**Ester narrando**
Subo para o quarto, mas meu coração já está pesado antes mesmo de alcançar a porta. As minhas coisas, jogadas no corredor, parecem um reflexo do caos em que minha vida se transformou. Recolho cada peça com uma sensação de derrota que cresce a cada segundo. Quando volto ao quarto, o lugar que deveria me oferecer um mínimo de paz, tudo o que encontro são paredes frias e um espaço que me lembra o quanto estou presa. Faz tão pouco tempo que estou aqui, mas a vontade de fugir já tomou conta de mim de tal forma que me assusta.
O Joca foi bem claro: não há saída até que a dívida do meu irmão seja quitada. Já perdi a conta de quantas vezes tentei ligar para João Pedro. Ele me bloqueou em todas as plataformas, e o que resta é um silêncio ensurdecedor. A cada tentativa falhada, a sensação de abandono e desespero se aprofunda. Eu me pergunto como fui cair nesse buraco, presa em uma favela, sem ninguém para me ajudar.
Enquanto estou aqui, entre essas quatro paredes, tudo o que sinto é uma angústia sufocante. A janela estreita não oferece nenhuma vista que possa aliviar meu estado de espírito. Meu pai sempre avisou que João Pedro era perigoso, ambicioso demais. Ele dizia que meu irmão não pensaria duas vezes antes de sacrificar a própria família se fosse necessário. E agora, vendo-me nessa situação, percebo que ele estava certo. João Pedro me deixou aqui, como se eu fosse um objeto que ele podia negociar para salvar a própria pele.
Por um instante, penso em expor tudo nas redes sociais, contar ao mundo onde estou e o que estou enfrentando. Mas só de pensar nos homens armados que vigiam cada canto deste lugar, meu sangue gela. O medo me paralisa, e percebo o quão vulnerável estou. Não há opções para mim. Estou à mercê do destino e, por mais que queira lutar, sinto como se estivesse afundando cada vez mais.
Do lado de fora, ouço a agitação que vem da favela. Hoje, parece que haverá uma festa. As pessoas estão animadas, as vozes são cheias de expectativa. Saio do quarto, precisando de uma distração, e logo encontro Kayanne, a mãe do Sampaio e da Sabrina. Ela me acolhe com um sorriso, algo raro por aqui.
— Ester – diz ela, sua voz suave, mas firme.
— Você viu a Sabrina? – pergunto, tentando esconder o tumulto dentro de mim.
— Ela deve estar no salão, ajudando a Alana e a irmã dela. É só descer a favela, você vai encontrar o salão na frente da quadra.
Agradeço com um aceno de cabeça, sentindo uma ponta de gratidão. Kayanne é uma das poucas pessoas que me tratam com um pouco de humanidade aqui. Mesmo sendo mãe do Sampaio, um homem que me aterroriza, ela tem um jeito diferente, mais suave. Sampaio... só de pensar nele, sinto um frio na espinha. Ele me ameaçou com uma arma, e, por mais estranho que pareça, sinto que há algo nele que me intriga, mesmo que seja só a ideia de um perigo constante.
Quando chego ao salão, vejo Sabrina ajudando Alana, que, apesar do cansaço evidente, ainda mantém um ar de elegância. Alana me olha com um sorriso forçado, mas acolhedor.
— Olha quem apareceu – diz ela, com uma voz que carrega um misto de ironia e gentileza.
— Oi – respondo, tentando ser educada. – Estava procurando a Sabrina. Sua mãe disse que você estaria aqui.
Alana gesticula para que eu me sente.
— Vem, vamos cuidar do seu cabelo. Ele está precisando.
Eu nunca fui de me importar muito com aparência, mas aqui, neste momento, qualquer gesto de cuidado parece um alívio.
— Nunca liguei muito para isso – digo, enquanto me sento, tentando não parecer tão deslocada.
— Mas deveria – diz Alana, começando a mexer nos meus fios com delicadeza. – Seu cabelo é lindo.
Aos poucos, enquanto Alana trabalha no meu cabelo, a conversa vai fluindo. Tentamos falar sobre assuntos leves, mas é impossível para mim afastar a realidade do que estou vivendo.
— Vocês vão à festa? – pergunto, mais para mudar o foco do que por real interesse.
— Claro – responde Sabrina, animada.
— Ah, não sei – diz Alana, com um tom hesitante. – Provavelmente não.
— Por quê? – pergunto, agora curiosa.
— Eu fui naquele dia porque o Sampaio não estava por aqui, mas com ele de volta... é melhor eu ficar na minha.
A tensão no ar aumenta, e percebo que há mais entre Alana e Sampaio do que eu imaginava. Há dor em seus olhos, uma tristeza que ela tenta disfarçar, mas que é impossível de esconder completamente. Talvez seja algo mais do que só medo, talvez seja uma história que ela não quer contar.
— Você deveria ir – digo, tentando oferecer algum apoio. – Você é linda e maravilhosa. Não deveria se rebaixar para um homem.
Alana me olha, surpresa com minha franqueza, e por um momento vejo em seus olhos uma centelha de resistência, algo que parece quase esquecido.
— Já teve algum encontro com ele? – pergunta Sabrina, quebrando o silêncio.
— Ele me ameaçou com uma arma por causa do meu irmão – respondo, a indignação fervendo dentro de mim.
— Sampaio sendo Sampaio – diz Alana, suspirando. – Ele nunca muda. Vou pensar. Se mudar de ideia, vou.
Eu observo Alana, vendo a luta interna que ela enfrenta. Talvez, se ela decidir ir, isso a ajude a lembrar da força que tem, a mesma que ela tenta esconder de si mesma. Sinto uma ponta de esperança, não só por ela, mas por mim também. Talvez ainda haja uma chance de mudança, mesmo que seja pequena.
---
**Sampaio narrando**
O camarote está fervendo. A música alta, as pessoas falando e rindo, mas minha cabeça está longe de toda essa agitação. Cheguei há pouco tempo, mas o cansaço que carrego parece o de uma vida inteira. Joca está ao meu lado, com aquele olhar que me irrita.
— A noiva se atrasou novamente – diz ele, mas sua irritação não faz nada para diminuir a minha.
— Que se dane – resmungo, acendendo um cigarro, tentando encontrar um pouco de paz no meio desse caos.
HT, um dos meus velhos companheiros, nota minha tensão.
— Tá irritado com o quê? – pergunta Jeff, o chefe da Rocinha, enquanto se ajeita ao nosso lado.
— Com a presença da filha do JP – responde Joca, quase como se isso fosse óbvio.
— Não é pra menos – diz Jeff. – Essa garota vai nos dar trabalho.
— Pelo menos ela é atraente – comenta Cerro, sempre superficial, como se isso fosse o mais importante.
Dou uma longa tragada no cigarro antes de responder.
— Atraente ou não, não vale a dor de cabeça que o tio dela, Pedro Henrique, vai trazer. Isso não vai acabar bem.
Joca sorri daquele jeito que sempre me irrita. É como se ele visse isso tudo como um jogo, algo para se divertir, enquanto eu só vejo mais problemas.
— Quanto tempo você acha que vai durar? – pergunta Jeff, quase despreocupado.
— Alguns meses, no máximo – responde Joca.
— Isso é inacreditável – digo, quase para mim mesmo. Como deixei as coisas chegarem a esse ponto?
— Para de reclamar, Sampaio – Joca diz, me cutucando. – Você vai acabar infartando com tanto estresse.
Olho para ele, sentindo a irritação subir. Ele deveria ser o responsável, deveria segurar as rédeas, mas age como se fosse o mais inconsequente de todos nós. As bebidas começam a chegar, e o ambiente fica ainda mais carregado. Olho ao redor, vendo a festa tomar forma, mas minha mente não consegue se desligar.
Quando as meninas chegam, incluindo a Ester, vejo como ela parece estar se adaptando, rindo e se divertindo como se já fosse parte desse mundo. Joca, claro, não tira os olhos dela, e isso me incomoda profundamente.
— A garota não é má – comenta Jeff, observando Ester com um olhar avaliador.
— Não é? – retruco. – Você realmente acha que vale a pena?
— Vale, e como vale – Joca responde, um sorriso cínico nos lábios. Eu o encaro, sentindo uma mistura de desgosto e preocupação. Ele está claramente interessado na garota, mas para mim, ela é apenas mais um lembrete dos problemas que estamos acumulando.
Olho para Ester novamente, tentando entender o que exatamente me incomoda tanto nela. Talvez seja o fato de que ela parece estar se adaptando, se integrando, enquanto eu luto para manter tudo sob controle. A festa continua, mas minha mente está a mil, tentando antecipar os próximos passos, as próximas ameaças. Tudo o que quero é encontrar uma forma de resolver isso antes que tudo exploda.