— LUA DE SANGUE
A música ancestral da matilha vibrava pelo ar como se a floresta respirasse junto com centenas de lobos reunidos na clareira principal. O ritual da Lua de Sangue acontecia apenas uma vez por geração, e cada detalhe — das tochas alinhadas em semicírculo aos mantos cerimoniais — parecia planejado para agradar deuses antigos que ninguém mais lembrava pelo nome. O território do Leste estava em festa. Ou pelo menos fingia estar.
Nos bastidores da celebração, onde o cheiro de incenso se misturava ao aroma metálico do sangue de caça recém-derramado, Clara mantinha os olhos baixos enquanto as mãos de Kauã apertavam os seus ombros com força suficiente para deixar marcas. Ele inclinou o corpo para perto dela, a sua respiração quente e impregnada de arrogância tocando a lateral do rosto da jovem.
— Ouse cometer um único erro esta noite… e perderá tudo. — A voz dele não precisou subir; o veneno estava no tom, no modo como cada palavra escorria lenta, deliberada, para garantir que ela compreendesse o poder que ele acreditava ter sobre ela.
Clara engoliu seco. O seu coração batia tão alto que quase abafava o barulho das festividades do lado de fora. Kauã parecia satisfeito com o modo como ela se encolheu, como um animal acuado. Gozava daquela sensação de domínio, como se pudesse moldá-la ao seu gosto. E, naquele território, sob aquela lua, ele realmente acreditava que podia.
— Entendeu, minha pequena promessa? — Ele ergueu o queixo dela com um dedo.
— Sim — respondeu Clara, porque não havia espaço para outra resposta.
Kauã sorriu — um sorriso treinado, afiado, perigoso — e ajeitou a capa n***a que usava sobre o traje cerimonial. Depois, desapareceu entre as cortinas pesadas, deixando Clara respirar pela primeira vez em minutos. Ela fechou os olhos, tentando acalmar o corpo. A sensação de estar sendo observada nunca a deixava completamente, mas naquele momento era pior. Mais sufocante.
Ela sabia que tinha um papel a cumprir na celebração, embora não compreendesse exatamente qual. Kauã jamais explicava tudo — gostava da ideia de manipular os fios enquanto ela tateava no escuro. Mas algo em seu peito pulsava de forma estranha, inquieta, como se partes dela que não lembrava estivessem prestes a acordar.
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Quando Clara pisou na clareira central, conversas se calaram como se alguém tivesse puxado uma corda invisível. A jovem caminhava sob o feixe de luz da Lua de Sangue, a lua cheia tingida por um vermelho suave que parecia derramar brilho sobre tudo o que tocava.
O vestido que usava — branco puro, sem ornamentações — deixava a sua pele ainda mais luminosa. O tecido leve dançava com o vento, criando contrastes entre a inocência que transparecia e a severidade do ritual. O seu rosto delicado, de traços suaves e quase etéreos, despertou murmúrios entre os membros da matilha.
— Parece uma visão…
— Uma loba rara…
— Nunca vi olhos assim…
Os comentários espalharam-se como folhas ao vento. Clara não entendia o motivo de tanta admiração. Não se via como alguém especial — e a atenção só a deixava mais tensa. Manteve as mãos entrelaçadas diante do corpo, caminhando de cabeça erguida apenas porque Kauã exigira isso.
No alto, em uma cabine reservada aos líderes e convidados importantes, Paulo apoiava um dos cotovelos na mesa, observando a cena com um desinteresse quase teatral. O Alfa do Sul parecia entediado com a celebração — embora tudo nele chamasse atenção: a postura relaxada, os olhos atentos por trás da aparente displicência, a presença que preenchia tudo.
— Tão sem graça quanto uma boneca. — murmurou, sem mover muito os lábios.
A frase arrancou uma risadinha de Sara, sentada alguns lugares à frente, trajando vermelho profundo. Ela virou levemente a cabeça, suficiente para que Paulo visse o brilho malicioso que sempre a acompanhava.
— Não esperava menos. — ela comentou. — A Leste gosta de peças bonitas para exibir. Só isso. — Os dedos dela tocaram o copo com um cuidado suspeito.
Foi quando um estalido seco ecoou debaixo do pé de Paulo. O pedaço de madeira da plataforma onde ele estava quebrou repentinamente — do tipo de quebra que não era acidente.
Sara ergueu as sobrancelhas, teatralmente surpresa.
Paulo, no entanto, ignorou-a. Ele desviou o olhar para a jovem lá embaixo, exatamente no instante em que Clara tropeçou ao ouvir o barulho.
O que viu o fez endireitar o corpo.
Por um segundo — apenas um —, os olhos dela brilharam com algo que não pertencia à imagem frágil que a matilha enxergava. Era um lampejo feroz, inconsciente, quase instintivo, que desapareceu tão rápido quanto surgiu. Mas Paulo o viu. E sentiu o arrepio subir pela espinha, como se o seu lobo tivesse despertado com o cheiro de perigo… ou interesse.
O salto do sapato de Clara havia quebrado no impacto. Kauã, de longe, tencionou o maxilar em irritação óbvia. Mas, ao invés de congelar ou de se envergonhar, Clara simplesmente parou, ergueu a barra do vestido e chutou o salto quebrado para o lado, com precisão surpreendente. Depois, caminhou o resto do trajeto descalça, os pés afundando levemente na terra fria.
A matilha murmurou novamente — desta vez não com admiração estética, mas com um tipo diferente de respeito.
E Paulo… bem, Paulo sorriu de canto pela primeira vez naquela noite.
— Talvez a boneca tenha dentes. — murmurou, curioso.
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O ritual seguiu com discursos, bênçãos antigas e oferendas. Mas os olhos de Paulo voltavam repetidamente para Clara, observando pequenos detalhes: a postura séria, a calma forçada, o jeito como ela desviava do toque de Kauã a cada chance que podia.
Sara também observava — só que com intenção diferente. A jovem de vermelho exibia um sorriso doce demais enquanto a mão segurava uma taça de vinho tinto. Havia algo predatório disfarçado nos gestos dela, uma suavidade estudada, ensaiada.
Quando o banquete começou, tudo ficou mais barulhento. Músicos tocavam tambores de guerra, risadas ecoavam entre as mesas e os mais jovens já competiam para ver quem comeria mais rápido. A mesa central, reservada aos representantes, era um festival de pratos e garrafas.
Clara estava sentada entre Kauã e outras líderes femininas. A luz das tochas iluminava o seu vestido, que se destacava ainda mais pela simplicidade. Estava tentando não chamar atenção quando Sara se aproximou.
— Perdão, querida, acho que este vinho é seu. — disse Serena com um sorriso forçado.
Antes que Clara pudesse responder, a taça virou. O líquido vermelho escorreu pelo tecido branco como sangue derramado. A mesa inteira prendeu a respiração.
Clara levantou-se de imediato, o coração disparado. Sara fingiu surpresa com uma perfeição que só alguém muito praticado poderia atingir.
— Meu Deus! Eu… eu não imaginei que estivesse tão perto… desculpe, desculpe mesmo! — Sara apertou o braço de Clara, sorrindo gentilmente. Mas os olhos… ah, os olhos entregavam que não havia arrependimento algum. Só satisfação.
Kauã segurou o punho de Clara com força, como se a sua vergonha fosse culpa dela.
— Vá trocar. Agora. — sussurrou entre os dentes.
Clara saiu quase correndo, o vestido manchado colando na pele.
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Os aposentos de purificação eram um espaço silencioso, iluminado apenas por velas altas e cheias de símbolos antigos. O local era reservado para lobos que precisavam se recompor antes de apresentações, rituais ou cerimonias especiais.
Clara entrou apressada, querendo lavar o vinho e, principalmente, recuperar o fôlego. O cheiro forte de ervas queimadas tomou os seus sentidos. Ela fechou a porta atrás de si, soltando um suspiro que vinha preso desde o banquete.
Só não esperava encontrar alguém ali.
Encostado na pia de pedra, Paulo lavava as mãos, com as mangas da camisa dobradas até o antebraço. A tatuagem tribal que serpenteava pela pele dele parecia se mexer à luz das velas. O Alfa levantou o rosto devagar quando percebeu a presença dela.
Por um momento longo — silencioso — os dois apenas se olharam.
Clara sentiu o corpo travar.
Paulo sentiu o próprio lobo avançar sem permissão.
Ele a viu de perto pela primeira vez: os olhos grandes e claros demais, a respiração curta, a inocência misturada com algo escondido lá, no fundo — uma força adormecida, talvez. Vinho escorria pelo tecido do vestido, manchando-o como se tivesse sido ferida.
— Parece que teve uma noite difícil. — disse Paulo, secando as mãos sem pressa.
Clara engoliu em seco, tentando manter alguma compostura.
— Foi um acidente. — respondeu, baixinho.
— É mesmo? — O tom dele não soava convencido. — Engraçado… Sara tem uma mão muito firme. Nunca a vi derramar nada.
Clara abaixou os olhos.
Paulo aproximou-se um passo — não o suficiente para intimidá-la, mas o bastante para que ela sentisse o cheiro dele: algo entre madeira, chuva e um toque de perigo.
— Não precisa ter medo — ele disse, mais suave do que pretendia. — Não vou te machucar.
Clara levantou o olhar devagar.
Havia algo estranho ali. Ela sentiu como se o ar entre eles vibrasse, como se algo dentro do peito reconhecesse uma presença familiar sem saber quando ou por quê. O seu coração batia rápido demais, e ela deu um passo para trás, instintivamente.
— Eu… preciso lavar o vestido. — disse, tentando recuperar o controle.
— Ou pode deixar que alguém trate disso. — Paulo cruzou os braços. — A não ser que queira carregar essa mancha a noite inteira.
Clara hesitou. Não porque precisasse de ajuda — mas porque a presença dele mexia com algo que ela não entendia. Algo que a deixava tensa e, ao mesmo tempo, curiosamente tranquila.
— Eu consigo. — insistiu.
Paulo observou o modo como os dedos dela tremiam, mesmo que minimamente. Ela estava com medo — não dele, percebeu. Do mundo. De algo que ele ainda não sabia, mas queria descobrir.
— Tudo bem. — disse, dando espaço. — Mas… — Ele inclinou um pouco a cabeça. — Uma dica?
Clara o encarou, sem saber se devia confiar.
— Da próxima vez que alguém tentar te derrubar, não ofereça a garganta. — Paulo deu um meio sorriso. — Mostre os dentes.
As palavras ficaram suspensas entre eles, carregadas de algo que nenhum dos dois tinha nome para descrever.
E então a porta se abriu atrás de Clara — abrupta, brusca, quebrando o momento.
Kauã entrou.
Os olhos dele, ao ver Paulo tão perto dela, se estreitaram.
E o ar ficou tenso o suficiente para cortar com uma faca.