Corações em Trânsito

1227 Words
O café ficava a poucas quadras dali, um refúgio discreto entre árvores e vitrines iluminadas. Era o tipo de lugar que passaria despercebido por qualquer um distraído, mas que eu costumava visitar quando precisava respirar longe do barulho do mundo. Lá dentro, o som era de porcelanas, vozes baixas e música de piano ao fundo — uma pausa elegante no caos da cidade. Manuela sentou-se à minha frente, ainda um pouco trêmula. O garçom trouxe dois cafés, e o cheiro forte do grão recém-moído preencheu o ar. Ela manteve as mãos unidas sobre a mesa, os dedos inquietos, como se ainda tentassem se segurar em algo invisível. — Desculpe — disse, finalmente. — Eu não devia ter aceitado vir. — Eu insisti — respondi, calmo. — E, pelo que vi, você precisava parar um pouco. Ela assentiu, sem me encarar. O silêncio se instalou por alguns segundos, quebrado apenas pelo som distante da chuva começando a cair lá fora. — Você quer me contar o que aconteceu? — perguntei. Ela respirou fundo, os olhos fixos na xícara. — Não é nada que mereça tanto drama — começou, com um sorriso sem brilho. — Eu só... fui ingênua. Esperei. Com Manuela, eu já havia aprendido que o melhor era não apressar. Ela girou a aliança dourada no dedo — não de casamento, mas um anel elegante, simples. Depois, falou com a voz mais baixa, quase um desabafo: — Saí com alguém. Não fiz comentário algum. Apenas a ouvi. — Foi recente. Duas, três semanas talvez. Um homem que conheci em um jantar de amigos. Educado, inteligente, com aquele tipo de charme que não parece ensaiado. — Ela riu sem humor. — Eu devia ter desconfiado. — Por quê? — Porque homens assim são sempre bons demais pra ser verdade. — Ela ergueu o olhar, agora firme. — Ele dizia que era empresário, dono de uma importadora. Falava de viagens, negócios, metas… eu acreditava. Fazia tempo que alguém não me fazia sentir… interessante. — E o que mudou? Ela desviou o olhar. — Tudo. — Engoliu em seco. — Hoje, eu fiz uma pergunta simples. Perguntei o nome da empresa dele. E ele… — parou por um instante, como se reviver o momento a machucasse. — Ele riu. Disse que eu era “mais velha, mas ainda ingênua”. Que eu devia ter percebido que ele só queria se divertir. Fiquei em silêncio. O ar pareceu pesar por um momento. — Disse também — continuou ela, a voz oscilando — que eu devia estar desesperada pra acreditar em qualquer coisa que um homem me dissesse. Que mulheres como eu servem pra isso: pra serem usadas por um tempo, até alguém mais jovem aparecer. A frase pairou entre nós, c***l e indelicada. Ela respirou fundo, mas as lágrimas voltaram a surgir. — Saí do restaurante antes que ele terminasse a frase. Entrei no carro e comecei a dirigir. Acho que nem vi o trânsito. Só queria chegar em casa, esquecer tudo... e então, bati no seu carro. Passei alguns segundos observando-a em silêncio. Ela tentava disfarçar o choro, mas os olhos denunciavam a dor de quem ainda estava tentando se recompor. Era estranho vê-la assim — tão diferente da mulher confiante do leilão, do sorriso calculado e da postura impecável. Ali, diante de mim, havia uma mulher real, ferida, humana. — Ele não disse nada sobre você — falei, por fim. Ela franziu o cenho, confusa. — O quê? — Esse homem. — Inclinei o corpo levemente. — Ele não te conhece. Só descreveu o próprio vazio com outras palavras. Ela me olhou, surpresa. Depois, suspirou. — Você fala como se isso não doesse. — Dói — respondi. — Mas a dor não muda o que é verdade. Ele mentiu, e você acreditou porque ainda acredita no que é bonito. Isso não é fraqueza. É caráter. Ela desviou o olhar, tocando o guardanapo como quem precisa de um refúgio para as mãos. — Você fala com tanta certeza. — É uma das poucas vantagens da solidão. Ela nos ensina a observar. Manuela riu, baixo, enxugando discretamente o canto dos olhos. — Você tem um jeito curioso de consolar alguém. — Eu não sei consolar. Sei apenas falar o que é real. — Real às vezes é dolorido demais. — E, mesmo assim, é o que sobra quando tudo o resto desaba. Ela me olhou de novo, e dessa vez havia algo diferente — não apenas gratidão, mas uma espécie de reconhecimento silencioso. — Você é diferente, Leonardo. — Isso é bom ou r**m? — Ainda não decidi. — Sorriu de leve. — Mas é... curioso. O garçom se aproximou, recolheu as xícaras. A chuva do lado de fora engrossava, pingos fortes contra o vidro. Ficamos um tempo observando o movimento da rua, sem pressa. — Sabe — disse ela, quebrando o silêncio —, quando bati no seu carro, por um instante achei que o universo estava tirando sarro de mim. — Talvez só estivesse te lembrando que nem tudo o que se quebra é perda. Ela ergueu o olhar. — Isso é o tipo de frase que você diz muito? — Só quando alguém precisa ouvir. Ela sorriu, e o semblante, enfim, se suavizou. — Obrigada, Leonardo. — Não precisa agradecer. — Preciso sim. — Tocou de leve minha mão, num gesto rápido, mas suficiente pra me deixar em silêncio por um instante. — Por não me deixar ali, parada, no meio da rua, chorando como uma i****a. — Ninguém é i****a por se importar. — Você acredita mesmo nisso? — Acredito. — Fiz uma pausa. — O que nos torna idiotas é fingir que não sentimos nada. Manuela respirou fundo, como se as palavras tivessem feito eco. Do lado de fora, a chuva diminuía, mas o ar ainda estava carregado, denso, quase íntimo. Ela olhou o relógio e suspirou. — Acho que preciso ir. — Está melhor? — Um pouco. — Pegou a bolsa. — E, honestamente, ainda envergonhada. — Por quê? — Porque ninguém gosta de ser visto em seu pior momento. — Às vezes, é no pior momento que somos mais verdadeiros. Ela hesitou por um instante, depois sorriu, com aquele mesmo brilho tranquilo de antes. — Vou tentar lembrar disso. Nos levantamos juntos. Do lado de fora, o vento carregava o cheiro fresco de asfalto molhado. Enquanto caminhávamos até os carros, ela disse, quase num sussurro: — Sabe, não pensei que fosse te ver de novo. — Nem eu. — O destino tem um senso de humor peculiar. — Ou só gosta de repetir as lições até a gente aprender. Ela riu, e o som foi suave, diferente do riso nervoso do começo da noite. Quando chegamos aos carros, ela parou e me olhou por um momento. — Obrigada, de novo. — Cuide-se, Manuela. — Tentarei. Ela entrou no carro, e eu fiquei observando enquanto o sedã prateado se afastava devagar sob a chuva fina. Quando o farol traseiro dela desapareceu na esquina, percebi que o silêncio ao meu redor já não era o mesmo. Era o tipo de silêncio que carrega expectativa. E, pela primeira vez em muito tempo, eu senti vontade de revê-la. Não por acaso. Mas porque, de algum modo, eu sabia que aquele não seria o fim — apenas a pausa antes de algo que eu ainda não sabia nomear.
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