O consultório já estava quase silencioso quando a notificação apareceu.
Discreta.
Apenas um pequeno som — tlim.
Mas, para mim, soou como se alguém tivesse derrubado uma bandeja de prata no chão.
Peguei o celular devagar, como se ele pudesse explodir a qualquer momento.
A conversa com Manuela estava aberta.
E ali, abaixo da minha mensagem, surgiu o texto dela.
“Eu adoraria jantar com você, Leonardo.
Só me diga quando.”
Simples.
Direto.
Elegante.
E com uma pontinha de entusiasmo — a mesma que ela tinha na voz naquela noite da gala, quando me desafiava no leilão com aqueles lances arriscados e o sorriso triunfante.
Senti um calor leve no rosto.
Era quase cômico: um homem que lidava diariamente com mães desesperadas, diagnósticos complexos, cirurgias delicadas… parado ali, rindo sozinho de uma mensagem.
E, ainda assim, havia algo diferente.
Um brilho naquilo.
Como se algo, depois de muito tempo, tivesse voltado ao lugar.
Passei a mão pelos cabelos, respirando fundo.
— Muito bem… — murmurei para mim mesmo. — Vamos fazer isso direito.
Encostei no encosto da cadeira e deixei que as ideias viessem.
Onde levar Manuela?
Não poderia ser um lugar barulhento, nem algo ostensivo demais.
Um ambiente bonito, mas acolhedor.
Um restaurante que permitisse conversa, vinho, clima agradável.
Fechei os olhos por um instante.
Finalmente, lembrei de um lugar.
O Le Jardin.
Mesa de velas, vista para o jardim interno, música em volume baixo.
Íntimo, elegante.
Escrevi:
“Que tal amanhã à noite?
Sete e meia, no Le Jardin?”
O texto estava claro, sóbrio, apropriado.
Mas antes de enviar, reli três vezes para garantir que não soasse ansioso demais.
Enviei.
A resposta dela veio quase de imediato.
“Amanhã está ótimo.
Eu estarei lá.”
Senti a respiração prender por meio segundo.
A certeza dela.
A naturalidade.
A confiança.
Guardei o celular no bolso e me levantei.
A tensão que eu carregava nos ombros parecia mais leve, como se alguma engrenagem interna tivesse destravado.
A noite passou devagar.
Em casa, tomei banho tentando não pensar demais.
Mas pensar era inevitável.
Lembrei do jeito como ela falava no bar da gala — voz baixa, a taça entre os dedos, o olhar preso no meu como se fosse natural.
A forma como ria das piadas de todos, mas, quando se dirigia a mim, o tom mudava.
Ficava mais suave.
Quase… íntimo.
E, antes que qualquer previsão me escapasse, o convite estava aceito.
No dia seguinte, já no hospital, a manhã correu com sua rotina habitual: prontuários, rounds, conversas com residentes.
Mas, por baixo de tudo isso, havia uma vibração discreta — como se algo estivesse prestes a acontecer.
Nathan apareceu na hora do almoço, claro.
Com a sutileza de um vendaval.
— Então? — perguntou, antes mesmo de sentar. — Ela respondeu?
— Sim.
— Sim?! — ele arregalou os olhos, quase derrubando a bandeja. — E você só me diz “sim”?
— Ela aceitou o jantar.
— Meu Deus. — Ele bateu as mãos, teatralmente. — Eu tô emocionado.
— Por favor…
— Não, sério. — Ele se aproximou, abaixando o tom. — Foi o destino, Leo. Acidente de carro? Mulher chorando? Você acalmando ela? Flores? Isso nem parece a sua vida. Isso parece roteiro de filme.
— Você assiste filmes demais.
— E você vive de menos — retrucou, orgulhoso de sua frase.
Depois de muita falação, ele finalmente sossegou.
— Então, onde vai levar a futura senhora Duarte?
— Nathan… — suspirei. — É só um jantar.
— Claro que é. Até virar dois. E depois três. E depois casamento no civil.
Ignorei.
— Le Jardin — respondi.
Nathan arregalou os olhos.
— O Le Jardin?!
— Sim.
— Elegante. Reservado. Bonito. — ele afirmou, balançando a cabeça. — Exemplo perfeito de “não estou tentando impressionar, mas inevitavelmente vou impressionar”.
— Exagero.
— Realidade.
Nathan cruzou os braços, analisando meu rosto.
— Você está diferente, sabia?
— Diferente como?
— Menos… fechado.
— Isso é r**m?
— Isso é ótimo.
Ele sorriu, sincero pela primeira vez na conversa.
— Vai dar certo, Leo. Eu sinto.
— Você não sente nada.
— Sinto sim. Sou praticamente um médium romântico.
Revirei os olhos.
Mas a verdade é que, pela primeira vez em muito tempo, eu também sentia algo — ainda que não soubesse nomear.
A mensagem dela chegou às 18h20.
“Boa noite, Leonardo.
Só confirmando: às 19h30 no Le Jardin.
Espero que seu dia tenha sido leve.”
Leve.
Curioso.
Meu dia não tinha sido leve — mas a mensagem tornou tudo mais suportável.
Respondi:
“Confirmado.”
Depois de enviar, guardei o celular no bolso.
Não fiquei esperando resposta.
Quis dar espaço.
Como sempre.
Mas, por dentro, algo se movia.
Algo tênue.
Novo.
Sutil, mas vivo.
Saí do hospital e fui direto para casa, a mente trabalhando em silêncio.
Abri o armário e olhei longamente para os ternos.
Pretos demais.
Cinzas demais.
Sérios demais.
Toquei num azul-marinho discreto — clássico, mas não rígido.
“Sim”, pensei.
“Acho que esse.”
Aguardei.
Respirei.
E, pela primeira vez em muitos meses, senti uma pontada de… expectativa.
Não ansiedade.
Expectativa.
É diferente.
É melhor.
Mais honesto.
Cheguei ao Le Jardin alguns minutos antes do horário.
Costume meu — pontualidade não é obsessão, é conforto.
Gosto de observar o ambiente antes de qualquer compromisso importante. E, de alguma forma, saber que ela chegaria e me encontraria ali, tranquilo, me parecia… certo.
O restaurante estava impecável, como sempre.
Luz baixa, dourada, refletindo suavemente nas taças alinhadas.
Um piano tocava ao fundo, discreto o bastante para ser quase uma respiração.
O jardim interno estava iluminado por pequenas luzes nas árvores, como estrelas presas ali só para aquela noite.
A mesa que reservei ficava perto do vidro — privacidade sem isolamento.
Perfeito.
O garçom se aproximou.
— Deseja algo enquanto aguarda, senhor Duarte?
— Apenas água, obrigado.
Minutos depois, eu estava mexendo no relógio de forma desnecessária — um gesto que denunciei mentalmente e cortei na hora.
Estava tudo bem.
Era apenas um jantar.
Até que ela entrou.
E não havia nada de “apenas” naquilo.
Manuela surgiu na porta do restaurante como se o ambiente tivesse sido ajustado para recebê-la.
Usava um vestido verde escuro, simples e elegante, com um decote discreto e um caimento que valorizava a postura impecável dela.
Cabelos presos em um coque baixo, alguns fios soltos propositalmente moldando o rosto.
Nada extravagante — e justamente por isso, absolutamente marcante.
Ela olhou em volta, procurando a mesa, e por um instante seus olhos encontraram os meus.
Houve uma pequena pausa — involuntária, dela e minha.
Não surpresa… mas reconhecimento.
Um “é você”.
Ela caminhou até mim.
E, conforme se aproximava, pude perceber detalhes que não vi na gala:
o perfume suave, floral;
a forma como ela segurava a bolsa;
o leve rubor nas maçãs do rosto — talvez pela pressa, talvez pela expectativa.
Levantei-me para recebê-la.
— Boa noite, Manuela.
— Boa noite, Leonardo. — Ela sorriu, um sorriso que parecia aquecer a luz do ambiente. — Espero não ter atrasado.
— Não. Chegou exatamente na hora certa.
Ela se acomodou e por alguns segundos houve aquele silêncio confortável — o primeiro sinal de que a companhia seria boa.
— Você está elegante — ela comentou, observando meu terno azul marinho.
— Obrigado. — Toquei de leve na lapela. — Tentei acompanhar seu nível.
Ela riu, discreta, educada, como quem reconhece um elogio, mas prefere não demonstrar o impacto que ele teve.
— Imagino que seja impossível acompanhar — respondi, antes que pudesse racionalizar a frase.
Ela baixou os olhos por um instante, surpresa, corando de leve.
E foi assim que a noite começou:
com charme tranquilo, respeito, atenção — e um interesse mútuo impossível de esconder.
O garçom trouxe o vinho.
— Aceita? — perguntei, segurando a garrafa para ela ver o rótulo.
— Confio no seu gosto — disse, simples, mas com um brilho nos olhos.
Servi as taças.
Ela agradeceu com um aceno gracioso, e nossos dedos quase se tocaram no movimento.
Quase.
— Como está depois daqueles dias difíceis? — perguntei, não invadindo, mas demonstrando cuidado.
Manuela respirou fundo, apoiando os braços delicadamente na mesa.
— Melhor. — Ela sorriu pequeno. — Acho que a conversa com você foi mais útil do que deveria admitir.
— Não precisa admitir. Eu entendo.
— Você tem esse jeito… — ela gesticulou com a mão, procurando palavras. — Um jeito que acalma.
— Profissão. — sorri.
— Não — ela respondeu, firme, porém suave. — É personalidade mesmo.
Essa resposta me atingiu mais do que deveria.
— E você? — ela perguntou. — A batida do carro… já conseguiu resolver?
— Ainda não levei para arrumar. Mas está tudo sob controle.
— Eu realmente queria pagar o conserto.
— Já pagou — respondi.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Já?
— A melhor forma possível.
— Como? — ela inclinou a cabeça, curiosa.
— Com a sua companhia aquele dia, hoje.
O sorriso dela suavizou tudo ao redor.
— Então espero… — ela tocou a borda da taça — …que valha o investimento.
— Garanto que vale.
Ela riu.
E não foi aquela risada leve da gala, nem a tímida do reencontro.
Foi uma risada espontânea — bonita, iluminada, sincera.
A entrada chegou, mas quase não tocamos na comida nos primeiros minutos.
A conversa tomava todo o espaço.
Ela falou sobre o trabalho:
— Eu gosto do que faço — disse — mas odeio a parte empresarial, sabe? Planilhas, relatórios, essas coisas… prefiro pessoas. Prefiro movimento. Talvez por isso eu faça tanta coisa ao mesmo tempo.
— Isso explica por que me atropelou — provoquei, sorrindo.
Ela levou a mão ao rosto, rindo:
— Meu Deus, nem me lembra disso.
— Foi a melhor colisão da minha vida — respondi, em tom moderado, mas firme.
Manuela me encarou por um momento a mais do que o necessário.
Não havia malícia.
Havia… consideração.
Observação.
Interesse.
— Você fala desse jeito sempre? — ela brincou.
— Só quando a pessoa merece.
Os olhos dela ficaram um pouco mais brilhantes.
Depois, ela perguntou sobre mim:
— Você parece… muito centrado.
— Sou.
— Mas também parece alguém que sente demais.
— Pessoas que trabalham com dor alheia não têm muita escolha.
Ela assentiu lentamente, como se aquela resposta dissesse mais do que eu pretendia revelar.
— E… você se permite viver alguma coisa para você? — ela perguntou.
A sinceridade dela me pegou em cheio.
— Tenho tentado — admiti.
— E está funcionando?
— Hoje, sim.
Silêncio.
Mas não era vazio.
Era cheio de significado.
Cheio dela.
O salão ao redor começou a esvaziar, devagar, e nós nem percebemos.
A música mudou para algo ainda mais suave.
A iluminação ficou mais quente.
O ruído de conversas diminuiu.
E nós, ali, conversando sem pressa, como se fosse natural.
Como se fosse inevitável.
Quando percebi, o garçom já estava vindo com a garrafa pela terceira vez.
— Gostariam de mais um pouco?
Olhei para Manuela.
Ela respondeu com um sorriso delicado:
— Só se você quiser.
— Mais meia taça — pedi.
O garçom se retirou.
Manuela apoiou o queixo na mão, inclinando-se levemente para frente — gesto simples, mas íntimo sem ser invasivo.
— Sabe, Leonardo… — começou. — Eu realmente não esperava que aquela noite na gala… fosse render algo.
— Nem eu.
— Mas foi… agradável.
— Muito.
— Você é divertido… — ela disse, pensativa — de um jeito inesperado.
— Inesperado?
— Parece que ninguém imagina que você tem humor.
— Concordo. Meu humor vive em segredo.
— Pois deveria aparecer mais.
Ela tocou a própria taça, girando o vinho.
O gesto era elegante, calmo, gracioso.
— Gostei de reencontrar você — ela afirmou, sem rodeios.
— Eu também — respondi, com a mesma honestidade.
Quando olhamos ao redor, o restaurante já tinha muito menos gente.
Em outra situação, eu teria ficado constrangido por ocupar a mesa por tanto tempo.
Mas ali?
Era como se o tempo tivesse decidido desacelerar só para nós dois.
— Parece que estamos fechando o lugar — ela comentou, rindo leve.
— Se isso acontecer, culpo você.
— Como assim?
— Converso mais do que o normal na sua presença.
— Então é recíproco — ela brincou.
Silêncio confortável.
Olhos que se encontram.
Um sorriso compartilhado.
Nada forçado.
Nada exagerado.
Apenas… sintonia.