Sombras do Passado

923 Words
A carta com a caligrafia firme de Cassian ainda repousava na escrivaninha de Élise, seu peso silencioso ecoando na quietude do quarto. “Você é a primeira pessoa a quem ele respondeu desde a morte de Myrielle.” Aquela frase reverberava como um sussurro que se recusava a ser esquecido. Myrielle. Um nome carregado de ausência, um espectro delicado que moldava cada gesto, cada decisão dentro da Maison Elsemar. Élise passou os dedos pelo selo do envelope, como se tocasse a própria dor do duque. Aquele nome parecia abrir uma porta para um passado que ele nunca revelava, um passado que talvez August carregasse em seus olhos calmos e reservados. Na manhã seguinte, a rotina no castelo seguia seu curso, rígida e impassível. Élise vestiu o jaleco branco, sentindo o tecido mais pesado do que o habitual, como se cada fibra carregasse a responsabilidade que agora sentia. Caminhou até o quarto de August, onde o menino já a esperava, rodeado por seus blocos coloridos, sua âncora num mundo onde o inesperado podia ser assustador demais. — Bom dia, August — disse, tentando manter a voz leve, mas carregada de uma ternura que queria ser um porto seguro. Ele levantou os olhos brevemente, um olhar que já não era apenas curiosidade, mas algo que se aproximava da confiança. — Hoje… quero contar uma história para você — começou Élise, pegando um livro de contos ilustrados sobre o reino de Velançay. — Mas é uma história muito especial, sobre uma mulher chamada Myrielle. August piscou, um lampejo de atenção. Talvez aquela palavra, que nunca ouvira antes de sua boca, fosse a chave para uma ponte invisível entre ele e o mundo. — Myrielle era uma pessoa gentil, que amava seu filho muito, muito mesmo — continuou Élise, folheando as páginas com cuidado. — Ela sempre acreditou que a vida é feita de pequenos momentos, e que cada um deles é importante. August tocou uma das ilustrações: uma mulher de cabelos dourados, sorrindo para uma criança. — Você sabe… — Élise hesitou, escolhendo as palavras com cautela —, às vezes as pessoas que amamos partem, e a gente fica com saudade. Mas a gente também pode carregar o amor delas dentro da gente para sempre. August olhou para ela, olhos grandes e atentos. Em silêncio, passou a mão na imagem, como se tentasse sentir o calor daquele amor. Mais tarde, quando Cassian voltou ao castelo, ele a encontrou no salão principal, segurando a mão de August enquanto o menino apontava para o teto, encantado com os vitrais coloridos que filtravam a luz da tarde. — Ele está diferente — disse Cassian, voz grave e um pouco cansada. Élise assentiu. — Ele falou “papai” ontem. E hoje parece mais calmo. Acho que está entendendo que não está sozinho. Cassian aproximou-se, e por um instante, Élise viu um homem vulnerável atrás do duque impassível. — Myrielle deixou muito mais do que saudade. — Ele apertou o punho, como se lutasse contra uma dor interna. — Ela deixou um segredo. Algo que pode mudar tudo para nós. — Que segredo? — perguntou Élise, a curiosidade misturada com uma ponta de receio. — Não aqui. Amanhã, você vai à antiga biblioteca da família comigo. — Ele parou, olhando para August. — É hora de você entender o que significa ser parte da família Elsemar. Aquela noite foi difícil para Élise. Dormiu pouco, o peso do segredo pairando no ar como uma nuvem ameaçadora. No dia seguinte, quando os primeiros raios de sol tocaram as pedras frias do castelo, Élise encontrou Cassian esperando por ela no vestíbulo. Ele usava um sobretudo escuro, e nos olhos, uma mistura de determinação e tristeza. — Vamos — disse ele, tomando a frente. Eles atravessaram corredores silenciosos, até uma porta escondida atrás de uma tapeçaria antiga. Cassian puxou a alça de bronze e abriu caminho para uma sala úmida, iluminada por velas tremeluzentes. — Esta é a antiga biblioteca — explicou. — Muitos documentos da família, diários e cartas. Tudo protegido. Coisas que o mundo lá fora nunca viu. Élise sentiu um calafrio. Cassian pegou um livro grosso, com capa de couro gasto, e o abriu em uma página amarelada pelo tempo. — Myrielle escreveu isso pouco antes de morrer. Um diário, onde ela revela suas dúvidas, seus medos… e a verdade sobre August. — A verdade? — perguntou Élise, engolindo em seco. — August não é apenas meu filho — disse Cassian, voz baixa. — Ele carrega uma herança antiga, um legado que remonta a séculos. Myrielle tentou proteger ele e o segredo a qualquer custo. Élise folheou o diário, vendo as letras delicadas de Myrielle. Havia relatos de encontros secretos, de ameaças veladas, e uma promessa: proteger August do que viesse. — O que exatamente? — perguntou Élise. — Uma disputa antiga entre famílias poderosas, — Cassian respondeu. — E uma profecia que fala de uma criança que mudará o destino de Velançay. O peso daquela revelação fez o mundo de Élise girar por um instante. Ela olhou para August, que dormia em seu quarto, alheio a tudo. Agora entendia que aquele menino era mais do que parecia. E que a p******o que ele precisava ia muito além do cuidado médico. — Vamos precisar um do outro, Élise — disse Cassian, olhando-a diretamente. — Você será a guardiã dele. A luz no caminho. Ela assentiu, sentindo um misto de medo e esperança. Porque, naquele momento, ela percebeu que não era só uma pediatra. Era parte de uma história muito maior.
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