Entre o Céu e Rótulos

810 Words
O dia da viagem amanheceu com uma leveza estranha. Não aquela leveza eufórica de quem foge da rotina, mas algo mais profundo, mais silencioso. Uma sensação de que eu estava atravessando uma fronteira invisível. Como se, ao sair de casa naquela manhã, eu não estivesse apenas indo viajar — estivesse aceitando, definitivamente, sentir. Dirigi até o hangar particular indicado por Manuela com uma pontualidade quase cerimoniosa. O lugar ficava afastado do aeroporto comercial, silencioso, discreto, envolto por aquele tipo de luxo que não precisa se anunciar. Estacionei, coloquei os óculos escuros e respirei fundo antes de sair do carro. Ela já estava lá. Manuela estava encostada em um dos carros, conversando com alguém da equipe de bordo. Vestia um conjunto claro, perfeitamente ajustado ao corpo, cabelo preso de forma elegante e óculos escuros grandes que não escondiam — apenas realçavam — sua presença. Havia algo nela que sempre chamava atenção sem esforço, como se o mundo naturalmente se orientasse em sua direção. Quando me viu, interrompeu a conversa. Sorriu. E esse sorriso… esse sempre foi o meu ponto fraco. Aproximei-me, sentindo aquele frio bom no estômago, típico de quem está no lugar certo com a pessoa certa, mas ainda se surpreende com isso. — Bom dia — ela disse, inclinando o rosto para cima. — Agora ficou — respondi. Ela riu, aquele riso baixo, elegante, que parecia sempre carregar uma promessa implícita. Sem pensar muito, sem medir o gesto, segurei seu rosto com cuidado e a beijei ali mesmo. Um beijo tranquilo, confiante, íntimo demais para ser apenas cordial. Senti o corpo dela responder imediatamente, como sempre fazia. Quando nos afastamos, percebi os olhares discretos da equipe. Um dos comissários pigarreou, tentando manter a postura profissional, mas visivelmente surpreso. — Desculpem — Manuela disse, com naturalidade. — Às vezes esquecemos que estamos em público. Uma das mulheres da equipe sorriu, simpática. — Sem problemas, senhora. — Fez uma pausa, curiosa. — Vocês são… namorados? Manuela me olhou de lado, por cima dos óculos escuros. Havia diversão naquele olhar. E algo mais. Algo que pedia resposta, mas não exigia. — Ainda não usamos rótulos — disse ela, com calma. — Mas gostamos muito um do outro. Não precisei dizer nada. Apenas segurei a mão dela com firmeza. O jatinho estava ali, imponente, silencioso, elegante. Subimos a bordo com naturalidade, como se aquilo também fosse parte da nossa história — não o luxo, mas a sensação de estarmos juntos, indo para algum lugar só nosso. O interior da aeronave era sofisticado, confortável, acolhedor. Tons neutros, poltronas amplas, iluminação suave. Manuela se sentou ao meu lado, tirando os óculos e soltando o cabelo assim que nos acomodamos. — Gosto dessa parte — disse ela. — Qual? — Quando tudo ainda é expectativa. — E o que você espera? Ela me olhou com atenção. — Que a gente continue assim. Leve. Verdadeiro. — Eu também. O som dos motores começou a preencher o espaço. A sensação da decolagem sempre me trouxe um misto de controle e entrega — algo curioso para alguém como eu. E, naquela manhã, fazia ainda mais sentido. Pouco depois, uma taça de champanhe apareceu entre nós. — À viagem — Manuela disse, erguendo a taça. — À coragem — completei. Brindamos. O líquido gelado contrastou com o calor que parecia constante entre nós. Conversávamos sobre coisas simples: o resort, o mar, os dias que teríamos sem compromissos rígidos. Mas havia algo implícito em cada frase, em cada silêncio confortável. Manuela tirou os sapatos e estendeu as pernas, apoiando-as levemente sobre as minhas. — Isso não te incomoda? — perguntou, provocadora. — Pelo contrário. Ela sorriu, satisfeita, e se aproximou mais, apoiando o ombro no meu. Passei o braço ao redor dela com naturalidade, como se já tivéssemos feito aquilo centenas de vezes. — Você está diferente — ela comentou. — Em que sentido? — Mais presente. Mais… aqui. — Você faz isso comigo. — Espero continuar fazendo. O voo seguiu tranquilo. Rimos de pequenas coisas, trocamos histórias, ficamos em silêncio olhando pela janela. Em determinado momento, Manuela virou o rosto e me beijou de novo. Um beijo lento, sem plateia agora, só nós dois e o céu ao redor. — Eu gosto da forma como você me olha — ela disse, quase em sussurro. — Como? — Como se estivesse descobrindo algo importante. — Porque estou. Ela segurou minha mão, entrelaçando os dedos. — Seja lá o que isso for… — começou. — É nosso — completei. Ela assentiu, satisfeita. Quando o aviso de aproximação para pouso soou, senti algo curioso: não ansiedade pelo destino, mas pela continuação. Pela convivência. Pelos dias que viriam. Porque, ali, naquele espaço suspenso entre o céu e a terra, eu tive certeza de uma coisa: Algumas viagens não mudam o lugar onde você está. Mudam quem você se permite ser. E eu estava pronto.
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