Prólogo — Prova de Traição
"Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho".
(Machado de Assis - Dom Casmurro)
Clarice Telles, nossa professora de Português e Literatura e uma das mais experientes do Santa Virgínia, terminou de distribuir os maços de provas para os primeiros alunos de cada fileira.
— E aí, tá preparada? — Perguntei à Milena quando ela se virou para trás e me entregou as provas.
— Até estou. — Minha amiga respondeu, confiante. — Eu gostei do livro, de verdade. Acho que isso ajuda.
Molhei o dedão na ponta da língua, retirei uma prova para mim e estiquei o braço por sobre o ombro, sentindo a mãozinha esmaltada de Sofia Spoladore pegar o maço de sulfite com as demais avaliações.
— Bom pra você, porque eu achei um saco! — Expressei toda a minha frustração por ter passado o fim de semana lendo aquele livro velho e que nem tinha um final decente. — Eu não acredito que perdi dois dias lendo isso, ainda mais que no final nem dá pra saber se ela trai o carinha ou não.
— Mas o que você acha? Que ela traiu mesmo?
Essa era uma pergunta que eu, sinceramente, não sabia responder. Mesmo tendo "maratonado" o livro em pouquíssimo tempo. Acho que o meu desinteresse e falta de boa vontade não me permitiram prestar atenção nos detalhes essenciais na solução daquele clássico enigma literário.
— Sei lá. — Dei de ombros. — Espero que a Clarice não tenha colocado uma questão como essa na prova, porque senão eu vou me ferrar.
Por mais que estivéssemos murmurando, Clarice não deixou a menção de seu nome passar batido e se virou em direção à nossa fileira.
— Pelo visto eu vou ter que separar vocês, né? — Professora Clarice comentou em sua vozinha embolada. — Otávio, pega suas coisas e vai sentar atrás do Anderson. Faz favor.
A contragosto, peguei minha caneta, prova e cruzei a sala. Anderson me lançou um olhar de esguelha quando passei por ele e ocupei o lugar do seu amiguinho de time na carteira atrás da sua. Era curioso, engraçado até, como o destino insistia em nos colocar um no caminho do outro. Primeiro foi a carona. Depois a proposta maluca. E agora isso. O que mais viria pela frente?
Fomos autorizados a virar as provas e uma breve onda de barulho de sulfite subiu na sala. Comecei a preencher o cabeçalho, quando olhei para a frente por alguns segundos. Dei de cara com as costas largas de Anderson espremidas dentro da camiseta azul do uniforme, inconvenientemente menor para seu porte físico. Um pedaço de sua pele n***a, coberto por uma penugem finíssima, tinha sobrado para fora e terminava só no cós branco da cueca Calvin Klein.
Senti um arrepio leve subir por meu corpo. Por que eu me sentia assim em relação a ele? Pelo visto Lara tinha razão, o nome daquilo era TPM masculina: tensão pré-m*********o.
Voltei minha atenção para a prova. Comecei a ler a primeira questão, tentando manter meus olhos longe das costas de Anderson, que por sua vez batia pensativamente uma caneta contra a carteira. Ele ficava inquieto quando em situações de tensão, percebi isso no dia em que me fez sua proposta.
Anderson continuou imitando um baterista de carteira e aquele "tic tic tic" estava me desconcentrando. Mais do que sua… Bem, peça íntima de grife. Pelo amor de Deus, meu filho, vai bater essa caneta no inferno!
Limpei a garganta alto o suficiente para mandar o recado. Anderson deu uma viradinha para trás e abriu seu sorriso aparelhado. Largou, enfim, a caneta em cima da carteira. Pude voltar à prova em paz.
4) Um dos personagens relembra à D. Glória da promessa de fazer seu filho padre e, portanto, da necessidade de colocá-lo em um seminário. Qual era esse personagem?
Assinalei a alternativa onde estava o nome "José Dias, o agregado". Lembrei da influência que José Dias tinha na casa de D. Glória, muitas vezes fazendo o papel de informante de Bentinho. E não era isso que tinha me tornado para Anderson ao aceitar sua proposta?
Meu colega de sala queria se aproveitar da minha habilidade para fazer amizade com meninas e obter informações preciosas que confirmassem ou refutassem suas desconfianças em relação à Alana. E foi dessa forma que eu me tornei um "agregado" no grupo das Meninas do Vôlei. “Você quer que eu fique amigo da Alana pra descobrir se ela tá te traindo, é isso?”, cheguei a perguntar, incrédulo, no dia da nossa conversa.
Sim, era isso que o marrentinho queria. Uma ideia absurda e na qual eu já estava atolado até o pescoço. Tentei não ficar pensando nisso naquele momento e voltar a me concentrar na prova. Eu já tinha respondido quase todas as questões, faltavam só mais duas para terminar.
9) Qual o principal motivo pelo qual Bento Santiago desconfia ter sido traído por Capitu? Escreva sua resposta.
Comecei a espremer minha letra espaçosa no minúsculo trecho em branco. Eu me lembrava vagamente qual era o motivo da desconfiança de Bentinho, mas não era esse o pensamento que mais ecoava em minha mente. De repente, uma epifania. Comecei a enxergar, com estranheza e até mesmo certo espanto, a semelhança entre a história do livro Dom Casmurro e a situação na qual eu tinha me metido com Anderson e Alana.
A exemplo de Bentinho, Anderson também era assombrado pela incerteza de uma possível infidelidade por parte de sua amada… E foi essa possibilidade que o levou a articular tudo aquilo.
10) Com base na sua leitura da obra de Machado de Assis, você acha que Capitu traiu ou não o personagem-título?
O meu maior medo tinha se concretizado. Aquela questão era tão difícil de ser respondida... Anderson terminou sua prova, entregou-a para Clarice e deixou a sala. Acompanhei sua retirada, discretamente, com o olhar. Olhei para a questão e parece que de repente ela havia se reformulado para: você acha que Alana traiu ou não Anderson?
Mordi a caneta. Eu ainda não tinha conseguido chegar àquela conclusão. Mesmo quase um mês depois da aproximação. Alana era muito mais difícil do que eu imaginava. Difícil não, complexa.
Por outro lado, Anderson estava cada vez mais ansioso por respostas e eu não conseguia fornecê-las. O que era injusto, considerando que ele vinha cumprindo fielmente sua parte da proposta. Por incrível que pareça, desde que fechamos nosso acordo, as gracinhas do Escroto-mor do Nicolas e cia haviam diminuído bastante.
Mas e eu? Nada. Alana era bem fechada. Muito me admirava o Anderson, tão próximo dela, não enxergar o quanto sua própria namorada não era dada a confissões. Nem desabafos. Enigmática como só a própria Capitu de Machado de Assis poderia ser.
Anderson era o Bentinho: cegamente apaixonado, mas desconfiado e Dom Casmurro. Eu, o José Dias, informante. Bastava descobrir a identidade do Escobar, o amante… Porque ele existia. Eu sentia isso. Mas me faltavam provas. E esse pensamento, por si só, me deu a resposta da questão da prova.
Escrevi com letra determinada a minha opinião sobre o suposto adultério proposto por Machado de Assis. Então, eu me levantei, fui até a mesa de Clarice e deixei a minha prova sob seu olhar de loba à espreita.
Eu iria encontrar um nome para o amante de Alana. De uma forma ou de outra. Faria o possível e o impossível para transmitir a Anderson provas daquela traição. Assim, cumpriria minha parte no trato e ainda… Ganharia pontos com ele? Não, Otávio, não pensa nisso!
O importante naquele momento era somente cumprir meu papel naquela Operação Capitu e me livrar do Candidato a Corno o quanto antes. Depois que aquilo acabasse, não teríamos mais contato. Operação Capitu… Parei na porta da sala, pensando no nome que surgiu do nada na minha cabeça. Tinha tudo a ver com o rolo do Anderson… Eu me lembrava do próprio Machado de Assis ter dito no livro algo sobre ideias sem pernas, nem braços. Ah, mas aquela ideia não tinha só perna e braço, como o corpo todo. E na hora me pareceu bem genial (e aqui eu deixo a modéstia um pouco de lado).
É… Eu iria ter sucesso na Operação Capitu e provar para Anderson minha capacidade. De um jeito ou de outro.
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