Rael.
Dias depois do ataque, a vida no morro voltou ao seu ritmo. Mas a minha cabeça continuava um inferno. Eu precisava de um tempo sozinho, e o único lugar onde eu conseguia pensar era na laje mais alta, de frente para a cidade. Lá, eu via tudo, e nada me pegava de surpresa.
Eu tentei ficar com outras, só para tirar aquela diab@ da minha cabeça. Eu não podia ir por esse caminho e cada vez que Cabeça ou um dos caras tocava o nome dela, meu sangue fervia.
Era bom saber que Cabeça se certificava de que ela estava segura. Mas eu queria sar um murro na cara do meu irmão por saber que ele podia ter algo que eu não podia.
Ele conseguia se aproximar.
Não tinha problema com isso, não se importava com quem via e nem mesmo ligava quando alguém fazia graça. Pelo contrário. Ele passou a defende-la dos idiot@s que as vezes vinham com gracinhas.
Ele estava fazendo o papel que eu queria fazer. Mas eu não podia. Não na minha posição.
Sentado, no topo, fechei os olhos e me permitir respirar por alguns segundos. Foi assim que a Maitê me encontrou. Eu nem percebi ela subindo. Ela chegou devagar, os olhos curiosos, mas sem medo. Parou a uns passos de mim, o vento bagunçando o cabelo dela.
— Posso? — perguntou, apontando para o espaço ao meu lado.
Apenas dei de ombros, sem encará-la.
— O morro é de todos. Faça o que quiser.
Ela se sentou, em silêncio por um tempo. O silêncio dela era diferente. Não era opressor, como o silêncio dos meus "crias" quando eu estava puto. Era um silêncio pensativo.
— Obrigada — ela disse, a voz suave, quebrando o silêncio.
Virei o rosto para ela.
— Pelo quê?
— Por ter protegido a gente. Por ter ficado lá na frente — respondeu, os olhos verdes fixos no meu. — Eu nunca tinha visto uma coisa assim.
Dei uma risada seca.
— É o meu trabalho. Manter a ordem aqui. Senão vira bagunça. E milícia não me derruba.
— Não é só trabalho. É... proteção. Você se importa com o morro, não é?
A pergunta dela me pegou desprevenido. Ninguém nunca tinha me perguntado isso de forma tão direta. As pessoas sabiam que eu mandava, que eu era o dono. Mas se eu me importava? Isso era um pensamento que eu não permitia ter.
— É o que eu conheço. É a minha vida — respondi, a voz mais baixa do que o normal. — Não tem outro jeito pra mim.
Ela me olhou com uma intensidade que me desarmou.
— E você queria que tivesse? Outro jeito?
Minha garganta se apertou. Falar sobre o que eu queria era perigoso. Era mostrar uma fraqueza que eu não podia ter.
— Querer não muda nada. A gente vive com o que tem. E eu tenho isso aqui. O morro.
— Mas e se... e se houvesse algo mais? — ela insistiu, a voz quase um sussurro. — Uma vida diferente? Você não pensa nisso?
Olhei para ela, os olhos dela brilhavam com uma esperança ingênua. Uma esperança que eu tinha perdido há muito tempo.
— Pensar não paga as contas, Maitê. Não me mantém vivo. Aqui, a gente não tem tempo para sonhar.
— Todo mundo tem tempo para sonhar, Rael — ela rebateu, com uma convicção que me atingiu. — Às vezes, só a gente que não se permite.
— Se não posso, então não tenho que me permitir. A forma como a banda toca aqui é outra.
— Você é sempre tão duro?
— Eu sou o que eu sou. Ponto.
— Sairia daqui se pudesse? — sua pergunta me pega mais uma vez.
— Não — respondo sem nem ao menos me dar tempo de pensar.
— Você é forte. Leal aos seus. E por mais que não queira admitir, você tem lados que não quer que ninguém veja.
— Você não tem com saber o que eu quero. Acabou de chegar é só uma forasteira tentando encontrar um lugar...
— Não escolhi vir parar na favela quando sai do meu interior. Mas nesse momento, não voltaria atrás. Estou onde eu preciso estar. Ponto.
Aquelas palavras me atingiram como um soco no estômago. Eu queria mandá-la calar a boca, ir embora. Mas não consegui. A conversa era difícil, era sobre o que eu escondia até de mim mesmo. E, de alguma forma, eu queria continuar ouvindo o que ela tinha a dizer. Ela estava vendo algo em mim que ninguém nunca viu. E isso me assustava mais do que qualquer tiro.