O Caminho

1083 Words
A porta do restaurante já tinha sumido no retrovisor quando eu entrei no meu carro, mas o gosto do beijo dela… esse ficou ali, firme. Fechei a porta com cuidado, como se qualquer movimento brusco fosse espantar o que ainda pairava no ar. Liguei o motor, mas não dei partida. Fiquei alguns segundos parado, respirando fundo, com a mão ainda no volante e um sorriso que escapava sozinho — desses que não obedecem nenhum comando racional. Meu peito estava… leve. Uma leveza rara, quase esquecida. E ao mesmo tempo, havia uma corrente elétrica sob a pele, um calor que vinha da memória do toque dela na minha boca, na minha cintura, no meu rosto. Coloquei o carro em movimento devagar, como quem não quer quebrar o encanto. A rua estava quase deserta — era aquele momento da noite em que as cidades grandes finalmente respiram fundo — mas, dentro de mim, tudo estava vibrando. O som dos pneus no asfalto parecia longe, como se eu estivesse dirigindo dentro de um sonho. Nos primeiros metros, eu só conseguia pensar: Ela me beijou. Não foi um beijo impulsivo, daqueles rápidos, atropelados. Não. Foi firme, escolhido, cheio de intenção. Um beijo de alguém que sabe o que quer, mesmo que ainda esteja descobrindo aos poucos. E o jeito como ela segurou meu rosto… Levei a mão até ali, como se ainda sentisse os dedos dela. O trânsito era leve, então deixei a mão esquerda no volante e a direita no apoio, relaxado — coisa rara, porque geralmente eu dirijo com atenção quase clínica. Mas hoje… hoje eu estava suspenso num estado quase bobo de encantamento. A lembrança da risada dela durante o jantar veio primeiro, clara como se estivesse acontecendo ali do meu lado. O jeito como ela inclinava o rosto para trás quando ria de verdade. O brilho dos olhos. A forma como ela tocava o copo pela haste, sempre elegante, sempre consciente de si mesma — e mesmo assim completamente espontânea comigo. O vestido preto, discreto, sofisticado. O perfume que grudou em mim, leve, cítrico, limpo. E a conversa… Meu Deus, a conversa. Fluía. Sem esforço. Eu não lembrava da última vez em que tinha conversado tanto sem olhar para o relógio mental que, dentro de mim, marca a fadiga social. Com ela, não houve fadiga. Houve vontade de continuar. O jeito como ela falava da profissão, das leituras, dos pensamentos… Tinha profundidade. Tinha graça. Tinha alma. E eu tinha sido tomado por aquela sensação estranha e boa de: quero mais. A noite inteira parecia ter sido desenhada com precisão cirúrgica — cada gesto, cada silêncio, cada troca de olhar. Até o fato de sermos os últimos no restaurante… Isso me fez sorrir agora. Dois solitários que encontraram companhia um no outro sem planejar. Cheguei a um semáforo fechado, aquele vermelho intenso refletindo no capô do carro. Apoiei a cabeça no encosto e suspirei, não pelo dia cansativo, mas por algo que, sinceramente, eu não esperava sentir tão cedo. A cena do estacionamento voltou inteira. O ar da noite, o carro dela brilhando na penumbra, a sombra do coque que ela tinha prendido mais cedo caindo de leve no rosto. E o toque — suave, decidido, quente — da mão dela no meu peito antes de me beijar. O coração acelerou de novo só de lembrar. E, no meio daquela lembrança, um pensamento me atravessou com força: Fazia tempo que eu não me sentia assim. Não era só atração. Isso eu teria percebido rápido. Era… interesse real. Curiosidade. Vontade de conhecê-la devagar, de descobrir detalhes, manias, medos, risos, silêncios. Manuela tinha algo que não acontecia comigo há anos: Ela me fazia querer estar presente. O sinal abriu. Dirigi por mais algumas quadras, deixando a cidade desfilar pelas janelas. Luzes altas, lojas fechando, pessoas caminhando apressadas… o mundo seguia igual, mas eu não. Eu conseguia ouvir a voz dela repetindo na minha cabeça: “Obrigada pela noite.” E o jeito como ela disse “boa noite”, quase como se guardasse um segredo no canto da boca… aquilo me desmontou de leve. Passei pela avenida principal já perto de casa, reduzindo a velocidade como quem tenta prolongar o trajeto. A música que tocava no carro parecia perfeita — suave, instrumental, quase cinematográfica — mas nada combinava mais com aquela noite do que o silêncio. Então eu desliguei. Fiquei apenas com meus pensamentos. Revi cada segundo do jantar: o momento em que ela cruzou as pernas ajustando o vestido; o sorriso tímido quando elogiou o prato; o toque leve no meu braço quando contamos alguma história engraçada; a troca de olhares quando, sem perceber, dissemos a mesma coisa. A noite tinha sido um encaixe perfeito. E eu, que geralmente sou racional, cuidadoso, sempre dois passos atrás quando se trata de proximidade… eu simplesmente não quis colocar freio em nada. Era como se, pela primeira vez em muito tempo, eu permitisse que algo novo se aproximasse sem tentar controlar a forma, o tempo, a intensidade. O carro entrou na minha rua. As árvores faziam sombras longas nos muros, e o portão ainda parecia distante demais — mas, infelizmente, estava ali. Estacionei devagar, desliguei o motor, e fiquei parado um instante no escuro, com os dedos ainda presos no volante. Fechei os olhos. E a imagem dela veio inteira: o brilho do batom iluminado pela luz do poste, a respiração ainda acelerada depois do beijo, o jeito como a mão dela escorregou pelas minhas costas antes de se afastar. Eu sorri como um i****a. Literalmente. Saí do carro com um suspiro longo, querendo voltar no tempo. A casa estava silenciosa, aquele silêncio elegante que sempre me acompanhou — mas, pela primeira vez, senti que estava… grande demais. Entrei, larguei as chaves na bandeja de mármore, tirei o blazer e o deixei na poltrona. E tudo que conseguia pensar era: Ela me beijou. Ela quis me beijar. E eu quero ver Manuela de novo. Fui para o quarto ainda com a sensação do perfume dela grudado na minha camisa. Joguei o corpo na cama e encarei o teto escuro com um sorriso que me denunciava. A verdade é que eu dormi assim mesmo: feliz, leve, e com o coração absolutamente tomado por uma mulher que apareceu no meu caminho do jeito mais improvável — literalmente batendo no meu carro — e deixando uma marca que nenhum conserto tiraria. Manuela tinha entrado na minha vida. E eu estava pronto, talvez até ansioso, para o que viesse depois.
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