O Silêncio Aprende a Falar

1724 Words
Existem noites que não precisam ser barulhentas para serem inesquecíveis. Aquela era assim. O quarto estava envolto numa penumbra suave, iluminado apenas pela luz morna dos abajures e pelo reflexo distante da cidade que entrava pelas cortinas entreabertas. Não havia urgência em nenhum gesto. Tudo acontecia no tempo exato que precisava acontecer. Manuela estava diante de mim com uma calma que contrastava com a intensidade do que sentíamos. Não havia nervosismo. Não havia pressa. Havia presença. Eu toquei seu rosto com cuidado, como se estivesse tocando algo raro. Sua pele era quente sob meus dedos, e o olhar que ela me devolveu era firme, seguro — o olhar de uma mulher que sabe o que quer, mas que escolhe, conscientemente, estar ali. — Você está aqui — ela disse, baixinho. Não como uma constatação. Como um alívio. Inclinei a testa contra a dela, respirando o mesmo ar, sentindo o mesmo ritmo. Meu corpo reconhecia o dela de um jeito que não fazia sentido explicar. Era como se, mesmo depois de tantos anos fechado, eu soubesse exatamente como acolhê-la. Beijei sua boca com mais profundidade, mas ainda com cuidado. Um beijo que não pedia, oferecia. Manuela respondeu da mesma forma — sem ansiedade, sem expectativa além daquele instante. Quando minhas mãos encontraram suas costas, o toque foi lento, respeitoso, atento. Cada centímetro parecia merecer atenção. Não havia um mapa a seguir. Estávamos descobrindo juntos. Ela suspirou contra minha boca, e aquele som simples atravessou meu peito como algo poderoso. Não era desejo cru. Era entrega. Era confiança. Fazíamos amor com os olhos antes mesmo de qualquer outra coisa. Nos olhares demorados. Nas pausas. No jeito como nossos corpos se aproximavam e recuavam, como se estivessem conversando numa língua silenciosa. Manuela apoiou a testa no meu ombro por um instante, e eu a envolvi com os braços, sentindo seu corpo se ajustar ao meu com naturalidade. Como se aquele encaixe sempre tivesse existido, apenas esperando o momento certo. Não havia necessidade de palavras. Tudo o que precisava ser dito estava no jeito como ela respirava mais fundo quando eu a puxava para perto. No modo como seus dedos se fechavam levemente em mim, como quem não quer cair, mas também não quer ir embora. Eu a conduzi com cuidado até a cama, não como quem toma, mas como quem convida. Ela veio comigo sem hesitar, mantendo o olhar preso ao meu, como se quisesse se certificar de que eu continuava ali. E eu estava. Presente. Inteiro. Vulnerável de um jeito que não me lembrava de ter sido desde que perdi minha esposa. Deitei ao lado dela, não sobre ela. Esse detalhe importava. Queria que ela sentisse que não havia domínio ali — apenas escolha mútua. Manuela virou-se para mim, apoiando a mão no meu peito, sentindo meu coração. — Você sente isso? — ela murmurou. — Sinto — respondi. — Há muito tempo. Ela sorriu, emocionada, e aproximou o rosto do meu, encostando o nariz no meu. Pequenos gestos. Ínfimos. Mas cheios de significado. Quando voltamos a nos beijar, foi diferente. Mais lento. Mais profundo. Como se cada beijo carregasse a história de tudo o que não vivemos até ali — e a promessa silenciosa do que poderia vir. Nossos corpos se aproximaram ainda mais, o calor compartilhado criando uma i********e que não precisava ser descrita para ser sentida. Eu sabia exatamente quando tocar, quando parar, quando apenas permanecer. Manuela reagia com uma sensibilidade impressionante. Cada gesto meu era recebido com uma resposta sutil — um suspiro, um arrepio, um ajuste de corpo que dizia mais do que qualquer palavra. Não houve pressa em nada. O tempo parecia ter se alongado só para nós dois. Em algum momento, ela descansou a cabeça no meu peito, ouvindo meu coração, e eu passei os dedos por seus cabelos com uma delicadeza quase reverente. — Eu me sinto segura com você — ela disse, tão baixo que parecia um segredo. E aquela frase me desmontou mais do que qualquer toque. Segurei-a com mais firmeza, não para prender, mas para acolher. Fizemos amor como duas pessoas que sabem o peso das perdas, o valor das segundas chances, e a beleza rara de um encontro que acontece quando não se está mais procurando. Foi intenso sem ser agressivo. Profundo sem ser dramático. Quente sem ser apressado. Quando finalmente nos deixamos ficar ali, juntos, o silêncio que nos envolveu não era vazio. Era pleno. Manuela permaneceu próxima, desenhando linhas invisíveis sobre minha pele, distraída, tranquila. Eu observava o teto, sentindo algo que não sentia há anos: paz. Não aquela paz silenciosa de quem se conforma. Mas a paz vibrante de quem reencontra algo que achava perdido. — Leonardo… — ela chamou, já com a voz sonolenta. — Estou aqui. — Eu sei. E isso bastou. Adormecemos assim, sem promessas grandiosas, sem discursos. Apenas dois adultos que se permitiram sentir — e descobriram que ainda eram capazes de amar com intensidade e cuidado. Naquela noite, eu não pensei no passado. Não temi o futuro. Eu apenas estive. E, pela primeira vez em muito tempo, isso foi mais do que suficiente. Acordei devagar. Não porque o corpo estivesse cansado, mas porque a mente ainda estava mergulhada naquele estado raro em que o mundo parece seguro. Levei alguns segundos para entender onde estava. O teto não era o meu. O silêncio também não. Havia um cheiro diferente no ar — café fresco misturado com algo floral, suave, que eu já começava a associar a ela. Manuela. Virei o rosto lentamente e encontrei seus olhos fixos em mim. Ela estava deitada de lado, apoiando a cabeça na mão, os cabelos soltos caindo pelo ombro, usando uma camisa que eu reconheci vagamente como minha. Não sorria exatamente. Observava. Como quem contempla algo que quer guardar na memória. — Bom dia — ela disse, baixinho, como se tivesse medo de quebrar o momento. Sorri antes mesmo de responder. Um sorriso fácil, involuntário. Um daqueles que nascem antes da razão. — Há quanto tempo você está me olhando assim? Ela deu de ombros, divertida. — Tempo suficiente para perceber que você dorme mais tranquilo do que imagina. Estendi a mão até o rosto dela, tocando sua bochecha com o dorso dos dedos. A pele ainda estava morna, real. Nada daquilo parecia sonho. — E você acordou cedo — observei. — Eu acordo cedo todos os dias. Só não costumo ter companhia — respondeu, sem peso. Apenas verdade. Aproximei-me um pouco mais, encostando a testa na dela. — Se quiser, posso fingir que ainda estou dormindo. Ela riu baixo, aquele riso contido que parece feito só para quem está perto o bastante. — Não. Eu gosto de você acordado. A forma como ela disse aquilo me atravessou de um jeito silencioso, mas profundo. Não era sedução. Era escolha. Beijei sua boca com calma, um beijo de manhã, sem urgência, sem intenção além de dizer “estou aqui”. Manuela respondeu do mesmo jeito, passando a mão pelo meu braço, desenhando caminhos lentos, quase distraídos. Ficamos assim por alguns minutos. Sem pressa. Apenas existindo. — Café — ela anunciou por fim. — Antes que esfrie. Levantamos juntos, sem aquele constrangimento típico de primeiras noites. Tudo fluía com naturalidade demais para ser recente. Vesti a calça com calma, observando Manuela caminhar pelo quarto, segura, confortável, como se aquele espaço já fosse compartilhado. A cozinha estava iluminada pela luz da manhã. A cidade parecia mais lenta vista dali de cima. Ela havia preparado tudo com cuidado: mesa posta, frutas cortadas, pão ainda quente, café passado na hora. — Você fez tudo isso sozinha? — perguntei. — Gosto de cozinhar quando estou de bom humor — respondeu, servindo o café. — E hoje eu acordei… leve. Sentamos um de frente para o outro. O silêncio entre nós não era constrangedor. Era cheio. Manuela me observava enquanto eu bebia o café, como se estivesse analisando minhas reações. Eu percebia, mas não me importava. — O que foi? — perguntei. — Nada. Só estou confirmando uma teoria. — E qual seria? Ela sorriu. — Você fica mais bonito pela manhã. Balancei a cabeça, fingindo discordar. — Isso é o efeito da luz natural. Engana qualquer um. Ela estendeu a mão por cima da mesa e tocou meus dedos. — Não me engana. Conversamos sobre coisas simples. A semana. O trabalho. Pequenos detalhes que não mudariam o mundo, mas que criavam i********e. Em alguns momentos, nossos pés se encontravam sob a mesa. Em outros, nossas mãos permaneciam unidas sem motivo aparente. Depois do café, Manuela se levantou para recolher as xícaras. Fui atrás, encostando-me ao balcão enquanto ela organizava tudo com movimentos tranquilos. — Você não parece o tipo de homem que fica para o café da manhã — comentou. — Eu não sou — admiti. — Mas estou reconsiderando muita coisa ultimamente. Ela virou-se para mim, apoiando as mãos no balcão. — Isso é bom ou perigoso? — Ainda não sei — respondi. — Mas é necessário. Ela se aproximou mais um pouco. Não o suficiente para tocar, mas perto o bastante para criar tensão. — Eu não quero ser uma bagunça na sua vida, Leonardo. Segurei seu rosto com cuidado, fazendo com que ela me olhasse nos olhos. — Você não é. Você é… uma pausa. Beijei-a novamente, agora com mais intenção, mas ainda com delicadeza. Um beijo que prometia continuidade, não ruptura. Quando nos afastamos, ela encostou a testa no meu peito, respirando fundo. — Eu gosto do jeito como você não pressiona — disse. — Faz tudo parecer… seguro. — Porque é — respondi. — Pelo menos comigo. Ficamos ali mais um tempo. Sem relógio. Sem urgência. Apenas dois adultos descobrindo o início de algo que não precisava de rótulos imediatos. Antes de ir embora, ajudei-a a organizar a cozinha. Um gesto simples, quase doméstico, que carregava mais significado do que qualquer grande declaração. Na porta, Manuela me abraçou com força, como se quisesse me guardar ali por mais alguns segundos. — Obrigada por ontem. E por hoje. — Obrigado você — respondi. — Pela confiança. Ela me beijou uma última vez, demorada, com um sorriso tranquilo nos lábios quando se afastou. Enquanto eu ia embora, senti algo que não sentia havia anos. Antecipação. Não ansiedade. Não medo. A simples vontade de voltar. E isso, por si só, já dizia muita coisa.
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