Marcel
Estava terminando de tomar banho quando ouvi a gritaria na vizinha. Olhei pelo vidro do banheiro para ver se conseguia identificar o que estava acontecendo. Uma moça vestida de branco gritava com a menininha no quintal, que chorava. Saí às pressas do banheiro, nem me sequei direito e vesti a primeira roupa que vi na frente: uma bermuda jeans.
Caminhei para fora de casa, descalço e com o cabelo pingando. Quando Carina me viu, correu pelo gramado que separava as duas casas e grudou em minhas pernas. Peguei-a no colo. Seu corpinho tremia devido aos soluços.
No pouco tempo que morava ali, aprendi a gostar da baixinha. Ela era surpreendente em sua inteligência. Até pesquisei um pouco sobre crianças supergênios para ter um pouco de noção sobre como era lidar com uma. Tinha poucas no mundo, mas cada uma mais incrível que a outra. Até agora estava de queixo caído com o garoto de nove anos que tinha entrado na universidade.
Cuidar desses pequenos não deve ser fácil. Carina, por exemplo, fazia algumas perguntas que eu não sabia responder; peguei-me estudando para falar com uma menina de quatro anos de idade. Por mais louco que isso pareça ser, eu adorava.
— Posso saber o que está acontecendo aqui? — perguntei com cara de poucos amigos para a mulher. Não a conhecia, mas já não ia com a cara dela. Fazer uma criança chorar daquele jeito era imperdoável.
— Essa menina é a cria do demônio…
Olhei incrédulo para a loira oxigenada em minha frente. Não esperei que continuasse a falar. Levantei a mão e usei a minha atitude de capitão. Ela se calou e ficou vermelha. Viver quase toda a vida no exército valia para alguma coisa.
— Você trouxe bolsa? — A mulher balançou a cabeça para cima e para baixo. — Você tem meio minuto para pegar suas coisas e sumir da minha frente.
— Espere…
— Vou começar a contar, quando chegar no trinta, se você ainda estiver nas dependências desta casa, vou lhe pegar pelo braço e te colocar para fora. — Meu tom de voz era baixo, empregando o máximo de comando nela.
A mulher virou as costas e saiu às pressas para dentro da casa. Segundos depois, apareceu abraçando a bolsa e correndo como se o próprio demônio estivesse a perseguindo. Ouvi o portão batendo com força.
Dei minha total atenção à mocinha soluçando com a cabeça deitada em meu peito. Esperei até ela se acalmar e olhar para mim com os olhinhos lacrimejantes. Quis que a loira voltasse, não era de bater em mulheres, porém a vontade era grande. Nesse momento, constatei como a pequena era frágil e não passava de uma garotinha assustada com um supercérebro. A vontade de trazer o sorriso bonito para o rostinho dela era grande.
— Demônios não existem — Carina suspirou, seus lábios tremeram. — É uma invenção da Igreja Católica para doutrinar o seu povo. Definição figurativa: pessoa má, inquieta e turbulenta. — Sorri para ela. Carina me diria todos os significados da palavra demônio que já tinha lido na vida. A mocinha tinha memória fotográfica.
— Ou seja, você não é um. — Dei um beijo em sua testa e fiz o caminho de volta à minha casa. — Eu diria que você está mais para o sentido figurado da palavra anjo.
— Não entendo. — Passou as mãos pelos olhos úmidos e me olhou com a carinha de interrogação.
— Eu uso a palavra anjo quando eu quero dizer que a pessoa é bondosa, querida e amada, preciosa. — Abracei seu corpinho e escorei o queixo no topo de sua cabeça. — É o que você é para mim, um pequeno anjo especial.
— Eu gosto disso. — Carina empurrou a cabeça para trás até olhar para mim e sorrir.
Ouvi um barulho de ronco e ri.
— Parece que tem um anjinho com fome. — Carina aumentou o sorriso. Nada mais lindo que um sorriso de uma criança. — Por que aquela mulher estava gritando? — Entrei na sala e deixei meu fardo em cima do sofá. Olhei para o caminho de pegadas molhadas no chão, teria que limpar a bagunça.
— Porque eu disse que cortando os pulsos iria demorar muito para ela morrer. — Parei de me preocupar com o chão e arregalei os olhos para a menina. — Demora muito tempo e se ela queria morrer rápido, deveria usar o monóxido de carbono ou o gás de cozinha. Mas o gás seria arriscado ter um incêndio e morrer queimada.
— Você tem razão. Entrar em um carro com o escapamento ligado e as janelas fechadas seria indolor e garantido. — Passei as mãos pelo rosto, exasperado comigo mesmo por estar discutindo com uma criança de quatro anos sobre o modo mais fácil e indolor de se cometer suicídio. — Mas por que ela queria cortar os pulsos?
— Eu não sei. — Deu de ombros. — Ela estava falando no telefone, quando desligou, eu expliquei que ela não deveria fazer isso. Foi aí que começou a brigar comigo.
— Ela não deveria ter feito o que fez. — Caminhei até ela e ajoelhei. — Você é preciosa. — Coloquei uma mexa de cabelo escuro atrás da pequena orelha. Admirei mais uma vez a semelhança com a mãe e me peguei pensando sobre ter meus próprios filhos, seria magnífico alguém chamando você de pai.
— Mamãe diz que sou especial. — Concordei com a cabeça. — Mas todo mundo me olha estranho quando eu falo o que aprendi para as pessoas.
— Porque elas sentem inveja do seu cérebro inteligente. — Toquei sua cabecinha.
— Mas você não?
— Não, Carina. Eu fico muito surpreso e maravilhado em conhecer e conversar com a senhorita. Vou terminar de tomar banho e já venho fazer algo para comermos.
Vi o manual de um aeromodelo que comprara em cima da caixa com as peças, e uma ideia passou pela minha cabeça. Peguei as folhas e ofereci à menina, ela ficaria entretida por algum tempo com aquilo.
Dito e feito. Quando viu os gráficos e as imagens das peças, sua testa franziu e o olhar triste deu lugar à carinha de curiosidade. Fechei a porta do quarto, tirei a roupa, jogando-a no cesto, e entrei direto para o chuveiro. A imagem de um garotinho loiro de olhos escuros começou a se formar em minha mente e pela primeira vez, em anos, comecei a desejar uma família.
***
Quando entrei na sala, vestindo uma roupa limpa e seca, encontrei Carina deitada de bruços no sofá balançando as perninhas, concentrada no manual.
— Marcel. — Quando me viu, sentou com rapidez e me mostrou o manual. — Podemos montá-lo?
— Podemos. — Apontei para uma caixa perto da televisão, no lado esquerdo do cômodo. — Assim que comermos.
— E podemos voar com ele? — perguntou depois de soltar um gritinho de felicidade.
— Precisaremos achar um lugar para que ele tenha espaço para voar e pedir à sua mãe. — Carina deixou o manual no sofá e veio até mim, pegando em minha mão. Meu coração falhou uma batida. Ver a confiança em seu rostinho era tão gratificante quanto ver nos olhos dos homens a seu comando. Quando deixei o batalhão, todos os meus subordinados lamentaram a minha saída. Alguns capitães achavam que a obediência seria melhor, eu discordava totalmente.
— Posso te ajudar com a comida? — Balancei a cabeça afirmativamente. — Eu não sei fazer muitas coisas, mas eu vejo a mamãe fazendo.
— Vamos fazer sanduíches agora, você me ajuda passando maionese nos pães.
Fizemos sanduíches de mortadela com queijo quente, suco de laranja e voltamos para a sala. Enquanto comíamos, espalhei as diversas peças do aeromodelo no chão. Parecia um grande quebra-cabeça com inúmeras peças pequenas e grandes. Quase um esquema da NASA.
***
— Marcel! Marcel! — Ouvi Letícia gritando no quintal. Olhei confuso para a porta quando a mulher parou esbaforida, completamente descabelada, como se estivesse sendo perseguida.
Deixando a asa em que estava trabalhando, levantei apressado, colocando-me em alerta contra um possível inimigo.
— O que foi? Aconteceu algo?
— Eu que pergunto. — Fechando a cara, ela cruza os braços. Se ela soubesse como fica sexy pra caramba desse jeito… Quando soube que não tinha nenhum marido por perto, minha imaginação e vontade só cresceram, já não conseguia me esquivar, eu queria a minha senhoria nua sob mim. — Por que eu tenho uma dúzia de ligações e não sei quantas mensagens da minha babá dizendo que tem um lunático querendo espancá-la?
Ia responder, mas Carina abraçou a minha perna.
— Porque ela me chamou de cria do demônio, e o Marcel ficou muito chateado com ela e a mandou embora. Ela quis dizer que sou o mito católico de um anjo caído.
— Ela o quê? — Letícia olhava da filha para mim, sem ter a noção do que estava acontecendo.
Expliquei a ela tudo o que havia acontecido em sua ausência, junto a Carina e suas respostas espertinhas.
— Sendo assim, eu realmente a expulsei e não toquei em um fio de cabelo dela. — Finalizei dando de ombros.
— E eu sou um anjinho. — Carina sorriu para a mãe. — Marcel disse que eu sou.
Letícia ajoelhou na frente da filha
— Ele tem razão, você é meu anjinho, minha preciosa menina. — Mãe e filha se abraçaram. A mulher me deu um sorriso agradecido. Olhei para o lado de fora e notei que já estava escurecendo.
— Recruta. — Esperei Carina olhar para mim. — Hora de fazer o jantar.
— Sim senhor! — A pequena fez uma continência perfeita.
— O que iremos fazer para o jantar? — perguntei sério, mas a vontade de cair na risada com a carinha fofa era grande. Ela me encarou com o semblante sério, como se realmente eu estivesse lhe dando uma missão.
Nossa tarde foi gostosa, montamos parcialmente o aeromodelo, o negócio era muito complicado e confesso que se não fosse pela menina, eu não teria feito a metade.
— Precisamos de uma alimentação saudável para crescemos bem. — Abriu a mãozinha e começou a enumerar: — Temos 8 grupos de alimentos: cereais, hortaliças, frutas, leguminosas, leites, carnes e ovos, açúcares e óleos. — Batendo o dedinho no canto da boca, pensou por uns instantes. — Franguinho com arroz, feijão, salada de tomate com alface, cenourinha cozida e suco de laranja. Atende bem o que precisamos.
— Minha nossa! — Letícia exclamou rindo. — A senhorita quer algo bem específico.
— Mamãe, Marcel é grande e tem muitos músculos, ele precisa de bastante proteína. Eu sou pequenina e preciso de vitaminas. — Essa foi a doutora Carina com seu cérebro de supergênio e sua doçura de uma criança de quatro anos. — E você precisa de uma alimentação balanceada para não ganhar e nem perder muito peso, e ter energia para trabalhar.
— Eu acho que as mocinhas precisam é de ganhar umas graminhas — provoquei. Letícia tinha um belo corpo, com curvas exuberantes, apesar de estar um pouco abaixo do peso para o meu gosto. Observei, para o meu contentamento, ela corando sob o meu olhar. Provavelmente terei sonhos com ela esta noite novamente. — Que tal assar alguns bifes na churrasqueira? Podemos colocar uns legumes e fazer uma farofinha.
— Eu não sei se tenho isso em casa…
— Eu tenho os bifes e tudo para o churrasco — interrompi. — A senhora só precisa sentar e aguardar.
— Eu posso ajudar? — Carina levantou a mão, e concordei. — E a mamãe vai tomar banho.
— Boa recruta. — Nós dois olhamos para Letícia, em expectativa.
— Isso é um complô contra mim? — Concordamos com a cabeça. — Tudo bem. Vou tomar um banho e colocar uma roupa confortável, e venho ajudar vocês.
Ergui os polegares em sinal de aprovação. Enquanto Letícia voltava para sua casa, eu admirava o rebolado bonito dela. Minha imaginação corria solta. Eu era um aluno levado, e ela uma professora sexy com seus terninhos de menina grande. Eu estava completamente ferrado.