Quase um Casal

985 Words
O domingo começou a escurecer devagar, como se o dia estivesse com pena de ir embora. A luz do fim de tarde entrava pela janela da cozinha num tom dourado suave, iluminando partículas de poeira no ar e deixando tudo com cara de cena de filme europeu antigo. Manuela estava sentada no balcão, balançando os pés, observando enquanto eu abria a geladeira. — Então… — ela disse, inclinando a cabeça. — O que o grande chef vai preparar pra nós hoje? Fechei a porta da geladeira com calma exagerada, fingindo confiança. — Algo simples. Caseiro. Comestível. — Pausei. — Provavelmente. Ela riu, aquele riso fácil que parecia ter sido feito sob medida para preencher a casa. — Eu posso ajudar — disse, já descendo do balcão e indo lavar as mãos. — Mas aviso logo: minha especialidade é atrapalhar. — Ótimo. Combina perfeitamente com a minha especialidade de fingir que sei o que estou fazendo. Escolhemos algo que fosse confortável, quase simbólico: uma massa fresca, legumes salteados, um molho feito ali, do zero. Nada sofisticado demais. Nada simples demais. Exatamente como nós dois naquele momento. Manuela se posicionou ao meu lado, pegando a tábua de cortar. O cheiro de alho começou a subir no ar assim que ela o amassou com a lâmina da faca. — Isso aqui — ela comentou — é quase terapêutico. — Cozinhar? — Estar junto. Sem pressa. Sem barulho demais. — Olhou pra mim de canto. — Só a gente. A proximidade era natural. Nossos braços se tocavam de vez em quando, sem nenhum pedido de desculpa. A cozinha era pequena o suficiente para isso — ou talvez nós só não fizéssemos questão de manter distância. Coloquei uma música baixa, algo como jazz suave, instrumental, só para preencher o silêncio quando ele aparecesse. Mas o silêncio não durava muito. Sempre vinha acompanhado de comentários aleatórios, risadas, pequenas histórias jogadas no ar. — Você sempre cozinha assim? — ela perguntou, mexendo a panela. — Assim como? — Concentrado… mas com cara de quem está se divertindo. Pensei por um segundo. — Acho que não. — Sorri. — Mas hoje está diferente. Ela fingiu analisar o molho, depois provou com a ponta da colher. — Está ótimo. — Fez uma pausa dramática. — Mas pode melhorar. — Como? Manuela pegou um pouco de sal, jogou na panela com precisão teatral. — Confiança — disse. — Comida sente quando quem cozinha está confiante. — E você acha que eu estou confiante? Ela chegou mais perto, ficando quase de frente pra mim. — Acho que você está feliz. Essa palavra ficou suspensa entre nós por um segundo mais longo do que o necessário. Para disfarçar, virei-me para a panela. — Cuidado com a colher — murmurei. — Ela pode se apaixonar por você. — Todo mundo se apaixona por mim — respondeu, piscando, antes de rir de si mesma. A cozinha foi se enchendo de aromas quentes e familiares. Tomate, manjericão, alho, azeite. Aqueles cheiros que não impressionam pela sofisticação, mas pela memória que carregam. Em determinado momento, Manuela colocou a mão no meu braço. — Posso te fazer uma pergunta meio boba? — As melhores são assim. — Você imaginou que hoje estaria assim? — perguntou. — Cozinhando comigo, num domingo à noite? Olhei pra ela, sincero. — Não. — Respirei fundo. — Mas acho que se tivesse imaginado, seria exatamente assim. Ela sorriu de um jeito diferente. Mais quieto. Mais profundo. Enquanto a massa cozinhava, abrimos uma garrafa de vinho. Não para impressionar, mas para acompanhar. Ela se apoiou na bancada enquanto eu servia duas taças. — Um brinde — disse ela. — Ao quê? Ela pensou por alguns segundos. — Ao simples que funciona. Encostamos as taças com um som leve, quase tímido. — E a domingos que viram histórias — completei. O jantar ficou pronto quase sem percebermos. Arrumamos a mesa juntos, sem muita cerimônia. Guardanapos de pano, velas pequenas que eu nem lembrava de ter. A luz ficou baixa, aconchegante. Sentamos um de frente para o outro, mas logo as conversas nos fizeram esquecer a comida por alguns minutos. — Você cozinha melhor do que eu esperava — ela disse, depois da primeira garfada. — Isso é um elogio ou um insulto disfarçado? — É um elogio honesto. — Sorriu. — Gosto de homens que sabem cuidar de si mesmos. — Eu gosto de mulheres que sabem rir durante o jantar — respondi. Ela inclinou a cabeça, divertida. — Então estamos bem servidos. Conversamos sobre coisas leves. Viagens que gostaríamos de fazer. Restaurantes favoritos. Coisas pequenas que, de alguma forma, diziam muito. Ela contou histórias engraçadas da juventude, eu compartilhei algumas trapalhadas minhas que normalmente só Nathan conhecia. Rimos alto em alguns momentos, daquele jeito solto que só acontece quando não existe julgamento. Em determinado momento, Manuela estendeu a mão sobre a mesa e segurou a minha. — Eu gosto dessa versão de você — disse, baixinho. — Qual? — Essa que não está tentando impressionar. Apertei os dedos dela com carinho. — Eu gosto dessa versão de nós. Terminamos o jantar devagar, como quem não quer encerrar nada. Depois recolhemos os pratos juntos, lavamos a louça lado a lado, trocando respingos de água de propósito, rindo como dois adolescentes que acabaram de descobrir que gostam um do outro. Quando tudo ficou em ordem, ela se encostou na pia, cruzando os braços. — Sabe o que eu mais gostei hoje? — perguntou. — O quê? — Que não foi grandioso. — Sorriu. — Foi verdadeiro. Cheguei mais perto, segurando o rosto dela com delicadeza. — Às vezes, é isso que dura. Beijei-a ali mesmo, na cozinha. Um beijo calmo, cheio de intenção, mas sem pressa. Como tudo naquele domingo. E enquanto a noite avançava do lado de fora, eu tive a certeza tranquila de que não era apenas um jantar. Era o início de um hábito. De um nós.
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