Acordei com a luz suave atravessando a cortina do quarto, mas demorei alguns segundos pra entender onde eu estava. Isso porque a sensação era tão… diferente, que meu cérebro demorou pra se alinhar com a realidade.
Passei a mão no rosto, respirei fundo e ali veio ela, como se estivesse deitada ao meu lado:
Manuela.
O beijo.
O perfume.
A risada.
A forma como segurou meu rosto.
Meu peito aqueceu imediatamente, como se alguém tivesse acendido uma pequena lareira lá dentro. E eu não conseguia evitar o sorriso i****a que apareceu de novo.
Sentei na cama devagar, lembrando dos detalhes com uma nitidez irritante — ou deliciosa, depende do ponto de vista. A noite anterior não tinha sido normal. Não tinha sido comum. Tinha sido a espécie de noite que deixa a memória perfumada.
Levantei, tomei um banho demorado, tentando organizar os pensamentos. A água quente escorria pelos ombros enquanto eu revisava, passo a passo, cada momento do jantar, desde a forma como ela arrumou o menu na mesa até a curva suave do sorriso quando agradeceu pela noite.
E no instante em que a água tocou meu peito, lembrei das mãos dela ali. Mais uma vez, aquele calor esquisito se instalou.
Eu preciso me recompor, pensei, meio rindo sozinho.
Saí do boxe, vesti a camisa branca de tecido leve, com as mangas dobradas, coloquei a calça social azul-escura — e parei um segundo para me olhar no espelho. Não por vaidade, mas por uma estranha consciência de que… eu estava diferente. Mais leve. Mais disposto.
Desci para a cozinha. O café estava quente — graças a mim mesmo, que havia deixado a máquina programada na noite anterior — e o aroma encheu o ambiente. Peguei a xícara, dei o primeiro gole e inevitavelmente voltei a sorrir.
Aquela mulher tinha deixado marcas pequenas, quase imperceptíveis, mas profundas.
No consultório, porém, o dia começou caótico. Marta já veio atrás de mim com uma prancheta lotada de coisas, pacientes reagendando, resultados atrasados, tudo aquilo que normalmente me irritaria um pouco, mas naquele dia… não conseguiu.
Era como se a noite anterior tivesse colocado uma película protetora entre mim e o resto do mundo.
Até que, entre um atendimento e outro, aconteceu.
O celular vibrou.
Tirei do bolso sem expectativa alguma — e congelei.
Manuela.
O nome dela estava ali, como se fosse a coisa mais normal do mundo, mas meu coração deu um salto discreto, quase juvenil, que eu preferiria que ninguém tivesse visto.
“Leonardo, bom dia.
Queria agradecer novamente pela noite.
E… pelo resto também.”
Fiquei olhando para aquelas palavras como quem observa um tesouro que apareceu sem aviso. O “pelo resto também” tinha um brilho próprio. Era simples. Elegante. Mas cheio de significado.
E antes que eu terminasse de absorver a mensagem, Marta entrou no consultório sem bater — como sempre — e largou uma caixa grande sobre a minha mesa.
— Chegou pra você, doutor.
Olhei confuso.
— De quem?
— Não veio nome. Só um cartão.
Meu coração já sabia. E quando abri a caixa, tive certeza.
Era uma caixa refinada, com um laço discreto, e dentro… um presente elegantíssimo. Um vinho caríssimo, de safra limitada, acompanhado de uma pequena caixa de chocolates artesanais.
E o cartão.
“Obrigada por ontem.
Obrigada pela conversa.
Obrigada por ter me achado quando eu estava completamente perdida.
E… por favor, deixe-me ao menos pagar o conserto do seu carro.
Manuela.”
Meu sorriso abriu inteiro.
O cartão tinha a letra dela. E o número de telefone — que eu reconheci de imediato. Era o profissional. Ao lado, o endereço do trabalho dela.
Eu deveria ter simplesmente respondido a mensagem.
Mas, eu quis fazer algo diferente.
Algo pessoal. Algo que tivesse a mesma elegância, o mesmo cuidado que ela teve comigo.
Peguei a caixa do vinho, li o cartão mais uma vez, segurei por alguns segundos, e então decidi:
Eu mandaria flores, de novo.
Flores de verdade.
Flores que dissessem o que eu não conseguiria escrever por mensagem sem parecer frio. A gente tinha meio que criado esse hábito de devolver presentes com presentes.
Fui discretamente para a floricultura mais refinada da cidade, fiz o pedido, escolhi um arranjo elegante — branco e verde, clássico — e pedi para ser entregue diretamente no endereço do trabalho dela.
Junto, mandei um cartão simples, direto, mas carregado de intenção:
“Manuela,
sua gentileza já pagou tudo.
A sua presença foi o suficiente.
Considere o carro… quitado. De vez, é sério.
Leonardo.”
Quando terminei de escrever o cartão, senti aquele arrepio leve de ansiedade gostosa — algo que eu também não sentia há muito tempo.
Enviei.
Respirei fundo.
E então voltei ao trabalho e fiquei ali, encarando a própria ousadia.
Foi nesse exato momento que a porta do meu consultório se abriu com a sutileza de um furacão.
Nathan.
Sempre ele.
— A Marta me contou. — Ele entrou fechando a porta com o pé, como se fosse proprietário do andar inteiro.
Eu levantei o olhar devagar, com uma sobrancelha arqueada.
— Contou o quê?
Ele jogou o corpo na poltrona de frente para minha mesa, abriu os braços como quem anuncia um milagre.
— Que você mandou flores, de novo.
Suspirei. — Era pra ser discreto.
— Discreto? — Ele deu uma gargalhada escandalosa. — Você mandando flores, Leonardo? Isso não é discreto. Isso é histórico! Isso deveria estar estampado nos jornais.
— Não é nada demais — respondi, tentando manter a compostura.
Nathan colocou as mãos na cabeça, teatral.
— Não é nada demais? Leonardo… — Ele inclinou o corpo pra frente, apontando um dedo para mim. — Se você mandou flores, é porque caiu. Caiu bonito. Caiu de verdade.
Revirei os olhos, mas não consegui evitar um leve sorriso.
Ele percebeu.
— Eu sabia! — bateu palmas uma vez. — Eu sabia que essa mulher tinha mexido com você no leilão. Meu Deus, quando você deu aquele lance só pra superar ela, eu quase levantei e gritei “beija logo”.
Balancei a cabeça, rindo baixo.
— Não é assim.
— É sim — ele disse, categórico. — É exatamente assim. E você sabe que é.
Nathan se levantou, apoiou as mãos na mesa e disse, quase ordenando:
— Agora você vai fazer o quê?
— Eu… — parei, como se estivesse escolhendo as palavras. — Eu vou responder a mensagem dela.
Nathan piscou devagar.
— E vai convidar pra jantar de novo. Tem que marcar em cima, senão vem outro e pega o que é seu.
Aí eu ri.
— Você está muito investido nisso.
Ele levantou as mãos.
— Eu estou torcendo por você, meu amigo! Eu jamais vi você tão… disposto. Então já adianto: se você não chamar essa mulher pra jantar, eu mesmo vou chamar. E aí, você aguenta?
Suspirei.
Sabia que ele não me deixaria em paz.
Nesse momento, meu celular vibrou.
Abri a mensagem.
“Leonardo, recebi as flores.
São lindas.
Obrigada… de verdade.”
Meu coração deu aquele salto de novo.
Nathan viu o meu rosto e já comemorou antes mesmo de eu falar algo.
— VAI, LEONARDO. — Ele levantou as mãos para o alto, como um técnico orientando um jogador. — AGORA. JÁ. Responde. Convida. Se você demorar, vai parecer insegurança. E ela não merece insegurança. Ela merece você do jeito que está: seguro, elegante, aquele príncipe italiano que você finge que não é.
Suspirei fundo.
Peguei o celular.
Respirei mais uma vez.
E escrevi:
“Fico feliz que tenha gostado.
E… se você quiser, eu adoraria agradecer pessoalmente.
Jantar?
Quando for confortável pra você.”
Nathan soltou um grito de vitória, como se eu tivesse acabado de marcar um gol em final de campeonato.
Eu só encarei a tela, sentindo o coração acelerar num ritmo que eu não lembrava ter sentido antes.
E então…
enviei.
Pela primeira vez em muito tempo, tinha dado um passo que não era calculado, nem frio, nem protocolar.
Foi um passo humano.
Foi um passo que o aproximava — de verdade — de Manuela.
E o dia estava só começando. Eu queria ela, muito.