Capítulo 9 — O Encontro

1946 Words
Kaique Ela voltou. Não precisei de aviso, o morro avisa sozinho quando algo se repete, com um zumbido no ar que muda o ritmo das coisas, como o vento que vira antes da chuva ou o silêncio que cai nos becos quando uma moto nova ronca a ladeira. Estou no alto da escadaria que leva à laje da Vila Alta, o sol do meio-dia batendo forte nas costas e fazendo o suor escorrer pela nuca, apesar da camiseta preta colada na pele. Olho pra baixo, sem pressa, os olhos semicerrados contra o reflexo do sol. É ela. A mesma postura ereta que não dobra para o calor ou para o chão irregular, a mesma mochila simples de lona preta no ombro que balança com o passo firme na calçada estreita, o mesmo jeito deslocado que não pede desculpa por existir, cabelo loiro no coque apertado que solta fios suados na nuca, blusa clara já manchada nas axilas pela subida, calça legging preta marcando as pernas longas de quem treinou pra isso. Não foi curiosidade passageira, então, nem impulso de um dia bom que some na noite. Nem a pressão da ONG ou pena das crianças. Ela voltou porque quis, subindo a ladeira sozinha de novo, ignorando o Uber que para na base e os olhares que seguem como sempre seguem forasteiro. Isso me faz franzir a testa, um aperto no peito que não é raiva, mas algo prático, reconhecimento de teimosia que admiro nos meus, mas temo em quem não conhece o preço. Brunão aparece ao meu lado nesse momento, o corpo grande bloqueando parte do sol. Ele para perto, boné abaixado contra o brilho, braços cruzados sobre o peito tatuado, olhando pra baixo com o mesmo franzir de testa que eu sinto. — A professora voltou — diz, voz grave e baixa, confirmando o óbvio, mas com tom de quem pesa o que isso significa para o dia. — Vi — respondo seco, sem virar a cabeça. — Quer que eu… — ele começa, gesticulando vago com a mão grossa, como se oferecesse pra descer e checar, ou mandar um olheiro mais perto pra relatar o que rola. — Não — corto, voz firme, os olhos ainda fixos nela que agora organiza as crianças em círculo improvisado no cimento, voz suave ecoando fraca até aqui: “Vamos de braços abertos hoje, como asas”. Ela parece mais à vontade hoje, menos tensa. Mais firme no jeito que gesticula com as mãos, desenhando o ar como se fosse invisível, mas guiasse os corpinhos magros das crianças, uma menina de tranças coloridas imitando o movimento com riso alto, um menino tímido de cabelo curto tentando equilíbrio em uma perna e quase caindo, mas ela segura o braço dele com toque leve, rindo junto. É quando ele aparece de novo, quebrando o ritmo da aula. O mesmo cara da ONG, o supervisor de ontem, camisa social clara desabotoada no colarinho pra fingir descontração no calor, calça cinza suja de poeira na barra das pernas, crachá plástico balançando no pescoço. Ele desce da caminhonete branca estacionada na beira da quadra, com sorriso frouxo e confiança demais pra quem não conhece o chão onde pisa, o tipo que acha que crachá abre porta em qualquer beco. Se aproxima dela rápido, mão estendendo casual como se fosse cumprimento, mas demorando perto do ombro dela. Pelo jeito que inclina o corpo pra frente, o sorriso se abrindo largo demais para os dentes brancos, já sei o tipo de homem que é: o que usa cargo pra testar limite, conversa de trabalho virando toque “amigável”. Ela sorri educada, o tipo de sorriso treinado pra não ofender, mas dá um passo para o lado toda vez que ele chega perto demais. Esquiva discreta, gentil, sem confronto, mas os olhos estão alertas varrendo rápido o redor, e só quem conhece perigo de beco ou toque indesejado reconhece isso como defesa real, não flerte tímido. E eu reconheço, porque vi isso em irmãs de amigos, em mães que ensinam filhas a recuar sem gritar. Minha mandíbula trava sozinha, o cigarro caindo na grade e rolando para o lado. Teto, que tinha chegado agora subindo a escada leve pra não alertar, comenta ao meu lado, voz baixa e agitada. — A professora não curte isso não, chefe… Olha o passo dela pro lado, como se o cara fosse mosca chata. Ela não curte, claro como o sol que pinta a quadra de laranja. O supervisor continua, ignorando o recuo, inclinando o corpo magro mais perto, a camisa desabotoada, revelando colarinho suado, tentando encostar no ombro. A mão dele toca o braço dela, leve, rápido, como se fosse acidental, mas toque é toque, pele na pele sem convite, suficiente pra acender algo no meu peito, um fogo curto que sobe do estômago. Sem pensar duas vezes, dou dois passos pra frente na escadaria, o corpo se movendo antes da cabeça mandar o resto. Desço sem pressa, mas com direção clara, cada degrau de concreto gasto batendo com o sangue no ouvido. Cada degrau parece bater junto com o sangue no ouvido. O barulho ao redor diminui quando chego perto. O morro sente quando alguém cruza uma linha invisível. — Tá tudo certo por aqui? — pergunto quando chego perto da quadra, voz firme, parando a uns três metros dela e do cara. Minha voz não precisa ser grito; ecoa na quadra vazia como ordem quieta. O homem se vira rápido demais, o sorriso largo murchando, olhos castanhos piscando surpresos atrás dos óculos finos. — Quem é você? — pergunta, rindo sem graça, tentando recuperar o tom de chefe, mão ainda pairando no ar perto do braço dela. — A gente tá conversando aqui, só trocando ideia sobre o projeto. Eu olho pra ele. Só pra ele, olhos fixos e sem piscar, o tipo de olhar que faz o outro engolir seco. — Não — respondo, voz baixa, mas clara, dando um passo para o lado pra bloquear a linha dele com ela. — Você tá atrapalhando. O sorriso dele morre devagar, o rosto corando levemente sob a pele clara de quem usa protetor solar todo dia. — Desculpa, mas… eu sou da ONG. Supervisor do projeto, cuido da coordenação. A gente tava só… — Não interessa quem você é — corto, inclinando a cabeça de leve pra enfatizar. Olho pra ela agora, rápido, vendo o alívio sutil nos ombros relaxando, mas os olhos azuis atentos, ainda mais linda de perto. — Ela — continuo — não parecia confortável. E aqui, quando alguém não tá confortável, a conversa acaba. Simples. O silêncio cai pesado na quadra, as crianças paradas no círculo olhando com olhos grandes e curiosos. Ela me encara pela primeira vez de perto, olhos claros e atentos, não assustados como eu esperava, mas avaliando, como se medisse o risco e o motivo, o coque suado grudando fios na testa. p***a, bonita demais para o seu próprio bem. — Eu… — ela começa, voz firme, mas baixa, abrindo a boca como se fosse explicar ou agradecer, mas para no meio, os lábios se apertando num sorriso educado que não chega aos olhos. Não precisa se explicar; o ar tá claro agora. — A aula acabou? — pergunto pra ela, ignorando o cara que pigarreia nervoso ao lado, mãos nos bolsos da calça social como se não soubesse onde colocar. — Ainda não — responde ela, cruzando os braços leves sobre o peito. — Mas já tava no intervalo. As crianças estavam indo pegar água. O cara pigarreia de novo, voz saindo forçada e alta demais. — Eu não fiz nada de errado, cara. Só tava conversando sobre o projeto, orçamento novo, essas coisas. Ela é voluntária, eu sou supervisor, é normal… Inclino a cabeça de leve, mantendo os olhos nele. — Aqui, quando alguém diz que não tá confortável, ou mostra com o corpo, a conversa acaba. Sem normal, sem orçamento, sem crachá. Simples. Ele engole seco, o pomo de adão subindo e descendo, olhando em volta rápido. — Eu… volto depois pra falar com ela — murmura, voz baixa, dando um passo pra trás como se testasse a saída. — Não — respondo, sem piscar. — Hoje não. Desce a ladeira e fica no asfalto. Brunão surge atrás, ombro no meu, voz educada demais para o contexto, grave como aviso. — Acho melhor você descer agora, irmão. O morro tá tranquilo, mas pra virar problema é rapidinho. O homem olha em volta de novo, e vai embora rápido, sem olhar pra trás, subindo na caminhonete e quando o ronco da caminhonete some na descida, fico ali parado por um segundo a mais do que deveria. Me viro pra ela devagar, e de perto, ela não parece frágil como pensei, só fora de lugar. Seus olhos estão atentos medindo cada centímetro meu. — Você precisa avisar quando alguém passa do limite — digo, sem dureza na voz, só prático, como se falasse com olheiro novo. — Aqui, silêncio não basta; tem que ser claro. Ela cruza os braços leves sobre o peito, defensiva, mas sem recuar, postura reta como nos ensaios que ela deve conhecer, o tornozelo apoiado firme no chão irregular. — Eu sei me virar — responde, voz firme e direta, sem tremor, olhando nos meus olhos sem baixar. — Já lido com isso há anos, mas… obrigada. — Claro que lida, ela é bonita pra c*****o. — Não fiz por você — respondo, honesto, dando um passo para o lado pra abrir espaço. — Fiz pelo morro. Aqui, ninguém encosta sem consentimento. Ela segura meu olhar por um segundo a mais do que o necessário, arqueando a sobrancelha fina de leve, como se pesasse a palavra. — Entendi — diz, voz baixa, mas com um tom que diz que entendeu mais que as palavras. — Então… quem é você, afinal? Olho ao redor rápido, para as crianças esperando, para as mães na porta acenando pra ela continuar, para o Brunão que fica na sombra da escadaria com braços cruzados. — Alguém que cuida daqui — respondo, simples, sem nome ou título que complique. — Sua aula pode continuar. Aqui ninguém vai te incomodar de novo. — Como posso ter certeza? — pergunta, com um sorriso pequeno nos cantos da boca, testando o limite como quem sabe dançar na beira. — Porque agora sabem que eu vi. E o morro ouve isso melhor que grito. — Ela inspira fundo, solta o ar devagar, os ombros relaxando visível. — Certo — diz, descruzando os braços e virando para o grupo dela, voz subindo para o tom de aula. — Então… até depois, se rolar. — Até — respondo, dando um passo pra trás. Ela se afasta devagar, voltando para o círculo das crianças como se o encontro não tivesse acabado de deslocar o ar ao redor, chamando “vamos de laço agora, quem quer ser a fada primeira?”. Eu fico ali por mais alguns segundos na base da escadaria, olhando o movimento dela guiar as mãos pequenas, o riso voltando alto quando uma menina erra o elástico e ele voa pra trás. Não pra olhar ela de novo, mas pra garantir que o morro voltou ao eixo. E quando subo a escada de novo, sei apenas que ela voltou por escolha própria, sem pressão ou pena. E agora… sabe quem manda aqui, mesmo sem nome ou crachá. Isso muda as regras do jogo sutilmente, olheiros mais atentos amanhã, galera na rua respeitando o espaço dela sem eu mandar duas vezes. Mesmo que nenhum de nós ainda saiba exatamente quais regras novas vão rolar, mas o morro vai mostrar, como sempre mostra.
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