eu fosse emocionado, logo mais o meu morro ia falir e eu ia entrar no prejuízo. Eu só respirei fundo e respondi:
— Uma coisa que eu aprendi nesses anos todos foi como não deixar ninguém montar em cima de mim. Lá dentro a gente dorme com um olho aberto e o outro fechado. Você escuta a caminhada de uns, mas nunca conhece realmente quem está do seu lado.
Ele ficou em silêncio por uns segundos, me olhando de canto, como quem sabe que eu não era mais o mesmo moleque que entrou.
Quando a gente chegou no morro, o clima mudou. Os vapores começaram a atirar pro alto, saudando a minha chegada. O som ecoava pelos becos, e por onde a gente passava, os moleques acenavam com a cabeça, em sinal de respeito. Era estranho, quase surreal. Eu que saí de lá como um nada, agora voltava sendo tratado como alguém grande.
— Quer descer e falar com geral ou quer ir direto pra casa ver tua coroa? — Cabeça perguntou, com o carro já subindo as ladeiras.
— Pode ser direto pra casa. Tô na maior larica. Depois que eu comer alguma coisa e tomar uma ducha, eu saio pra conhecer o morro e geral.
Ele confirmou com a cabeça e acelerou até a minha nova goma.
Minha coroa já tava do lado de fora me esperando. Quando me viu descer do carro, ela ajoelhou no chão e começou a chorar, agradecendo a Deus em voz alta. Cada lágrima dela era como um soco no meu peito. Eu tinha feito essa mulher sofrer demais. E agora, vendo ela ali, me esperando depois de todos esses anos, foi impossível não me emocionar também.
— Meu filho, graças a Deus, graças a Deus! — ela repetia, me abraçando como se nunca mais fosse soltar.
Abracei de volta, forte. Respirei fundo, sentindo o cheiro dela, da rua, do morro, de tudo que eu tinha perdido. Por alguns segundos, o mundo sumiu. Era só eu e ela.
Entrei em casa, e olhei em volta. Aqui é bem diferente da minha antiga casa que era bastante humilde. Parece aquelas casas de gente rica que eu via no filme, mas o cheiro de comida na panela me acertou direto no estômago. A larica era real. Minha mãe tinha preparado feijão, arroz, farofa e um pedaço de carne. Sentei na mesa como se fosse um rei, e ela serviu o meu prato com as mãos tremendo de emoção.
Enquanto eu comia, ela falava de tudo que tinha acontecido durante os anos. Quem morreu, quem nasceu, quem sumiu. Eu ouvia, mastigando devagar, tentando colocar ordem em tudo que entrava na minha cabeça. Cada notícia era um pedaço do mundo que eu tinha perdido.
Quando terminei, tomei uma ducha. A água batendo no meu corpo foi quase uma bênção. Me senti renascendo. Olhei pro espelho e quase não reconheci o homem refletido ali. Não era mais o moleque que saiu, não era só um ex-presidiário. Era o Fantasma. E agora eu estava prestes a recomeçar uma vida nova.
Saí do banheiro, sentei na varanda, acendi um cigarro e fiquei olhando o morro se movimentando lá fora. Cabeça tinha razão: daqui pra frente, qualquer passo em falso podia custar caro. Eu não podia vacilar. E no fundo, eu sabia: aquele era só o começo.