Capítulo 3
Perigo narrando
Acendo um baseado na sacada do meu quarto e encaro o Complexo da Maré. O dia amanhece devagar, junto com o movimento dos moradores e a fumaça que sobe dos becos. Por aqui, o amanhecer sempre teve algo de especial. A vista que eu tinha do meu pedaço do mundo era perfeita; nasci e cresci nos morros, e daqui eu não sairia por nada. Ficar aqui até morrer, e depois, mesmo morto, criar raízes.
— Pai! — Joana entra no quarto, segurando seu urso de pelúcia.
Jogo o baseado pela sacada e a abraço.
— Oi, meu amor — digo.
— Que cheiro é esse? — ela pergunta, franzindo o nariz.
— Perfume daquele homem lá embaixo — respondo, passando álcool nas mãos dela.
— Por que passa álcool? —
— Por causa dos vermes. Não te lembram que a mãe briga para você sempre lavar as mãos?
— Sim, sempre! — ela ri. — Antes de comer, depois de comer, ao entrar em casa… até o tio Rodrigo precisa lavar.
— Viu? É importante — sorrio, abaixando-me para que ela coloque as mãos no meu pescoço.
— Vamos brincar? — pergunta, os olhos brilhando.
— Papai precisa te levar de volta — digo, sentindo o peso da responsabilidade. — Senão sua mãe manda a polícia te buscar. Você já deveria ter voltado ontem.
— Mas eu queria ficar — murmura, desapontada.
— Eu também queria que você ficasse, mas você tem duas casas… os dias passam rápido, e logo volta aqui — explico.
Joana era minha companhia, minha alegria. Quando ela estava aqui, a casa se enchia de vida. Quando não, sobrava apenas o silêncio e eu. Ela se tornou tudo para mim, meu maior tesouro.
Chegamos à Rocinha e paro em frente à ONG de Malu. Ela corre para abraçar a mãe, e eu apenas observo de longe, respirando fundo antes de ir à boca.
— Olha aí — diz Rd. — Que novidades você traz?
— Sabe quem voltou? — pergunto.
— Vai me dizer que é Kaio das cinzas? — ele sorri.
— Não, Roberto — arqueio a sobrancelha. — E acredita quem veio com ele?
— Laura? — ele arrisca.
— Exatamente. Ele não voltou sozinho, trouxe ela consigo. Algo está acontecendo.
— Você acha que ele vai querer começar uma guerra de novo? Dois anos de paz, e agora tudo de novo… — Rd se preocupa. — E qual das nossas mulheres vai trair a gente primeiro? — eu sorrio, sem jeito.
— A guerra é comigo. Eu matei Kaio — digo. — Mas tenho um plano.
— Que plano? — ele me encara.
— Roberto tem uma esposa, Marcela — digo. — Estou seguindo cada passo dela desde que chegaram; vou me aproximar.
— Você vai machucar ela? —
— Não — respondo. — Vou ganhar a confiança dela, e na hora certa, se ele tentar nos atacar, a gente age primeiro.
— Ela vai deixar você se aproximar? — Rd questiona.
— É uma pobre coitada — digo. — Não faz nada da vida, só segue os passos daquele velho nojento. E ela é 20 anos mais nova que ele, deve estar com ele só pelo dinheiro. Vai ser fácil.
— Toma cuidado — avisa Rd.
— Relaxa. Yuri está me ajudando — digo.
— E Saul? Notícias dele? —
— Nada. Nem Patrícia, a irmã dele. —
— Estranho ele sumir justo quando Roberto volta — ele observa.
— Por isso quero estar sempre um passo à frente.
De volta à Maré, coloco o plano em prática. Visto uma roupa simples, pego um carro popular e entro no aplicativo da Uber, dando a “pane” no sistema. Ela estaria na clínica no centro do Rio, e eu precisava estar pronto para interceptá-la.
Vejo a ruiva saindo da clínica, olhando nervosa para o celular enquanto tenta chamar um carro. Aproximo-me.
— A senhora quer um Uber? — pergunto. Ela me encara, desconfiada.
— Estou pedindo pelo app, obrigada — responde rápido.
— Parece que não está funcionando — insisto, mostrando o celular dela. — Para onde quer ir? Sou motorista da Uber.
— Não pego Uber de estranho — afirma firme.
— Miguel — digo, estendendo a mão. — Sou conhecido aqui, pode confiar — aponto para Ph, meu comparsa, que acena. — E aí, Pedro Henrique?
— O Miguel — ele confirma. Ela nos olha, desconfiada, mas parece consideravelmente convencida.
— Viu? Não vou assaltar a senhora. Só quero ganhar para sustentar meus três filhos. Minha esposa morreu de câncer ano passado.
— Sinto muito… você tem três filhos? — pergunta, incrédula.
— Tenho: Joana, Joaquim e Janaina — mostro a foto deles, sorrindo.
— Uma é bem pequena — ela comenta, tocada.
— Tem dois anos. Sente falta da mãe — respondo com ar trágico.
— Preciso comprar leite para eles, posso levá-la? — pergunto, vendo meu plano dar certo.
— Claro — sorri fraco. — Meu endereço é no Jardim Botânico.
— Conheço bem — digo, abrindo a porta para ela entrar.
Durante o trajeto, puxo assunto e ela responde aos poucos.
— Pode me deixar na frente — pede.
— Te levo até dentro, sem problema — insisto.
— Não precisa — diz. — Pode ser aqui.
— Mas é longe da portaria até a casa — argumento. — Posso te levar sem problema.
— Está bom — ela cede, pegando a carteira.
— 20 reais — digo.
Ela entrega uma nota de cem.
— Pode ficar com o troco para ajudar a comprar leite — diz, emocionada.
— Obrigado — respondo. — A senhora me ajudou muito. Por favor, deixe-me levá-la, é o mínimo que posso fazer.
Na frente da casa, ela sorri e desce.
— Obrigada — diz.
— Eu que agradeço — respondo, sorrindo de volta.
Observo-a entrar, alguns homens circulando pelo jardim, e saio antes de ser reconhecido. Tudo correu conforme o plano.