O som dos pneus cantando no asfalto molhado ainda ecoava na cabeça de Karen. Quatro anos tinham se passado, mas aquele momento continuava gravado em sua memória como uma ferida aberta que insistia em sangrar. O cheiro de gasolina, os gritos, o vidro quebrado... e, principalmente, o silêncio que veio depois. O silêncio da morte.
Era uma tarde chuvosa quando tudo aconteceu. Os pais de Karen, Alexandre e Helena, voltavam de um fim de semana na serra. Tinham deixado a filha na casa da avó para que pudessem aproveitar um raro momento a dois. Karen, com apenas 13 anos, passou o domingo desenhando e ouvindo música no pequeno apartamento da avó, em Copacabana, sem saber que aquela seria a última vez em que veria os pais com vida.
O telefone tocou às 18h47. A avó atendeu. O rosto enrugado dela empalideceu, e a mão trêmula segurou o aparelho como se ele pesasse toneladas. “Karen, meu amor... vem aqui, senta comigo.” A menina percebeu na hora que algo estava errado. Quando os olhos da avó se encheram de lágrimas e a voz falhou ao dizer “seus pais...”, o mundo de Karen começou a desmoronar.
A dor era algo que ela nunca tinha conhecido até aquele momento. Doeu mais do que qualquer machucado, mais do que qualquer briga de escola, mais do que qualquer castigo. Doeu em lugares que ela nem sabia que existiam. A ausência dos pais se espalhou pela casa como um vazio constante. Fotos, roupas, objetos... tudo se tornou lembrança e, ao mesmo tempo, tortura.
Os meses seguintes foram um borrão. A avó, já idosa e com saúde frágil, fez o possível para cuidar da neta. Mas a dor compartilhada era um peso difícil de carregar. Karen passou a viver entre o colégio, as sessões com a psicóloga e o silêncio. Chorava escondida à noite, se recusava a sair com as amigas e se fechava em si mesma. Até que, quase um ano depois, a vida resolveu mudar de novo.
Márcia, irmã da falecida mãe de Karen, apareceu após anos de pouco contato. Ela morava nos Estados Unidos com o marido, Brian, e o enteado, David. Tinha uma vida confortável em Orlando e, ao saber da situação da sobrinha, decidiu levá-la para viver com ela. “Karen terá mais oportunidades aqui”, disse Márcia à avó, que, com o coração apertado, aceitou que a neta tivesse um futuro melhor.
E assim, aos 14 anos, Karen embarcou em um avião sozinha. Uma mala, um coração partido e um passaporte marcado por uma perda irreparável. A chegada em Orlando foi gelada, tanto pelo clima quanto pela recepção. Márcia era educada, mas distante. Brian, um empresário ocupado, m*l a notou. E David... bem, David foi a primeira faísca de algo que Karen não sabia se era admiração, raiva ou confusão.
Ele tinha 16 anos na época, cabelos castanhos bagunçados, olhos intensos e um sorriso convencido que parecia ter sido moldado para provocar. Era bonito, sim. E sabia disso. Mas também era arrogante, mimado e adorava deixar claro que Karen era uma intrusa em seu mundo. No início, ele apenas a ignorava. Depois, passou a provocá-la. Fazia piadas sobre seu sotaque, seus hábitos brasileiros, sua roupa. Cada palavra dele era uma agulha, e Karen, ainda frágil, absorvia tudo em silêncio.
Mas o silêncio virou admiração. A admiração virou uma paixão platônica. E, aos 17 anos, Karen já não conseguia esconder que sentia algo por David. Ele, por sua vez, parecia se divertir com aquilo. Era como se gostasse de ter poder sobre ela. Exibia suas namoradas na frente dela, falava de suas aventuras amorosas sem o menor pudor. Karen sofria calada, fingia indiferença, mas por dentro, cada palavra dele era uma lâmina.
O golpe final veio numa noite de verão.
Eles estavam sozinhos em casa. Márcia e Brian tinham saído para um jantar de negócios. David estava estranho, mais calmo, quase gentil. Colocou um filme para os dois assistirem, sentou-se ao lado dela no sofá. Pela primeira vez, não zombou, não provocou. Karen sentiu o coração disparar quando ele segurou sua mão. “Você está bonita hoje”, disse ele, com uma voz baixa. Ela não sabia o que pensar, nem como agir. Quando ele a beijou, ela se entregou sem hesitar.
Naquela noite, Karen se sentiu viva. Acreditou, ingenuamente, que aquele era o começo de algo novo. Que David tinha finalmente enxergado nela mais do que uma órfã deslocada. Mas, no dia seguinte, ele agiu como se nada tivesse acontecido. Pior: contou aos amigos, fez piada, e voltou para os braços da ex-namorada.
Karen se trancou no quarto por dois dias. Márcia tentou entender, mas Karen não quis explicar. Pela primeira vez, sentiu vergonha de si mesma. Sentiu-se usada, humilhada, i****a. E foi naquele momento que ela soube: precisava ir embora.
Pediu para voltar ao Brasil. Inventou que sentia saudades da avó, que queria terminar os estudos em casa. Márcia não questionou muito. Talvez até tenha se aliviado. Brian assinou os papéis, compraram a passagem. David nem se despediu.
No voo de volta ao Brasil, Karen olhou pela janela e fez uma promessa silenciosa. Nunca mais deixaria que alguém a diminuísse. Nunca mais se colocaria em segundo plano. Nunca mais deixaria que alguém a fizesse sentir-se fraca.
Ela ainda era uma adolescente. Mas uma semente de força e ambição havia sido plantada dentro dela. Uma semente que, nos anos seguintes, cresceria e transformaria Karen em uma mulher capaz de comandar impérios — e de encarar qualquer fantasma do passado de cabeça erguida.