Olho no olho

4820 Words
Joana Blanc – Fiquei intrigada ao saber que a Fernanda estava me procurando. Ela certamente queria explicar o que aconteceu na noite anterior e obviamente não conseguia esperar um tempo para tocarmos nesse assunto. A Fernanda sempre teve essa postura para resolver as coisas. Normalmente ela preferia conversar e quando se magoava ficava em um silêncio assustador. Cansei de ficar distante enquanto ela estava chateada e de certa forma acabei repetindo o padrão dela quando nos afastamos por quase dez anos. Dessa vez não pretendia cometer o mesmo erro e se a Fernanda queria conversar eu também queria lhe fazer algumas perguntas. Esperei por ela até certa hora e estranhei o fato de que mesmo estando hospedada ao meu lado ela não apareceu para falarmos. Certamente algo ou alguém a fez mudar de ideia e essa possibilidade me deixou muito mais intrigada. A Fernanda sempre foi uma pessoa difícil de fazer mudar de ideia ou opinião. Alguma coisa aconteceu para impedi-la dessa vez. Por isso resolvi ir bater na porta do quarto dela e a minha atitude a surpreendeu. - O Alexandre disse que você estava me procurando. Você veio me ver e desistiu? Questionei assim que ela encarou meus olhos. - Eu pensei melhor e concluí que você precisava de um tempo sozinha. Ela respondeu com o olhar fixo ao meu. - Agradeço sua preocupação com meu espaço. Lamento que você não tenha pensado nisso antes de deitar com a Daniela na minha cama. Poderíamos ter evitado uma situação desconfortável. Gostaria de entender o que está acontecendo entre vocês duas. Será que está muito tarde para conversarmos? Você prefere deixar para outro momento? Senti que as minhas palavras foram um tanto quanto hostis e tentei suavizar em seguida. - Eu não queria magoar você. Não tenho nada com a Dani. - Você vai me deixar parada aqui na porta? Perguntei sem desviar o olhar do dela. - Pode entrar. Eu não esperava receber você desse modo. Pra ser sincera estou tensa. - Também não estou confortável no momento. Tudo bem se bebermos alguma coisa forte? Propus pensando que seria difícil conversarmos em seco. - Ajudaria um pouco. O que você quer beber? - Conhaque Armagnac. - É uma escolha agressiva. Não é melhor pedir algum conhaque com dupla destilação? - Quero algo intenso como as minhas emoções nas últimas horas. Bebe comigo ou não? Questionei fitando os olhos dela e esperando sua resposta. - Está bem. Vou pedir uma garrafa de Saint Vivant. Senta um pouco. Senti o nervosismo dela e por um momento pensei que podíamos deixar a conversa pra depois. Porém a minha ânsia por explicações era maior do que o meu bom senso de costume. - Fiquei constrangida com o que aconteceu ontem. Passei o dia inquieta e pensei que ficaria melhor depois de conversar com você. Cheguei a São Paulo com essa ideia em mente e a Amanda me fez perceber o tamanho da minha afobação. Quero tanto me explicar que não pensei que você precisa de espaço depois do que aconteceu. Por esse motivo entendo se não conversarmos hoje. Posso muito bem esperar o seu tempo Joana. Ela estava preocupada comigo. Reconheci seu tom de voz e ele me trouxe um conforto. - É melhor falarmos de uma vez. Eu não pretendo ficar remoendo essa situação. De um jeito ou de outro o meu namoro com a Daniela teria acabado. Senta aqui e me conta o que aconteceu ontem e o que fazia na minha cobertura. Dei espaço pra que ela sentasse e mantive meu olhar fixo ao dela. - Não sabia exatamente o que estava acontecendo. Quando cheguei à cobertura a Dani estava cabisbaixa e me contou que vocês tinham se desentendido depois de um pedido de casamento que ela recusou. Eu percebi a insegura e mágoa nos olhos dela. A Dani gosta de você e acho que sabe disso. Não sei o que aconteceu entre vocês duas. Apenas notei a insegurança nela e até me identifiquei com esse sentimento. Em nenhum momento quis me colocar numa situação que lhe magoasse. Estava na cama depois de tentar ajudá-la. Não aconteceu nada além de um beijo. Ela fez por impulso. Assim como acredito que a Dani disse coisas apenas para afastar você e fez isso por medo. Nós duas não temos nada. Eu jamais ficaria com uma namorada sua sem que estivesse presente. Uma situação a três talvez. Dependendo do quanto fosse confuso porque eu nunca deixei de amar você. Estou sendo totalmente sincera Joana! - Você devia ter esperado a bebida chegar. Concluí sorrindo e vendo como ela queria não ter envolvimento na situação. - Consigo ver que está sofrendo. Seus olhos estão apagados desde ontem. Ouvi sua observação e não tive condições de ocultar minhas emoções. - Eu me apaixonei pela Daniela. Aconteceram muitas coisas desde que começamos a namorar. Minha vida passou por altos e baixos. Inclusive pelo fundo do poço em alguns momentos. Precisei suportar uma pressão surreal nesse primeiro ano como líder do Grupo. Poucas pessoas sabem que eu corri risco de vida mais de uma vez. Aguentei tudo praticamente sozinha. Precisei ficar em silêncio pra proteger as pessoas que eu amo. Enfrentei dias infernais e tudo que eu queria era ficar bem com a Daniela e melhorar nossa relação. Certamente as minhas atitudes provocaram ainda mais insegurança nela. Tentei conversar e alinhar nossos planos. Procurei meios de fazer o que ela queria. O pedido de casamento foi porque ela me pediu para morarmos juntas no Rio. Eu não posso deixar a cidade sede do Grupo sem dar uma satisfação ao conselho. Encontrei essa saída e cometi o erro de criar uma situação romântica para pedi-la em casamento. Apenas tentei fazer as coisas de um jeito que ela sentisse que me importo e que a amo de verdade. Mas foi completamente em vão. Desabafei e senti o veneno da decepção correndo nas minhas veias. Nesse caso o único antídoto era o álcool de um conhaque bem forte. - Sinto muito que tenha passado por tudo isso. Você tentou transmitir alguma segurança para a Dani e eu vou ser sincera. Por mais que ela goste de você não está pronta. A Dani tem medo e parece sabotar a própria felicidade. Talvez ela precise de tempo para avaliar o que aconteceu e quem sabe vocês possam conversar em outro momento. Percebi que ela estava tentando me confortar e que seus olhos pareciam dizer algo mais. - Seja totalmente honesta comigo. Olhando de fora. Você realmente acredita que a Dani e eu podemos nos entender? Que existe a possibilidade de voltarmos? Ou está sugerindo uma conversa amigável para terminarmos sem tantas mágoas? Perguntei esperando que ela fosse sincera. - Se vocês ainda se amam podem voltar. Não sei o que se passa no coração das duas. Eu sei que fui envolvida nessa situação e fiquei angustiada. Gostei da Dani e pensei que éramos amigas. Hoje não sei se essa amizade existia ou ela tentou ser próxima para se sentir mais segura em relação ao nosso passado. Não tenho uma opinião formada em relação à Dani. Mas tenho certeza sobre nós duas. Eu não traí sua confiança Joana. Não me meti no seu namoro e não tentei prejudicá-lo de nenhum modo. Sinto muito ter sido envolvida nessa situação insana. - Precisava ouvir isso de você. Declarei segurando a mão dela. - Detesto ver você sofrendo. Ela afirmou passando a mão nos meus cabelos. - Nunca gostei de ver você sofrendo também. Fique com o coração tranquilo. Nada do que aconteceu no meu namoro com a Dani foi culpa sua. De repente não era pra termos namorado. A Dani certamente sente a mesma necessidade que eu sentia quando você queria namorar comigo. Ela precisa crescer e ter muitas experiências antes de se prender a alguém. Mereci essa situação por ter insistido em uma relação acabada. Deixei o controle na mão de uma pessoa que não sabia o que queria. Isso nunca mais vai acontecer. - Posso abraçar você? A Fernanda estava visivelmente angustiada com meu abatimento. - Pode sim. Nunca vou recusar seu abraço Fernanda. Declarei sorrindo e ela me abraçou deitando a cabeça em meu ombro. - Desperdiçamos tantos anos afastadas. Eu não quero perder você outra vez. Sei que está magoada e que não é sobre mim ou sobre nós duas. Mas quero dizer que estou ao seu lado pra tudo. Mesmo sendo uma situação delicada eu consegui desejar sua felicidade ao lado da Daniela. Queria apenas que alguém cuidasse de você do jeito que merece. Espero que não tenha ficado magoada comigo. Não posso perder você também. Perdi pessoas demais. Entendi que ela estava falando do João e da Branca e senti um aperto na garganta. - Está tudo bem entre nós. Você continua ocupando o mesmo lugar no meu coração Fernanda! Afirmei sem sair desse abraço. Fernanda Porto – Conversar com a Joana acalmou meu coração. Depois de tudo que passamos não queria perdê-la novamente. Sequer conseguimos ficar próximas de verdade depois que voltamos a falar. O tempo passou e nós duas mudamos muito, mas ainda tínhamos uma ligação forte dos anos de convivência na infância e adolescência. Era essa afinidade que eu esperava que nos unisse outra vez. Crescemos lado a lado. Conhecemos os mesmos lugares. Tivemos experiências marcantes juntas. Nada disso tinha se perdido nos anos que ficamos distantes e eu tinha certeza do carinho que ela guardava por mim. Mesmo não sabendo qual lugar ocupava em seu coração o mais importante era saber que estava nele. - Você pediu o conhaque? Ela perguntou sem sair do abraço. - Pedi. Deve ter se perdido no caminho. - Esse hotel tem muitas reclamações no atendimento. Por isso escolhi ficar nele. Ontem me atenderam prontamente. Mas o sobrenome deve ter feito as pessoas trabalharem mais rápido. O que me diz de pedirmos vários serviços para testarmos? Ela propôs com um sorriso nos lábios e eu sorri de volta ao responder. - Por mim tudo bem. Vou ligar e perguntar do conhaque. Aproveito para pedir mais toalhas. - Peça outro controle para o ar-condicionado com pilhas novas. Quero ver o quanto demoram. Ela disse rindo. - Você devia ter clientes ocultos. - Gosto de conferir tudo antes de tomar uma decisão. Esse hotel é novo. Foi inaugurado no ano passado. Até o momento recebemos muitas reclamações sobre o atendimento. Uma experiência negativa afasta os clientes e ainda mancha a reputação do Grupo. - Os colaboradores passaram por algum treinamento? - Passaram por treinamento e reciclagem. Estou pensando em cortar algumas cabeças. Quando um colaborador ou outro é complicado isso significa um fato isolado. Mas quando a equipe toda não trabalha bem... - Significa que os líderes ou gerentes são o problema. Completei o raciocínio dela. - Exatamente. Estou pensando em trazer o gerente de um dos nossos melhores hotéis. Apenas para um período de observação. O Júlio investiu muito nesse hotel e ele tem a obrigação de ser um dos melhores da nossa rede no sudeste. - Acredito que você vai conseguir esse feito. Sorri passando a mão nos cabelos dela. - Você é bem exigente com a sua equipe na fazenda. Não quer vir trabalhar comigo? Ela perguntou brincando. - Sempre quis um cargo específico na sua vida. Uma pena que você nunca me ofereceu. Declarei fixando meu olhar no dela e fiz um charme bobo. - Acabei de ficar solteira Fernanda. Ouvi-la responder em tom mais leve e fiquei aliviada. - Toalhas. Controle com pilhas novas. Conhaque. Sorvete de chocolate. Vou pedir tudo isso. Levantei rindo e ela ficou me olhando. - Pijama de seda tem tudo a ver com você. Ela observou rindo. - Tenho um conjunto com quatro peças que você talvez gostasse de ver. - O que esse conjunto tem de especial? - Seda com renda e calcinha fio dental. Respondi a fazendo sorrir e passar a mão nos cabelos. - Melhor mudarmos de assunto. Ela sugeriu deitando no sofá e relaxando. Liguei para perguntar do conhaque e pedi mais alguns serviços. Antes de encerrar a ligação a bebida chegou e como a Joana não queria ser vista eu atendi a porta. - Daqui a cinco minutos pedimos aperitivos. Queijos finos e embutidos. Sugeri ao abrir o conhaque e servir nossos copos. - Estou de acordo. Um brinde ao que a vida nos reserva daqui pra frente. Ela propôs e nós duas brindamos antes de beber. - Esse conhaque deixa uma pessoa inconsciente. Comentei após beber a primeira dose. - Pode acontecer se alguém levar uma garrafada na cabeça. Ela brincou servindo a segunda dose para nós duas. - Você alguma vez ficou muito bêbada com conhaque? Perguntei curiosa. - Por um tempo bebi muito conhaque barato em Nápoles. Era meu combustível. Quando fugi para a Itália não levei quase nenhum dinheiro. Precisei trabalhar em dois serviços diferentes e um deles era em um restaurante. O ritmo nos dois empregos era bem complicado. Precisei de muito conhaque e licor. Naquela época bebia todos os dias e não tinha tempo pra ficar de ressaca. - Dizem que Nápoles parece com o Recife. - Tem alguns lugares que lembram o Recife antigo. Não passei tanto tempo morando em Nápoles. Os meus anos mais importantes na Itália foram trabalhando e estudando em Milão. Gostava da minha vida na Itália e por muito tempo não pensei em retornar ao Brasil. Não me afastei apenas de você como de toda minha família. Tinha mais contato com o Alex e a minha mãe e mesmo assim nos encontramos pouco nos quase dez anos que morei na Europa. - Eu também não convivi tanto com meus pais e com a Amanda nos últimos anos. Você sabe que sempre tive medo de ficar sozinha. Porém me acostumei com a solidão. Mesmo quando estava com a Flores eu me sentia solitária na fazenda. Depois que perdi os meus avós parece que passei a não fazer tanta questão de companhia. Ninguém podia ocupar o espaço que eles deixaram. Do mesmo modo que ninguém nunca ocupou seu lugar na minha vida. Declarei com sinceridade. - Senti sua falta nos anos que ficamos afastadas. Levei tempo demais pra entender meus sentimentos por você e quando fiquei sabendo do seu noivado não sei o que aconteceu na minha cabeça e no meu coração. Nunca senti que era o nosso momento. Estou sendo totalmente honesta com você. Nunca senti que estávamos prontas uma para a outra e a sua mãe até disse que isso não existia. Sempre tive receio em relação ao que sentimos Fernanda. Aprendi a falar sobre os meus sentimos e a verdade é que tenho medo do amor que sinto por você e do quanto algo mais sério seria confuso pra nós duas. Ao relaxar ela simplesmente falou como se tivesse deitada em um divã. - Confuso por qual motivo? Questionei intrigada. - Somos muito diferentes. Queremos coisas diferentes. Temos carreiras e sonhos distintos. As nossas expectativas e comportamentos também não são parecidos. O que nos une é o passado. A amizade das nossas famílias que fez com que a nossa amizade surgisse. Além desse passado eu acredito que não temos muito em comum. Sequer sabemos o suficiente sobre a outra. Não sei se percebeu, mas não sou a mesma Joana que você conheceu. Dificilmente você é a Fernanda que conheci. Não conhecemos nossas versões com três décadas de vida. Paramos na metade desse tempo. Ela disse antes de levantar e servir outra dose de conhaque. Por um instante pensei que não fosse conseguir acompanhá-la. - Vamos conversar sobre o que sentimos? Consegue falar sobre esse assunto agora? Questionei chamando sua atenção. - Precisei de terapia para entender meus sentimentos por você. Há tempos estou pronta para essa conversa, mas não tinha encontrado o momento certo. Ainda que os meus pensamentos estejam embaralhados consigo separar que o meu problema é com a Daniela e não com você. - Não tenho certeza se quero saber o que entendeu na terapia. Afirmei sendo sincera. - Posso falar ou não? Ela perguntou sorrindo e eu assenti com a cabeça. Fiquei nervosa com o jeito que ela fixou o olhar no meu e senti meu coração acelerado. - Amei e desejei você de um jeito fora do comum. Sentia medo de ferir seus sentimentos e nunca conseguir ser a namorada que você merecia ter. Era difícil enxergar seus defeitos e os seus erros praticamente não existiam. Jamais me senti disposta a namorar alguém assim. Mesmo que esse alguém fosse você. Eu pensei que com o tempo essa situação seria resolvida. De repente você encontraria uma mulher perfeita. Ou quem sabe os anos a fariam ser uma pessoa mais comum. Você é incomum Fernanda! É linda. Organizada. Inteligente. Esforçada. Focada. Sincera. Carinhosa. Preocupada. Dedicada. Obstinada. Posso passar horas falando vários adjetivos e não será o suficiente. É impossível não amar e admirar uma mulher como você. Por enxergá-la dessa forma eu sempre tive medo de não ser boa o suficiente pra conseguir somar ao seu lado. Esse era um medo que eu não reconhecia. - Agora que sabe mudou alguma coisa? Porque é bobagem pensar desse modo. - Eu não preciso ser como você para ficar na sua vida. Somos pessoas diferentes e esse medo é realmente uma bobagem. Uma barreira que criei para me afastar da situação que desejei por anos da minha vida. Você e eu podemos nunca ter namorado de verdade, mas se olharmos para o passado aconteceu. Éramos namoradas quando pequenas. Sempre existiu uma troca de carinhos e as mãos dadas. Você foi a minha namorada na infância e eu tenho certeza que pensamos igual. O jeito que marcamos a vida uma da outra se deu por esse namoro doce da infância. Ela não estava errada. Éramos grudadas e tínhamos um apego e carinho de namoradinhas. - Sua companhia sempre me fez bem. Pode ser engraçado de ouvir, mas você era o meu príncipe encantado. Também nunca enxerguei seus defeitos Joana. Pelo menos não até você namorar o Gustavo. Senti que fui abandonada e que você estava enganado todo mundo. Tinha muita raiva de ficar perto de vocês dois. Nessa situação eu me senti magoada e decepcionada. Declarei sendo sincera e ela não tirou os olhos dos meus. - Também fiquei assim comigo mesma. Cometi o erro de tentar me encaixar em um padrão que imaginei ser o que os meus pais queriam. Curioso que você era perfeita e eu queria muito ser assim diante dos meus pais. Eu precisava da admiração e aprovação deles. O meu futuro dependia disso naquela época. Essa era a perspectiva de uma adolescente confusa. Ela disse rindo. - Você devia ter feito terapia mais cedo. - Sem dúvida. Rimos juntas. Bateram no quarto para trazer as coisas que pedi. Mais toalhas e um controle com pilhas novas para o ar-condicionado. A moça pediu desculpa por ter demorado e disse que eles estavam com a equipe reduzida. A Joana prontamente digitou algo no celular e ficou me olhando como se dissesse que tinha algo errado. Conhecia bem aquele olhar. Ela me lançou várias vezes em quadra durante nossos jogos. - Amanhã vou conferir essa questão da equipe reduzida. Pelo visto esqueceram o sorvete. - Vou pedir novamente. Peço mais algo na cozinha? - Sim. Aceita outra dose? - Se você vai beber eu vou também. Afirmei a fazendo rir. - Eu tenho consciência dos erros que cometi com você Fernanda. Posso garantir que me arrependi de cada uma deles. Principalmente de termos passado tantos anos distantes. Cada dia que passava ficava mais difícil falar com você. Eu não queria ter que lidar com os seus sentimentos. Não queria lidar com a sua mágoa e com certeza não queria lidar com o que isso causaria em mim. Detesto decepcionar as pessoas e fracassar no que me proponho a fazer. Por muito tempo pensei que isso me tornava incapaz. Demorei a perceber que na verdade os meus erros e fracassos eram uma lição que me tornavam cada vez mais assertiva. Enquanto ela falava fiquei a observando. A Joana conseguia ser atraente até servindo bebida. - Sentimos tanto medo de resolver certos dramas que algumas vezes ficamos paralisadas. Também paralisei em relação a nossa história. Eu podia ter ido atrás de você em Milão. Senti vontade inúmeras vezes. Mas o medo me impediu de sair de Lisboa. Não queria ter que ouvir você me pedir pra ir embora. As coisas que me disse no nosso último encontro na casa dos seus pais foram pesadas. Hoje sei que falou aquilo porque queria me afastar. Assim como a Dani fez com você. - Melhor não falarmos da Dani. Mas sim. Eu queria que ficasse com raiva de mim. Não me orgulho dessa fase de adolescente problemática e ingrata. Mas os meus ataques juvenis foram importantes. Eu precisava ir para o mundo e ver que nem tudo era sobre mim e sobre o legado da minha família. Eu precisava ver que algumas pessoas nunca terão as oportunidades e facilidades que eu tenho apenas por ser uma Blanc. Eu tinha tudo e não dava o devido valor porque nunca me faltou nada. Hoje em dia sou grata por ter acesso ao que tenho e por poder melhorar a vida de algumas pessoas. Eu precisava enxergar a realidade além da bolha que nasci. Sempre convivemos com as mesmas pessoas e o mundo é feito por diversidades. - No fim essa situação fez com que você amadurecesse algo que tinha. Sua capacidade de ter empatia. Isso provavelmente a transformou em uma pessoa melhor. Concluí sorrindo. A Joana sempre se preocupou com as pessoas. Mas agora elas pareciam ser uma prioridade ainda maior na vida dela. O estilo de liderança que ela aplicava era voltado para os objetivos tanto do coletivo quanto individual. Era por isso que as pessoas gostavam de ficar perto dela. A Joana conseguia servir a todos sem deixar os próprios valores de lado para fazer isso. Ao contrário dela eu sempre fui mais controladora. Gosto das coisas ao meu jeito e às vezes tenho dificuldade de ouvir os demais. Porém venho trabalhando esse comportamento e tentando melhorá-lo a cada dia. A preocupação tem que ir muito além da conveniência. Isso quer dizer me preocupar até com quem não me beneficia diretamente. Pedi nossos queijos e embutidos e prometeram entregar em dez minutos. Dificultei um pouco ao pedir um tipo específico de azeite e de temperos secos nos queijos. - Você é uma hóspede exigente. É exatamente o padrão desse hotel. Quer apostar quanto tempo vão demorar com seu pedido? Ela propôs rindo. - O que vamos apostar? Dinheiro não me interessa. Questionei rindo. - O que lhe interessa? - Um jantar em um lugar marcante. Quem vencer escolhe o destino. - Combinado. Eu aposto que vão demorar meia hora. Ela falou antes de mim. - Aposto em quarenta minutos. Apertamos as mãos e selamos a aposta. - Sempre amei seu lado bobo. Mesmo passando por um momento difícil você continua leve. Sorri me sentando perto dela. - Ficar sofrendo a cada segundo não vai me ajudar. Na verdade vai me afundar ainda mais. Eu sei como é no fundo do poço e não quero mais ficar presa nele. Preciso pensar muito sobre o que aconteceu no último ano. Quero analisar esse meu tempo de namoro com a Daniela e pretendo fazer isso com a ajuda da minha psicóloga. Sozinha eu vou encontrar sempre as mesmas respostas. Estou evitando repetir esse padrão. - Quem faz terapia normalmente tem um discurso sobre as vantagens. Afirmei rindo. - Cada pessoa tem sua experiência. Eu procurei ajuda no momento que mais precisava. Estava em surto com a ideia de você casando com outra. Cheguei até a fantasiar encontros amorosos e conversas importantes entre nós duas. Usei isso como uma distração da pressão com a qual estava lidando na realidade. Voltar a morar no Brasil e conviver com tudo que abri mão não foi exatamente simples. A minha mente criou uma realidade paralela onde as coisas evoluíram a partir do nosso relacionamento. Saímos do colégio e nunca nos separamos. Estávamos casadas e felizes. Era o meu momento de assumir o Grupo e você estava ao meu lado. Loucura da minha cabeça. Mas uma história contada mil vezes se torna real. Eu acreditei e passei a falar com você e me preocupar com quanto tempo passava longe de casa. Fiquei surpresa com a sinceridade dela. - Confesso que fiz o seu enterro no celeiro quando guardei suas coisas naquele caixote embaixo do piso de madeira. Na maior parte do tempo você estava morta e eu sentia saudades de um amor que nunca tive a chance de viver. Mas tinha dias que a verdade surgia e eu sabia que você estava vivendo sua vida como escolheu viver. Inclusive longe de mim. Declarei olhando nos olhos dela. - Erramos muito ao causar tanta dor uma na outra. No fim nosso desejo sempre foi ficar como estamos agora. Eu amo sua companhia e como a conversa acontece quando estamos desarmadas. Pra ser sincera sinto que posso ficar ao seu lado sem me preocupar com mais nada. É confortável. Crescemos assim. Mas também quando fica confuso é muito complicado! Entendi bem o que ela quis dizer e dei risada. - Invadi seu espaço mais de uma vez. É que eu queria guardar você em um pote de vidro e ficar olhando. É uma loucura eu sei. Não penso mais assim. Não tenho mais dezoito anos Joana. Faria tudo diferente se tivesse a oportunidade de voltar no tempo ou de seguir ao seu lado no presente. Você sabe que eu te amo? Sabe que mesmo sem dizer eu espero por você? Questionei sem tirar os olhos dos dela. - Eu também amo você! Sempre amei na verdade. Mas muitas coisas aconteceram. Somos pessoas diferentes hoje. Eu me envolvi com a Daniela de verdade. Esse término está me machucando e por isso preciso entender o que aconteceu. Não vou pedir pra você me esperar resolver essas questões Fernanda. Não posso fazer isso. Apenas posso dizer que o meu sentimento por você é real e que eu gostaria muito de descobrir até onde ele vai diante de quem nos tornamos. Apenas em olhar para as nossas vidas eu não consigo encaixar um namoro e muito menos um casamento entre nós duas. Fiquei até espantada porque ela falou em casamento. - Estava mesmo disposta a casar? Perguntei sem pensar. - Não sei quando vou namorar outra pessoa. Mas sem dúvida quando isso acontecer vou pensar em casamento. Quero uma companhia e espero acertar dessa vez. Com a Daniela foi a minha primeira tentativa de verdade. Certamente apressei as coisas ou realmente estávamos em momentos diferentes. Ela tem muito pra viver ainda e eu quero uma aventura mais específica. Se não for pra ter uma companheira de verdade eu prefiro ficar sozinha. Preciso da minha sanidade pra seguir com meus objetivos. Tenho um grupo com diversos negócios sob a minha responsabilidade. Estou constantemente lidando com pressão. Tenho que ser mais cautelosa e criteriosa antes de voltar a me envolver com alguém. Ela disse mostrando que sabia exatamente o que desejava. - Não acha que temos chance? Perguntei sendo bem direta. - Não tenho essa resposta. Podemos descobrir juntas. Nada nos impede de tentar uma aproximação. Desde que você contenha a sua ansiedade Fernanda Porto. Ela respondeu brincando. - Por fora estou calma. Por dentro meu coração está acelerado. Confessei rindo. - Sei um jeito de você ficar calma. Deita aqui comigo. Vamos ficar abraçadas. A sugestão dela me surpreendeu. Deitei no sofá e ela ficou me abraçando por trás. - Esse é o único padrão que não consigo mudar. Ela sussurrou perto do meu ouvido. - Qual? Perguntei sentindo um frio na barriga. - Abraçar você me excita. Sentir o seu perfume me trás uma sensação boa. Quando fecho os olhos fico pensando na fazenda e em tantos momentos deliciosos que desfrutamos juntas. Pensar em você me atormentou muitas vezes. Mas quando estamos juntas nenhuma tormenta importa. Confesso que sinto vontade de você. Uma vontade quase incontrolável. - E porque você não pode perder o controle? - Porque estou quebrada. Não estou em meu estado normal no momento. Não pelo conhaque e sim pela Daniela. Seria injusto com você. O meu ego ferido quer usar o que sentimos uma pela outra pra não continuar sofrendo. Mas eu não vou fazer isso. Eu não vou apressar mais nada na minha vida. Preciso sentir essa dor e lidar com ela. Devo respeitar o que sentimos uma pela outra e ignorar o quanto seu perfume está me excitando nesse abraço. Continuei arrepiada. - Posso acabar tendo um orgasmo com o som da sua voz. Declarei excitada. - Tenta me ajudar dessa vez e não faça nada que possamos nos arrepender depois. Ela sussurrou roçando o nariz nos meus cabelos e eu pensei em fazer apenas uma coisa.
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