3

994 Palavras
Capítulo 3 Perigo narrando Acendo um baseado na sacada do meu quarto e encaro o Complexo da Maré. O dia amanhece devagar, junto com o movimento dos moradores e a fumaça que sobe dos becos. Por aqui, o amanhecer sempre teve algo de especial. A vista que eu tinha do meu pedaço do mundo era perfeita; nasci e cresci nos morros, e daqui eu não sairia por nada. Ficar aqui até morrer, e depois, mesmo morto, criar raízes. — Pai! — Joana entra no quarto, segurando seu urso de pelúcia. Jogo o baseado pela sacada e a abraço. — Oi, meu amor — digo. — Que cheiro é esse? — ela pergunta, franzindo o nariz. — Perfume daquele homem lá embaixo — respondo, passando álcool nas mãos dela. — Por que passa álcool? — — Por causa dos vermes. Não te lembram que a mãe briga para você sempre lavar as mãos? — Sim, sempre! — ela ri. — Antes de comer, depois de comer, ao entrar em casa… até o tio Rodrigo precisa lavar. — Viu? É importante — sorrio, abaixando-me para que ela coloque as mãos no meu pescoço. — Vamos brincar? — pergunta, os olhos brilhando. — Papai precisa te levar de volta — digo, sentindo o peso da responsabilidade. — Senão sua mãe manda a polícia te buscar. Você já deveria ter voltado ontem. — Mas eu queria ficar — murmura, desapontada. — Eu também queria que você ficasse, mas você tem duas casas… os dias passam rápido, e logo volta aqui — explico. Joana era minha companhia, minha alegria. Quando ela estava aqui, a casa se enchia de vida. Quando não, sobrava apenas o silêncio e eu. Ela se tornou tudo para mim, meu maior tesouro. Chegamos à Rocinha e paro em frente à ONG de Malu. Ela corre para abraçar a mãe, e eu apenas observo de longe, respirando fundo antes de ir à boca. — Olha aí — diz Rd. — Que novidades você traz? — Sabe quem voltou? — pergunto. — Vai me dizer que é Kaio das cinzas? — ele sorri. — Não, Roberto — arqueio a sobrancelha. — E acredita quem veio com ele? — Laura? — ele arrisca. — Exatamente. Ele não voltou sozinho, trouxe ela consigo. Algo está acontecendo. — Você acha que ele vai querer começar uma guerra de novo? Dois anos de paz, e agora tudo de novo… — Rd se preocupa. — E qual das nossas mulheres vai trair a gente primeiro? — eu sorrio, sem jeito. — A guerra é comigo. Eu matei Kaio — digo. — Mas tenho um plano. — Que plano? — ele me encara. — Roberto tem uma esposa, Marcela — digo. — Estou seguindo cada passo dela desde que chegaram; vou me aproximar. — Você vai machucar ela? — — Não — respondo. — Vou ganhar a confiança dela, e na hora certa, se ele tentar nos atacar, a gente age primeiro. — Ela vai deixar você se aproximar? — Rd questiona. — É uma pobre coitada — digo. — Não faz nada da vida, só segue os passos daquele velho nojento. E ela é 20 anos mais nova que ele, deve estar com ele só pelo dinheiro. Vai ser fácil. — Toma cuidado — avisa Rd. — Relaxa. Yuri está me ajudando — digo. — E Saul? Notícias dele? — — Nada. Nem Patrícia, a irmã dele. — — Estranho ele sumir justo quando Roberto volta — ele observa. — Por isso quero estar sempre um passo à frente. De volta à Maré, coloco o plano em prática. Visto uma roupa simples, pego um carro popular e entro no aplicativo da Uber, dando a “pane” no sistema. Ela estaria na clínica no centro do Rio, e eu precisava estar pronto para interceptá-la. Vejo a ruiva saindo da clínica, olhando nervosa para o celular enquanto tenta chamar um carro. Aproximo-me. — A senhora quer um Uber? — pergunto. Ela me encara, desconfiada. — Estou pedindo pelo app, obrigada — responde rápido. — Parece que não está funcionando — insisto, mostrando o celular dela. — Para onde quer ir? Sou motorista da Uber. — Não pego Uber de estranho — afirma firme. — Miguel — digo, estendendo a mão. — Sou conhecido aqui, pode confiar — aponto para Ph, meu comparsa, que acena. — E aí, Pedro Henrique? — O Miguel — ele confirma. Ela nos olha, desconfiada, mas parece consideravelmente convencida. — Viu? Não vou assaltar a senhora. Só quero ganhar para sustentar meus três filhos. Minha esposa morreu de câncer ano passado. — Sinto muito… você tem três filhos? — pergunta, incrédula. — Tenho: Joana, Joaquim e Janaina — mostro a foto deles, sorrindo. — Uma é bem pequena — ela comenta, tocada. — Tem dois anos. Sente falta da mãe — respondo com ar trágico. — Preciso comprar leite para eles, posso levá-la? — pergunto, vendo meu plano dar certo. — Claro — sorri fraco. — Meu endereço é no Jardim Botânico. — Conheço bem — digo, abrindo a porta para ela entrar. Durante o trajeto, puxo assunto e ela responde aos poucos. — Pode me deixar na frente — pede. — Te levo até dentro, sem problema — insisto. — Não precisa — diz. — Pode ser aqui. — Mas é longe da portaria até a casa — argumento. — Posso te levar sem problema. — Está bom — ela cede, pegando a carteira. — 20 reais — digo. Ela entrega uma nota de cem. — Pode ficar com o troco para ajudar a comprar leite — diz, emocionada. — Obrigado — respondo. — A senhora me ajudou muito. Por favor, deixe-me levá-la, é o mínimo que posso fazer. Na frente da casa, ela sorri e desce. — Obrigada — diz. — Eu que agradeço — respondo, sorrindo de volta. Observo-a entrar, alguns homens circulando pelo jardim, e saio antes de ser reconhecido. Tudo correu conforme o plano.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR