O café ficava a poucas quadras dali, um refúgio discreto entre árvores e vitrines iluminadas.
Era o tipo de lugar que passaria despercebido por qualquer um distraído, mas que eu costumava visitar quando precisava respirar longe do barulho do mundo.
Lá dentro, o som era de porcelanas, vozes baixas e música de piano ao fundo — uma pausa elegante no caos da cidade.
Manuela sentou-se à minha frente, ainda um pouco trêmula.
O garçom trouxe dois cafés, e o cheiro forte do grão recém-moído preencheu o ar.
Ela manteve as mãos unidas sobre a mesa, os dedos inquietos, como se ainda tentassem se segurar em algo invisível.
— Desculpe — disse, finalmente. — Eu não devia ter aceitado vir.
— Eu insisti — respondi, calmo. — E, pelo que vi, você precisava parar um pouco.
Ela assentiu, sem me encarar.
O silêncio se instalou por alguns segundos, quebrado apenas pelo som distante da chuva começando a cair lá fora.
— Você quer me contar o que aconteceu? — perguntei.
Ela respirou fundo, os olhos fixos na xícara.
— Não é nada que mereça tanto drama — começou, com um sorriso sem brilho. — Eu só... fui ingênua.
Esperei.
Com Manuela, eu já havia aprendido que o melhor era não apressar.
Ela girou a aliança dourada no dedo — não de casamento, mas um anel elegante, simples.
Depois, falou com a voz mais baixa, quase um desabafo:
— Saí com alguém.
Não fiz comentário algum. Apenas a ouvi.
— Foi recente. Duas, três semanas talvez. Um homem que conheci em um jantar de amigos. Educado, inteligente, com aquele tipo de charme que não parece ensaiado. — Ela riu sem humor. — Eu devia ter desconfiado.
— Por quê?
— Porque homens assim são sempre bons demais pra ser verdade. — Ela ergueu o olhar, agora firme. — Ele dizia que era empresário, dono de uma importadora. Falava de viagens, negócios, metas… eu acreditava.
Fazia tempo que alguém não me fazia sentir… interessante.
— E o que mudou?
Ela desviou o olhar.
— Tudo. — Engoliu em seco. — Hoje, eu fiz uma pergunta simples. Perguntei o nome da empresa dele. E ele… — parou por um instante, como se reviver o momento a machucasse. — Ele riu. Disse que eu era “mais velha, mas ainda ingênua”. Que eu devia ter percebido que ele só queria se divertir.
Fiquei em silêncio.
O ar pareceu pesar por um momento.
— Disse também — continuou ela, a voz oscilando — que eu devia estar desesperada pra acreditar em qualquer coisa que um homem me dissesse. Que mulheres como eu servem pra isso: pra serem usadas por um tempo, até alguém mais jovem aparecer.
A frase pairou entre nós, c***l e indelicada.
Ela respirou fundo, mas as lágrimas voltaram a surgir.
— Saí do restaurante antes que ele terminasse a frase. Entrei no carro e comecei a dirigir. Acho que nem vi o trânsito. Só queria chegar em casa, esquecer tudo... e então, bati no seu carro.
Passei alguns segundos observando-a em silêncio.
Ela tentava disfarçar o choro, mas os olhos denunciavam a dor de quem ainda estava tentando se recompor.
Era estranho vê-la assim — tão diferente da mulher confiante do leilão, do sorriso calculado e da postura impecável.
Ali, diante de mim, havia uma mulher real, ferida, humana.
— Ele não disse nada sobre você — falei, por fim.
Ela franziu o cenho, confusa.
— O quê?
— Esse homem. — Inclinei o corpo levemente. — Ele não te conhece. Só descreveu o próprio vazio com outras palavras.
Ela me olhou, surpresa.
Depois, suspirou.
— Você fala como se isso não doesse.
— Dói — respondi. — Mas a dor não muda o que é verdade. Ele mentiu, e você acreditou porque ainda acredita no que é bonito. Isso não é fraqueza. É caráter.
Ela desviou o olhar, tocando o guardanapo como quem precisa de um refúgio para as mãos.
— Você fala com tanta certeza.
— É uma das poucas vantagens da solidão. Ela nos ensina a observar.
Manuela riu, baixo, enxugando discretamente o canto dos olhos.
— Você tem um jeito curioso de consolar alguém.
— Eu não sei consolar. Sei apenas falar o que é real.
— Real às vezes é dolorido demais.
— E, mesmo assim, é o que sobra quando tudo o resto desaba.
Ela me olhou de novo, e dessa vez havia algo diferente — não apenas gratidão, mas uma espécie de reconhecimento silencioso.
— Você é diferente, Leonardo.
— Isso é bom ou r**m?
— Ainda não decidi. — Sorriu de leve. — Mas é... curioso.
O garçom se aproximou, recolheu as xícaras. A chuva do lado de fora engrossava, pingos fortes contra o vidro.
Ficamos um tempo observando o movimento da rua, sem pressa.
— Sabe — disse ela, quebrando o silêncio —, quando bati no seu carro, por um instante achei que o universo estava tirando sarro de mim.
— Talvez só estivesse te lembrando que nem tudo o que se quebra é perda.
Ela ergueu o olhar.
— Isso é o tipo de frase que você diz muito?
— Só quando alguém precisa ouvir.
Ela sorriu, e o semblante, enfim, se suavizou.
— Obrigada, Leonardo.
— Não precisa agradecer.
— Preciso sim. — Tocou de leve minha mão, num gesto rápido, mas suficiente pra me deixar em silêncio por um instante. — Por não me deixar ali, parada, no meio da rua, chorando como uma i****a.
— Ninguém é i****a por se importar.
— Você acredita mesmo nisso?
— Acredito. — Fiz uma pausa. — O que nos torna idiotas é fingir que não sentimos nada.
Manuela respirou fundo, como se as palavras tivessem feito eco.
Do lado de fora, a chuva diminuía, mas o ar ainda estava carregado, denso, quase íntimo.
Ela olhou o relógio e suspirou.
— Acho que preciso ir.
— Está melhor?
— Um pouco. — Pegou a bolsa. — E, honestamente, ainda envergonhada.
— Por quê?
— Porque ninguém gosta de ser visto em seu pior momento.
— Às vezes, é no pior momento que somos mais verdadeiros.
Ela hesitou por um instante, depois sorriu, com aquele mesmo brilho tranquilo de antes.
— Vou tentar lembrar disso.
Nos levantamos juntos. Do lado de fora, o vento carregava o cheiro fresco de asfalto molhado.
Enquanto caminhávamos até os carros, ela disse, quase num sussurro:
— Sabe, não pensei que fosse te ver de novo.
— Nem eu.
— O destino tem um senso de humor peculiar.
— Ou só gosta de repetir as lições até a gente aprender.
Ela riu, e o som foi suave, diferente do riso nervoso do começo da noite.
Quando chegamos aos carros, ela parou e me olhou por um momento.
— Obrigada, de novo.
— Cuide-se, Manuela.
— Tentarei.
Ela entrou no carro, e eu fiquei observando enquanto o sedã prateado se afastava devagar sob a chuva fina.
Quando o farol traseiro dela desapareceu na esquina, percebi que o silêncio ao meu redor já não era o mesmo.
Era o tipo de silêncio que carrega expectativa.
E, pela primeira vez em muito tempo, eu senti vontade de revê-la.
Não por acaso.
Mas porque, de algum modo, eu sabia que aquele não seria o fim — apenas a pausa antes de algo que eu ainda não sabia nomear.