Mais Uma Noite Juntos

1869 Words
A noite caiu sem pedir licença. Depois do jantar, a casa parecia diferente — não porque algo tivesse mudado fisicamente, mas porque havia presença. A dela. Como se cada canto tivesse sido suavemente ocupado por Manuela sem esforço algum. O sofá ainda guardava o calor de onde havíamos passado a tarde inteira, a cozinha carregava o cheiro leve do jantar, e eu tinha a estranha sensação de que aquele apartamento, pela primeira vez em muito tempo, fazia sentido. Fechamos a porta da varanda. O silêncio que ficou não era vazio. Era cheio. Denso. Convidativo. Manuela tirou os sapatos devagar, como se estivesse se permitindo ficar. Caminhou descalça pelo tapete, observando o ambiente com olhos atentos, curiosos, íntimos demais para alguém que não morava ali. — Gosto da sua casa à noite — disse. — Ela fica mais você. — E como é “mais eu”? — perguntei, encostando no batente da porta. Ela se aproximou. — Tranquila. Forte. Um pouco silenciosa… mas quando fala, fala bonito. Fiquei parado. Aquilo me atravessou de um jeito inesperado. Ela tocou meu rosto com cuidado, como quem testa algo precioso. Não havia pressa. Não havia ansiedade. Só um reconhecimento silencioso de que queríamos estar ali, juntos, naquela noite que prometia ser mais longa do que o relógio permitiria. O beijo veio sem aviso. Lento. Profundo. Um beijo que não pede, afirma. As mãos dela encontraram meu pescoço, depois meus ombros, como se decorassem o caminho. Eu a puxei para perto, sentindo o corpo dela se ajustar ao meu com uma naturalidade absurda, como se tivéssemos ensaiado aquilo em outra vida. — Leonardo… — ela murmurou, quase como um suspiro. Esse som do meu nome na voz dela fez algo dentro de mim ceder. Caminhamos juntos, sem quebrar o beijo, tropeçando levemente, rindo baixo, até o quarto. As luzes ficaram para trás. Não porque precisassem ser apagadas, mas porque não eram necessárias. O quarto estava tomado por uma penumbra confortável. A cidade brilhava distante pela janela, indiferente ao que acontecia ali dentro. Manuela parou diante de mim. Me olhou como se estivesse prestes a dizer algo importante, mas decidiu sentir antes. As mãos dela deslizaram pelo meu peito, lentas, curiosas, cheias de intenção. — Faz tempo que eu não me sinto assim — disse, com a voz baixa. — Como? — Desejada sem pressa. — Sorriu. — Desejada de verdade. Aproximei minha testa da dela. — Você não faz ideia do que provoca em mim. Ela riu, suave. — Então mostra. Não houve urgência. Houve entrega. Cada gesto era consciente. Cada toque tinha peso, história, cuidado. A maneira como ela me puxava para perto, como respirava contra minha pele, como fechava os olhos nos momentos certos… tudo era linguagem. Deitamos juntos, não como quem cai, mas como quem escolhe. O mundo ficou pequeno. Reduzido ao som das respirações, ao roçar dos corpos, ao calor que aumentava lentamente, como uma chama que não precisava ser alimentada — só respeitada. Manuela se encaixava em mim com uma confiança que não vinha da ousadia, mas da certeza. E eu a envolvia como se fosse algo que eu quisesse proteger e sentir ao mesmo tempo. O tempo deixou de existir do jeito comum. Houve apenas intensidade crescente, pausas longas, olhares que diziam mais do que palavras poderiam. Houve mãos que exploravam com delicadeza, bocas que aprendiam caminhos, corpos que se entendiam sem precisar de instrução. Era desejo, sim. Mas também era acolhimento. Em determinado momento, ela sussurrou algo que não consegui entender. Talvez nem precisasse. A forma como ela se aproximou mais, como se entregou por completo, dizia tudo. Eu senti Manuela comigo de um jeito que não era apenas físico. Era inteiro. Presente. Verdadeiro. Quando finalmente repousamos, lado a lado, ela apoiou a cabeça no meu peito. Meu braço a envolveu naturalmente, como se tivesse sido feito para aquilo. Ficamos assim por um tempo longo. Silencioso. Confortável. — Você sabe — ela disse, depois de alguns minutos — que isso muda as coisas, né? — Eu espero que sim — respondi. Ela levantou o rosto, me olhando nos olhos. — Não me arrependo. — Nem eu. Beijei a testa dela com carinho. Depois o cabelo. Depois a boca, num beijo lento, de quem não quer dormir ainda. — Fica — murmurei. Ela sorriu. — Eu já fiquei. A noite seguiu sem grandes acontecimentos externos. Não precisava. Tudo que importava estava ali, naquele quarto, naquela proximidade recém-descoberta que parecia antiga. Dormimos juntos como quem confia. Como quem sabe que, ao acordar, algo terá mudado — para melhor. Acordei antes do despertador. Ainda estava escuro o suficiente para que a cidade parecesse suspensa, mas claro o bastante para que eu soubesse que a noite tinha acabado. O quarto estava silencioso, exceto pela respiração tranquila de Manuela ao meu lado. Ela dormia de lado, virada para mim, com o rosto sereno de quem não carrega pressa nem medo naquele instante. Fiquei alguns minutos apenas observando. Há anos eu não acordava assim. Sem aquele peso automático no peito. Sem a sensação de que o dia era algo a ser suportado. Pela primeira vez em muito tempo, acordar significava continuar — não fugir. Passei a mão com cuidado pelo cabelo dela, sem acordá-la. Um gesto pequeno, quase tímido, mas carregado de algo que eu ainda estava aprendendo a nomear. Manuela se mexeu levemente, murmurou algo inaudível e abriu os olhos devagar. — Já é de manhã? — perguntou, com a voz ainda tomada pelo sono. — Ainda não completamente — respondi. — Mas o dia está tentando. Ela sorriu daquele jeito tranquilo que parecia dizer está tudo bem, pode tentar. Ficamos ali, abraçados, alguns minutos a mais do que o necessário. Não havia necessidade de palavras. Apenas o entendimento silencioso de que aquele fim de semana tinha sido um parêntese bonito demais para ser ignorado, mas curto demais para ser eterno. Manuela se levantou primeiro, caminhando pelo quarto como se já conhecesse o espaço, como se já tivesse estado ali outras vezes. Vestiu-se com calma, sem pressa, sem constrangimento. Eu a observava da cama, com a estranha sensação de que aquela mulher já fazia parte da minha rotina mesmo antes de oficialmente fazer. — Tenho reunião cedo — disse ela, enquanto fechava a bolsa. — E você também deve ter pacientes. — Segunda-feira não perdoa — respondi. Ela se aproximou, sentou na beira da cama e segurou meu rosto com as duas mãos. — Mas promete que não vai deixar ela apagar o que a gente viveu? — Não conseguiria, mesmo se tentasse. O beijo que nos despedimos não foi urgente, nem desesperado. Foi firme. Presente. Um beijo que dizia isso continua. Acompanhei Manuela até a porta. Antes de sair, ela se virou, me olhou mais uma vez, como se quisesse guardar aquela imagem. — A gente se fala mais tarde. — Vou contar os minutos. Ela sorriu, abriu a porta e foi embora. Quando o silêncio voltou, ele não doeu. Isso era novo. O hospital me recebeu com o mesmo ritmo de sempre. Corredores claros, vozes apressadas, decisões rápidas. Coloquei o jaleco como quem veste uma armadura familiar. Ali eu sabia quem eu era. Ali eu sempre tive controle. Mas algo em mim tinha mudado. Entre uma consulta e outra, minha mente voltava, sem pedir permissão, para o sorriso de Manuela na cozinha, para a forma como ela dizia meu nome, para o convite da viagem que se aproximava como uma promessa. Eu estava funcionando normalmente — assinando prontuários, orientando residentes, resolvendo burocracias — mas havia uma camada a mais sob tudo aquilo. Uma leveza que não combinava com a versão antiga de mim mesmo. Foi no meio da manhã que a porta do meu consultório se abriu sem aviso. — Bom dia, doutor sumido. Não precisei olhar para saber quem era. — Isso não é uma sala de estar, Nathan. — Pra mim é — respondeu, entrando como se fosse dono do prédio. — Marta tentou me barrar, mas eu disse que era assunto de vida ou morte. — Você não tem noção do que isso significa em um hospital. Ele se jogou na cadeira à minha frente, cruzou os braços e me analisou como se estivesse diante de um experimento curioso. — Você desapareceu o domingo inteiro. — Eu tinha planos. — Você nunca tem planos no domingo. — Fez uma pausa dramática. — A não ser que… — Nathan. Ele abriu um sorriso lento, vitorioso. — Então é verdade. Suspirei, encostando na cadeira. — Passei o fim de semana com a Manuela. Ele levou a mão ao peito. — Eu sabia. Eu sabia. — Se levantou e começou a andar pelo consultório. — O homem que não queria sair de casa, que vivia enterrado em plantão e café r**m, agora some. — Exagero. — Leonardo, você passava domingos inteiros trancado, assistindo documentário de cirurgia como se fosse entretenimento. — Não era tão r**m assim. — Você parecia um Drácula de jaleco — rebateu. — Só saía à noite e odiava o sol. Não consegui segurar o riso. — E agora? — ele continuou. — Agora vem com esse brilho nos olhos. Conta tudo. — Não é tudo. — Eu não preciso de tudo. Só do essencial. Respirei fundo. — Vou viajar com ela. Um resort. Uma semana inteira. Ele parou. Olhou para mim como se eu tivesse acabado de confessar um crime. — Uma semana? — Sim. — Inteira? — Nathan… — Leonardo Duarte… — ele se aproximou, apoiando as mãos na mesa. — Você está apaixonado. — Não começa. — Já começou. — Riu. — Já era. Acabou. Perdemos o homem. — Eu não estou perdido. — Está achado. E isso é pior. — Deu uma gargalhada. — Olha, eu fico feliz. De verdade. — Você não parece sério. — Eu estou sendo. — O tom dele suavizou. — Você sabe que eu te vi no fundo do poço, né? Assenti. — Eu te vi quando você não queria sair, não queria falar, não queria viver. Eu bati na sua porta por meses. Te arrastei pra fora. Te aguentei quando você era só silêncio e sombra. Engoli em seco. — Eu sei. — Então só não some. — Sorriu. — Se apaixona, viaja, vive… mas não esquece do amigo i****a que te puxou de volta pra vida. Levantei, dei a volta na mesa e abracei Nathan. Um abraço rápido, masculino, mas carregado de gratidão. — Nunca. Ele se afastou, limpando a garganta. — Agora vai lá, doutor apaixonado. O mundo ainda precisa de você. E eu preciso me acostumar com a ideia de dividir seu tempo com uma mulher incrível. — Vai sobreviver. — Eu sempre sobrevivo. — Piscou. — Mas aviso: se você casar, eu serei padrinho e eu faço discurso constrangedor. — Você não vai nem ser convidado. — Vou sim. Você sabe que vou. Ele saiu do consultório rindo, deixando para trás algo raro: a sensação de que o passado estava em paz com o presente. Voltei para minha mesa, olhei pela janela e pensei em Manuela. O dia tinha voltado. A rotina tinha voltado. Mas alguma coisa tinha ficado. E, dessa vez, eu não queria que fosse embora.
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