Laura
Eu tento continuar a aula como se nada tivesse acontecido, como se o ar na quadra não tivesse ficado mais denso de repente, carregado de algo que eu não sei nomear.
As crianças ainda estão no círculo improvisado, pernas cruzadas e olhos atentos, esperando o próximo movimento com aquela energia que só elas têm, pura, sem filtro, como se o mundo fosse só o agora.
— De novo — digo às crianças, batendo palmas duas vezes pra marcar o ritmo, voz saindo mais alta que o normal pra cobrir o zumbido na orelha. — Postura reta, como se tivessem uma corda puxando a cabeça pro céu. Respiração funda, calma. Inspira… expira.
Elas obedecem rápido, peitinhos subindo e descendo em uníssono, braços esticados como asas desajeitadas, uma das meninas, rindo baixo quando o equilíbrio falha e ela balança para o lado.
— Assim, tia? — pergunta, olhos grandes brilhando. Eu sorrio, forçando o gesto pra parecer natural, e assinto.
— Perfeito, Clara. Agora adicionem o giro devagar, como se o chão fosse amigo. — Mas eu não estou concentrada, não de verdade.
Toda vez que fecho os olhos por um segundo pra guiar o movimento, eu vejo ele. Alto, forte, feito de linhas duras e silêncio perigoso que enche o espaço sem esforço. A pele morena marcada por tatuagens que serpenteiam no braço, não decorativas, mas histórias escritas à força, linhas pretas e grossas que contam brigas ou perdas que eu só imagino.
Um homem bonito… mas não bonito como os da Zona Sul, com terno engomado e sorriso ensaiado pra rede social. Bonito de um jeito selvagem, cru, indomável, olhos castanhos fundos que pesam sem julgar, postura que ocupa o ar ao redor como se fosse dele, barba por fazer que coça na memória do olhar dele fixo no supervisor.
E isso me desestabiliza, faz o estômago dar um nó, calor subindo para o rosto, respiração que sai curta apesar do ar quente da quadra. Meu corpo reconheceu algo que a mente não autorizou ainda: perigo que protege, autoridade que não grita, mas impõe.
O jeito que ele cortou o papo com três palavras. “Você tá atrapalhando”. Simples, direto, sem ameaça extra, mas o supervisor engoliu seco e foi embora tropeçando na própria calça social.
— Tia Laura! — a voz da Maria Clara me puxa de volta, rindo alto quando ela gira e quase acerta o braço da amiga ao lado. — Fiz certo?
— Isso — respondo rápido demais, voz saindo afiada, me mexendo para o centro do círculo pra demonstrar o passo de novo, braços abertos como se pudesse abraçar o ar e esquecer o resto.
Não gostei de precisar dele, de ficar ali parada, corpo tenso esperando o toque errado virar algo maior, aliviada quando ele apareceu como sombra que bloqueia o sol. Mas também não posso negar o alívio que senti no peito, o ar voltando para os pulmões como se alguém tivesse aberto uma janela trancada. E o arrepio que veio depois, subindo pela espinha, quando ele virou pra mim, olhos castanhos fixos por um segundo a mais, voz baixa dizendo “você precisa avisar quando alguém passa do limite”.
Um formigamento na nuca como se o olhar dele ainda estivesse ali. Raiva de mim mesma por isso, vim pra ensinar equilíbrio e postura, não pra me sentir assim por um homem que parece feito de gelo.
Perigo.
Proteção.
Autoridade.
Tudo misturado num único homem que desceu a escada sem pressa, mas com passos que mudaram o ar ao redor.
Não penso nisso, ou tento não pensar, batendo palmas de novo pra marcar o fim do exercício.
— Ótimo, galera! Agora água e alongamento rápido. — As crianças correm pra garrafinhas plásticas espalhadas no canto da quadra, bebendo com goles barulhentos, e eu me sento no banco de madeira, pernas esticadas pra aliviar o tornozelo, fôlego voltando normal enquanto elas conversam animadas sobre o “giro da tia”.
Quando a aula termina, me despeço das crianças com abraços rápidos e suados, Maria Clara me apertando forte como se não quisesse soltar, o menino tímido dando um high-five hesitante, mas com sorriso que chega aos olhos.
Elas saem correndo em bando, mochilas balançando nas costas, vozes ecoando na viela: “Tchau, tia!”.
Eu fico sozinha na quadra por alguns segundos longos, arrumando cones de plástico que não precisam ser arrumados de verdade, dobrando o tapete fino de EVA, guardando giz branco manchado na bolsa, ajeitando a lona que balança sozinha.
Respiro fundo o ar quente da quadra, poeira assentando devagar, sentindo o cansaço bom nas pernas e o peito leve apesar de tudo. Para com isso, Laura, penso, sacudindo a cabeça pra afastar a imagem dele, alto na escadaria agora vazia, braços cruzados como se esperasse algo que não vem.
Ele é parte do problema, não da solução, um homem assim, com tatuagens que contam mais que palavras e olhar que pesa o ar, não pertence à minha vida de ensaios e palcos. Não cabe no meu mundo, mas quando levanto a cabeça pra sair, mochila no ombro, ele ainda está ali. Encostado na escada que leva à laje, braços cruzados sobre o peito largo da camiseta preta, boné abaixado sombreando os olhos castanhos que varrem o entorno como se fosse extensão do próprio corpo, a quadra vazia, as mães na porta acenando para as crianças que vão embora.
Meu estômago se contrai de leve, um nó que não é só cansaço, e eu passo por ele tentando manter o passo firme na calçada irregular, postura ereta como nos alongamentos que acabei de ensinar.
— Obrigada — digo baixo, sem parar ou olhar direto, voz saindo neutra, mas com o tom que uso pra encerrar conversa educada.
— De nada — responde ele, voz grave e controlada ecoando na rua estreita, sem volume extra, mas preenchendo o espaço como se fosse natural.
A voz dele é grave, rouca de quem não fala à toa, e eu sinto o arrepio subir pela nuca de novo, o corpo reagindo antes da cabeça. Ele não tenta me prender com pergunta ou olhar prolongado; não tenta me olhar mais do que o necessário pra confirmar que estou bem. Isso deveria facilitar a saída, tornar o momento só um “obrigada e tchau”. Não facilita. O silêncio que fica depois das palavras dele pesa, como se o morro inteiro tivesse pausado pra ouvir.
Raiva de mim mesma por isso, vim pra ensinar equilíbrio para as crianças, pra encontrar meu próprio no meio do caos, não pra me sentir assim por um homem perigoso que desce escadas como se fosse dono do morro inteiro.
Você veio aqui pra ensinar crianças, não pra se sentir atraída por tatuagens que contam brigas ou por voz que corta conversa como faca.
Não pra romantizar o perigo de olhares de longe ou proteção que chega sem pedir. Ele é problema real, o risco que minha mãe avisava desde pequena, com histórias de notícias que ela lia no jornal pra me manter no estúdio.
Ele é tudo que devo evitar, selvagem demais para o meu mundo de passos medidos, indomável para o controle que aprendi a ter.
Chego à parte mais baixa do morro, onde a rua principal se abre para o Largo e solto o ar devagar, sentindo o pulso desacelerar, o vento da base secando o suor na testa. Esse lugar mexe comigo de um jeito que não esperava. Esse homem mexe comigo pior ainda, com o jeito que desceu sem pressa, o toque que não veio, mas protegeu o que eu nem pedi. E eu não posso permitir isso, não posso confundir alívio com faísca, proteção com algo que aquece o estômago.
Pego o celular do bolso da calça, o aplicativo abrindo rápido no Uber, digitando o destino com dedos que ainda tremem de leve, o carro chega em minutos, um sedã cinza com ar condicionado que sopra frio demais para o meu corpo quente, olhando pela janela o morro sumir na curva da serra.
Mas enquanto sigo o trajeto de volta pra casa, meu corpo ainda lembra da sensação estranha que foi estar perto dele, como se, por um segundo… o mundo tivesse ficado perigosamente silencioso. E isso me assusta muito mais do que o morro jamais conseguiu, porque o medo do lugar eu controlo com passos e sorrisos. O medo dele — ou do que ele desperta — é novo, e não sei se quero aprender a dançar com isso.