O Recomeço

873 Words
O avião pousou suavemente no Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro. Eram quase sete da manhã e o sol nascia entre nuvens pesadas, tingindo o céu com tons de laranja e cinza. Karen apertava o cinto de segurança, observando pela janela a cidade que um dia chamou de lar. O coração batia forte — não de ansiedade, mas de determinação. Ela desceu da aeronave carregando uma mala média e uma mochila. Tudo o que tinha. Mas, dessa vez, ela não trazia lágrimas ou dúvidas. Ela voltava diferente. Ainda era jovem, com apenas 17 anos, mas o que vivera nos últimos anos havia esculpido uma mulher mais firme, mais atenta, mais ciente do que precisava fazer. Na área de desembarque, sua avó, Dona Elza, a esperava com os olhos marejados e os braços abertos. O tempo havia deixado marcas no rosto da senhora, agora ainda mais enrugado, mas o sorriso era o mesmo — acolhedor, forte, maternal. — Minha menina... — disse ela, apertando Karen com força. — Como você cresceu... Karen se aninhou no abraço da avó por alguns segundos, permitindo-se aquele momento de fragilidade. Era o único lugar do mundo onde ainda se sentia verdadeiramente segura. --- O apartamento em Copacabana parecia menor do que ela se lembrava, mas carregava uma paz que nenhum dos cômodos luxuosos da casa de Márcia em Orlando jamais teve. As paredes amarelas, o cheiro de bolo recém-assado, o som distante das ondas batendo na praia. Tudo aquilo era familiar. Era lar. Karen sabia que precisava recomeçar do zero. Estava no terceiro ano do ensino médio e, mesmo fluente em inglês e com bagagem internacional, queria terminar os estudos no Brasil. Matriculou-se em um colégio particular no bairro, graças a uma reserva deixada por seus pais. O dinheiro não era um problema. O que faltava, agora, era rumo. No início, sentiu olhares curiosos dos colegas. Era a garota que viera dos Estados Unidos, com roupas discretas, postura séria e uma aura de mistério. Mas Karen não se deixava afetar. Ela não queria amigos. Não naquele momento. Queria resultados. Enquanto os colegas se divertiam nas festas de fim de semana, Karen passava as noites estudando, lendo, se aprofundando em temas que iam além da escola. Começou a se interessar por negócios, por finanças, por gestão. Descobriu que seu pai deixara uma pequena holding com ações em empresas de médio porte. A avó nunca mexera nos documentos, mas Karen, com a ajuda de um advogado da família, começou a entender o que tinha nas mãos. E foi ali que surgiu o primeiro vislumbre de poder. Ela percebeu que podia fazer aquilo crescer. Que podia transformar a herança dos pais em algo muito maior. Começou a ler sobre mercado, acompanhar jornais econômicos, fazer cursos online. Tornou-se obsessiva, mas não no sentido negativo — era foco puro. Como se cada novo aprendizado fosse uma peça para reconstruir sua identidade. Meses se passaram. Karen terminou o ensino médio com notas impecáveis. Fez o ENEM, passou com facilidade para Administração em uma das melhores universidades do país. Recusou o curso noturno — queria estar entre os melhores. E estava. Logo chamou a atenção dos professores com sua maturidade e inteligência. Era uma aluna que ouvia mais do que falava, mas quando falava, todos prestavam atenção. No segundo semestre da faculdade, fez estágio em uma consultoria financeira. Ficava horas extras, absorvia cada processo como se fosse ouro. Um dos sócios chegou a comentar: “Essa menina tem mais garra que muito executivo de terno caro por aí.” Karen crescia. Mas não se esquecia. David ainda era uma sombra em sua memória. Não por saudade — isso havia morrido no dia em que ele a expôs ao ridículo. Mas como símbolo. Ele representava tudo o que ela não queria mais ser: vulnerável, submissa, dependente. E ela usava essa lembrança como combustível. Aos 20 anos, após a morte da avó — seu último elo emocional —, Karen decidiu dar o passo mais ousado de sua vida até então: assumiu o controle das empresas da família. Contratou um time de confiança, fez auditorias, enxugou gastos, renegociou contratos e reestruturou setores. Dentro de dois anos, a holding passou a lucrar quatro vezes mais. O nome de Karen começou a circular no mercado como uma jovem executiva promissora, respeitada e temida. A menina de olhos tristes havia dado lugar a uma mulher de olhar firme, postura imponente e decisões certeiras. Seu escritório ficava em um prédio empresarial na Barra da Tijuca, com vista para o mar. Era espaçoso, minimalista, elegante — um reflexo dela. Nada de exageros. Apenas presença. Ela evitava entrevistas, raramente aparecia em eventos sociais, mas sua reputação falava por si. Sabia que no mundo corporativo, especialmente sendo mulher e jovem, precisaria ser três vezes melhor do que os homens para ser levada a sério. E era exatamente isso que ela fazia: ser impecável. Mas, mesmo com todo o sucesso, Karen sentia algo incompleto. Havia construído um império sobre os escombros do passado, mas parte dela ainda se perguntava como seria o dia em que ele — David — aparecesse. Se é que apareceria. E o que ela faria quando isso acontecesse. Ela não sabia, mas aquele momento estava cada vez mais perto.
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