Eu demorei alguns segundos para realmente levantar da sala. Não por preguiça, nem por nervosismo — era mais uma espécie de reverência silenciosa ao momento. Como se, ao sair dali e seguir até a sala de jantar, algo mudasse de nível entre nós. Até então, estávamos em confidências, em verdades ditas em voz baixa, em silêncios que não incomodavam. Jantar era… outro território. Era gesto, era ritual, era i********e organizada em pratos, talheres e olhares.
Manuela percebeu meu pequeno atraso. Levantou antes de mim, com aquele jeito elegante que ela tinha até nos movimentos mais simples, e estendeu a mão, num convite suave.
— Vamos? — perguntou, com um sorriso que não pedia resposta.
Levantei, aceitei a mão dela. O toque foi breve, mas ficou em mim como ficam as coisas importantes: sem alarde, mas presentes. Caminhamos lado a lado por um corredor amplo, iluminado por uma luz quente, indireta. A casa dela tinha esse cuidado com a iluminação — nada agressivo, nada óbvio. Tudo parecia pensado para acolher, não para impressionar. Embora impressionasse.
A sala de jantar era um espetáculo contido. Mesa grande, de madeira clara, impecavelmente posta. Louças finas, mas sem exagero. Taças altas, guardanapos de tecido dobrados com uma simplicidade elegante. No centro, um arranjo baixo de flores claras, discretas, que não atrapalhavam a visão de quem estivesse sentado à frente. Tudo dizia muito sobre ela: refinamento sem ostentação, beleza sem esforço.
A ajudante do chef — uma mulher de postura firme e sorriso educado — nos cumprimentou brevemente, explicou algo sobre o menu com palavras que soaram quase musicais, cheias de termos que eu não dominava completamente, mas que despertaram curiosidade imediata. Manuela ouvia com atenção, fazia pequenos comentários, demonstrando i********e com aquele universo.
— Espero que você goste — ela disse, quando a mulher se afastou para buscar a primeira entrada. — Tentei pensar em algo leve, mas especial.
— Pelo cenário, já gostei — respondi, sincero. — A comida é quase um detalhe agora.
Ela riu, um riso baixo, elegante, e se sentou à minha frente. Fiz o mesmo. Houve aquele instante clássico de ajuste: cadeira sendo puxada, guardanapo no colo, um pequeno contato visual que durou meio segundo a mais do que o necessário.
O primeiro prato chegou. Algo delicado, apresentado como se fosse uma obra de arte. Cores harmônicas, porções pensadas. Dei a primeira garfada com cuidado, mais atento ao momento do que ao sabor — até perceber que o sabor era absurdo de bom.
— Nossa… — deixei escapar, quase involuntariamente.
Manuela sorriu, satisfeita.
— Eu sabia.
— Você sabia o quê? — perguntei, divertido.
— Que você ia gostar — respondeu. — Você tem cara de quem aprecia as coisas com calma.
Aquilo me pegou de surpresa. Não pela frase em si, mas pela leitura precisa. Dei de ombros, fingindo leveza.
— Talvez seja defeito de profissão — brinquei. — A gente acaba observando demais.
— Ou qualidade — ela rebateu. — Depende de quem observa.
Conversamos sobre a semana. Coisas simples, quase banais, mas que ganhavam outra textura ali. Eu contei de um paciente particularmente teimoso, sem entrar em detalhes, claro, e ela falou de reuniões, decisões, pequenos estresses que vinham junto com a vida que levava. Rimos de coisas bobas. Fizemos comentários irônicos sobre o quanto adultos fingem saber exatamente o que estão fazendo.
— Spoiler: ninguém sabe — ela disse, levantando a taça.
— A gente só aprende a disfarçar melhor — completei, brindando com ela.
O segundo prato chegou. Algo mais encorpado, aromático. O cheiro subiu antes mesmo de eu olhar direito, e aquilo abriu espaço para um silêncio confortável, desses que não precisam ser preenchidos. Comemos, trocando olhares ocasionais, pequenos comentários sobre o sabor, sobre a combinação, sobre o cuidado nos detalhes.
— Posso confessar uma coisa? — ela disse, depois de alguns minutos.
— Sempre — respondi.
— Eu fiquei um pouco nervosa hoje.
Ergui as sobrancelhas, surpreso.
— Você? Nervosa?
— Acredite — ela sorriu. — Não é todo dia que eu convido alguém para jantar aqui.
Aquilo pousou em mim com peso e leveza ao mesmo tempo.
— Fico honrado — falei, com sinceridade. — De verdade.
Ela sustentou meu olhar por alguns segundos. Não havia pressa ali. Nenhuma necessidade de impressionar. Apenas presença.
— E você? — ela perguntou. — Como está se sentindo?
Pensei antes de responder. Não por falta de resposta, mas por excesso delas.
— Bem — disse, por fim. — Tranquilo. E… feliz. Acho que essa é a palavra.
Ela inclinou levemente a cabeça, como quem guarda aquilo.
— Gosto de ouvir isso.
O prato principal chegou como um evento. A mulher explicou rapidamente, Manuela agradeceu, e ficamos novamente a sós naquele pequeno universo que parecia existir só para nós dois. A comida era incrível, mas, curiosamente, eu já não prestava tanta atenção nela. Estava mais interessado na forma como Manuela segurava os talheres, na maneira como ela mastigava devagar, no jeito como apoiava o cotovelo na mesa ao me ouvir falar.
Inventamos histórias engraçadas sobre encontros ruins do passado — sem entrar em detalhes íntimos, mas o suficiente para rir. Ela contou de um jantar em que o cara passou vinte minutos falando apenas de si mesmo. Eu contei de uma vez em que fui confundido com o garçom. Rimos juntos, daqueles risos que começam contidos e terminam soltos.
— Acho que estamos indo bem — ela comentou, limpando os lábios com o guardanapo.
— Por quê? — perguntei.
— Porque estamos rindo — respondeu. — Isso é sempre um bom sinal.
Concordei em silêncio. Havia algo ali que não precisava ser nomeado. Estava nos gestos pequenos, na atenção mútua, na ausência de pressa. No fato de que nenhum de nós olhava o celular. No modo como o tempo parecia ter desacelerado só para nos observar.
Quando chegamos à sobremesa, eu já tinha a sensação clara de que aquela noite ficaria comigo por muito tempo. Não importava o que viesse depois. Havia algo inteiro ali. Completo.
— Obrigada por vir — ela disse, com a voz mais baixa.
— Obrigado por me convidar — respondi, sustentando o olhar.
E naquele instante, antes mesmo de qualquer toque, antes de qualquer beijo, eu soube: aquele jantar não era apenas um jantar. Era o começo de algo que se construía devagar, com elegância, exatamente do jeito que as melhores coisas da vida costumam ser.