Clara abaixou-se rapidamente para juntar os pães, com as bochechas já coradas de vergonha.
— Que sorte a minha... — murmurou em voz baixa, meio rindo de si mesma.
Gabriel se abaixou também, pegando um dos pães que haviam rolado até a calçada.
— Não sei se sorte é a palavra certa — comentou ele, com um sorriso discreto. — Mas pelo menos não caiu um livro dessa vez.
Ela levantou o olhar devagar, reconhecendo o rosto dele.
— Você de novo? — disse, com um tom de surpresa e uma leveza que ele não tinha ouvido da primeira vez.
— Acho que estou começando a me especializar em aparecer nas horas erradas — respondeu ele, oferecendo o pão que havia pegado.
Clara sorriu de verdade dessa vez. Um sorriso pequeno, mas verdadeiro. O tipo de sorriso que não se entrega fácil.
— Não diria horas erradas... — ela disse, pegando o pão. — Só... inesperadas.
Eles terminaram de recolher o que podiam salvar da sacola e ficaram de pé, um de frente para o outro.
O silêncio entre eles não era desconfortável. Era quase... curioso.
— Café? — Gabriel arriscou, apontando com a cabeça para o pequeno café do outro lado da rua.
Clara hesitou. Não era o tipo de pessoa que aceitava convites de estranhos. Mas, de alguma forma, ele não parecia um completo estranho.
Parecia alguém que também carregava o peso de suas próprias verdades silenciosas.
— Só se tiver bolo de chocolate — respondeu ela, com um brilho discreto nos olhos.
Gabriel deu um sorriso de canto — aquele que ele quase não deixava escapar.
— Hoje você deu sorte, então.
E juntos, atravessaram a rua.
Talvez aquele café fosse só isso: um café entre duas pessoas que se cruzaram por acaso.
Ou talvez fosse o primeiro capítulo de uma história que nenhum dos dois esperava viver.
Porque algumas verdades... o amor revela devagar.
Muito devagar.
Mas sempre no tempo certo.
Capítulo 3
Algumas histórias começam com perguntas simples. Mas as respostas... carregam o peso do que fomos e o desejo do que ainda podemos ser.
O café era pequeno, aconchegante e quase vazio naquela tarde. O cheiro doce de bolo recém-saído do forno misturava-se com o aroma do café forte que enchia as xícaras sobre a mesa deles.
Clara mexia o café com calma, sem pressa. Gabriel a observava com uma curiosidade discreta — o tipo de curiosidade de quem quer conhecer sem invadir.
— Então... — ele começou, apoiando os braços na mesa. — Trabalha na livraria há muito tempo?
Ela ergueu os olhos para ele, como quem ponderava se deveria ou não contar.
— Desde que eu tinha dezoito. A livraria era do meu avô. Depois que ele partiu, ficou com a Dona Teresa... mas eu nunca consegui ir embora de lá. — Ela deu um sorriso de canto. — Acho que os livros sempre foram meu refúgio.
Gabriel assentiu, compreendendo mais do que ela imaginava.
— Os livros não machucam — ele disse, mais para si do que para ela.
Clara o olhou por alguns segundos, em silêncio.
— E você? — perguntou, mudando de lado a curiosidade. — Fotógrafo?
Ele deu um leve suspiro, encarando a xícara.
— Já fui. Viajei bastante, fotografava o que o mundo tem de bonito... e o que tem de duro também. Mas... — fez uma pausa curta —...parece que quanto mais a gente vê o mundo, mais difícil fica encontrar um lugar pra chamar de lar.
Clara sentiu um aperto no peito com aquelas palavras. Entendia exatamente o que ele queria dizer.
— Por que voltou pra cá? — ela arriscou perguntar.
Gabriel deu um sorriso fraco, o olhar perdido por um segundo.
— Meu pai ficou doente no ano passado. Voltei pra cuidar dele... mas ele se foi antes que eu pudesse fazer muita coisa. — Passou a mão pelos cabelos, um gesto inconsciente. — E agora eu tô aqui... meio sem destino certo.
O silêncio entre eles ficou mais pesado, mas não desconfortável. Era um silêncio de respeito, de entendimento.
— Às vezes — disse Clara, com suavidade —... o destino certo não é um lugar. É uma pessoa.
Gabriel a olhou de um jeito diferente naquele instante. Como se tivesse ouvido algo que o coração dele precisava, mas nunca teve coragem de admitir.
Ela abaixou os olhos, meio envergonhada do que disse.
Ele sorriu, pela primeira vez de verdade.
— Talvez você tenha razão — respondeu, com a voz baixa.
Os dois continuaram ali, conversando sobre pequenas coisas, rindo de bobagens, trocando histórias que guardavam há tempo demais.
E sem perceberem... estavam deixando o passado menos pesado.
Porque algumas verdades que o amor revela... não gritam.
Elas sussurram. E fazem morada devagar.
Capítulo 4
Existem pessoas que chegam devagar... e sem fazer barulho, começam a ocupar espaços que antes estavam vazios.
Gabriel não sabia explicar muito bem como aquilo começou.
Depois daquele café, tudo ficou mais fácil.
Os encontros deixaram de ser por acaso. Agora eram combinados — mesmo que de um jeito simples, sem muitas promessas.
Ele passava pela livraria dela algumas tardes. Às vezes comprava um livro. Outras vezes, só aparecia para levar um café ou contar alguma história de suas viagens.
Clara começou a esperar por ele sem admitir isso nem para si mesma.
Gabriel não era um homem de muitas palavras bonitas — mas ele tinha um jeito de olhar que dizia muito mais do que qualquer frase ensaiada.
Era sincero. Era real.
E ela sentia falta disso há muito tempo.
Em uma tarde qualquer, ele apareceu com uma câmera antiga nas mãos.
— Quero te fotografar — disse ele, parando na porta da livraria.
Clara arregalou os olhos, rindo nervosa.
— Eu? De jeito nenhum!
— Por quê? — perguntou ele, com aquele sorriso calmo. — Você tem um jeito bonito de existir... queria guardar isso.
Ela ficou em silêncio, sentindo o coração acelerar por um motivo que nem ela entendia direito.
Talvez porque ninguém nunca tivesse dito aquilo para ela.
Talvez porque ele dizia sem esperar nada em troca.
E foi assim que eles começaram a passar mais tempo juntos.
Caminhavam pela cidade. Sentavam em praças antigas. Ele fotografava detalhes. Ela contava histórias de livros.
E aos poucos, o medo de ambos foi sendo preenchido com uma coisa nova.
Presença.
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Parte do Capítulo 4 — Perspectiva de Clara
Naquela noite, Clara deitou-se em sua cama, encarando o teto do quarto.
Sentia o coração leve e confuso ao mesmo tempo.
"Por que ele mexe tanto comigo?", pensava.
Era cedo demais para chamar de sentimento. Mas era tarde demais para dizer que era só amizade.
Gabriel tinha um jeito de quebrar as defesas que ela passou anos construindo.
Ele não pedia para entrar. Ele só ficava. Do jeito dele. No tempo dele.
E isso, de certa forma... assustava e encantava ao mesmo tempo.
Ela sabia que ele carregava marcas do passado. Sabia que não era alguém fácil de se prender em lugares. Mas ele estava ali. E isso já era mais do que ela esperava de alguém.
Clara fechou os olhos e sorriu sozinha.
Talvez, pela primeira vez em muito tempo, ela estivesse disposta a correr o risco de sentir de novo.
Porque algumas verdades o amor não grita.
Ele mostra.
Devagar.
No olhar.
No gesto.
Na presença.
E Gabriel estava se tornando exatamente isso para ela.
Presença.