Antes da Noite

913 Words
Voltei para casa com a sensação estranha de que o dia ainda não tinha terminado — como se tudo o que eu tivesse vivido até então fosse apenas o prólogo de algo maior. Estacionei o carro na garagem e desliguei o motor com cuidado, permanecendo alguns segundos ali, sentado, olhando para frente sem enxergar nada. Jantar na casa dela. A ideia parecia simples, mas carregava um peso silencioso. Não era como sair para um restaurante neutro, onde tudo é território compartilhado e impessoal. Casa é outra coisa. Casa é i********e. É convite. É abrir portas que normalmente ficam fechadas. Entrei, larguei as chaves no aparador e tirei o paletó devagar, como se o tecido estivesse impregnado do dia inteiro. A casa estava silenciosa, limpa demais, organizada demais — reflexo fiel de quem eu tinha sido por anos: funcional, controlado, previsível. Hoje, no entanto, aquele silêncio não era confortável. Era expectante. Passei pela sala, pelo corredor, e fui direto ao quarto. Abri as janelas, deixando o ar da tarde entrar. O céu estava em tons de laranja e cinza, anunciando que a noite viria bonita. Respirei fundo. Calma, Leonardo. Fui até o closet, abri as portas e fiquei parado, encarando as fileiras impecáveis de camisas, ternos, sapatos alinhados. Quantas vezes eu já tinha me arrumado ali? Incontáveis. Congressos, reuniões, jantares formais, eventos médicos, compromissos que exigiam aparência, não emoção. Mas aquilo… aquilo era diferente. Não era sobre parecer bem-sucedido. Era sobre parecer eu. Passei os dedos pelas camisas, afastando algumas. Azul claro? Talvez formal demais. Branca? Segura demais. Cinza? Distante demais. Suspirei, impaciente comigo mesmo. — É só um jantar — murmurei em voz baixa, como se a casa pudesse me ouvir. Mas não era só um jantar. Não depois do beijo. Não depois da conversa. Não depois do jeito como ela me olhou ao se despedir. Escolhi uma camisa de algodão azul escuro, sem gravata, corte impecável, elegante sem esforço. Segurei-a diante do espelho por alguns segundos antes de pendurá-la fora do closet. Depois, fui atrás da calça — algo que não gritasse formalidade, mas também não parecesse descuidado. Enquanto separava as roupas, minha mente insistia em voltar para ela. Manuela na cozinha. Manuela abrindo a porta. Manuela me recebendo naquele espaço que era só dela. O pensamento fez meu estômago revirar de leve. Fui para o banheiro, liguei o chuveiro e deixei a água esquentar. Tirei a roupa devagar, como se cada gesto precisasse acompanhar o ritmo dos meus pensamentos. Quando entrei no banho, a água quente caiu sobre meus ombros e eu fechei os olhos. Ali, sozinho, sem ninguém para me observar, deixei o controle escapar um pouco. Sorri. Sorri como alguém que se permitia, finalmente, sentir expectativa sem medo. Passei o sabonete pelo corpo sem pressa, respirando fundo, sentindo o vapor subir. Minha mente foi preenchida por lembranças pequenas, quase bobas: o som da risada dela, o jeito como ela mexia no cabelo, a segurança elegante com que falava de si mesma. Ela não tentava impressionar. Ela simplesmente era. E isso… isso me desarmava. Saí do banho, me enxuguei e fiquei alguns segundos diante do espelho embaçado. Limpei o vidro com a mão e encarei meu reflexo. O homem ali não era mais o mesmo de alguns meses atrás. Ainda havia cansaço nos olhos, claro — isso não some fácil — mas havia algo novo também. Interesse. Vida. Passei a toalha pelos cabelos e fui até a pia. Aparar a barba sempre foi quase um ritual para mim. Peguei o aparelho, ajustei com cuidado, e comecei devagar, atento a cada linha. Não queria parecer rígido demais, nem relaxado demais. Queria aquele meio-termo que eu só encontrava quando estava… bem comigo mesmo. Enquanto ajustava os detalhes, pensei no Nathan. Nas piadas, nos exageros, nas provocações. Balancei a cabeça, rindo sozinho. — “Leva vinho”… — murmurei. Fui até o quarto e olhei para a pequena adega. Não era grande, mas era bem cuidada. Escolher um vinho parecia agora uma decisão absurdamente importante. Peguei uma garrafa, li o rótulo, devolvi. Peguei outra. Pensei. Não é para impressionar. É para compartilhar. Escolhi um tinto elegante, equilibrado, nada agressivo. Algo que combinasse com conversa longa, com risos baixos, com proximidade. Coloquei a garrafa sobre a cama e voltei a me vestir. A camisa caiu bem, como se tivesse sido feita para aquela noite. Abotoei devagar, conferindo no espelho. Passei perfume — pouco, discreto. Não queria invadir o espaço dela. Queria ser lembrado de perto, não anunciado de longe. Olhei o relógio. Ainda tinha tempo. Tempo demais, talvez. Andei pela casa, inquieto, segurando o celular sem realmente olhar para ele. Abri a conversa com Manuela, reli a última mensagem. Simples, educada, calorosa. Fechei de novo. Ela está me esperando. Essa consciência mexeu comigo de um jeito que eu não estava acostumado. Não era cobrança. Era vontade mútua. Era escolha. Voltei ao espelho uma última vez. Ajustei os punhos da camisa, passei a mão pelos cabelos, respirei fundo. Ali, parado, elegante, pronto, percebi algo com clareza desconcertante: Eu não estava nervoso por medo. Eu estava nervoso porque me importava. Peguei a garrafa, as chaves, o celular. Antes de sair, apaguei as luzes e fiquei alguns segundos na porta, sentindo o peso exato daquela noite sobre mim. Sorri de novo. Não aquele sorriso controlado, social, educado. Mas um sorriso verdadeiro — de homem que, depois de muito tempo, estava indo ao encontro de algo que queria. Fechei a porta atrás de mim. E fui.
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