Capítulo 3 — A Chegada

2170 Words
Laura O motorista do Uber olha para mim pelo retrovisor pela terceira vez em menos de cinco minutos. Seus olhos castanhos, piscam com uma mistura de curiosidade e algo que parece genuína preocupação. O carro, sobe devagar a ladeira íngreme que leva ao Morro do Cruzeiro. Lá fora, o sol de novembro castiga o asfalto, fazendo o ar tremular em ondas de calor, e eu me sinto como uma intrusa num filme. — Tem certeza que é aí, moça? — ele pergunta, a voz carregada de preocupação legítima. Ele ajusta o retrovisor de novo, como se quisesse confirmar que não é ilusão de ótica: uma garota de 24 anos, magra, com cabelo castanho preso num coque apertado de bailarina, mochila de lona preta no colo e uma bolsa de tecido florida pendurada no ombro, pedindo pra ser deixada no coração de uma favela que a maioria dos uberianos evita como praga. Olho pela janela e vejo a subida estreita se revelando aos poucos, casas empilhadas como blocos improvisados de Lego gigante, de tijolo aparente e telhados de zinco. Vielas que se ramificam como serpentes de concreto, estreitas e labirínticas, cheias de gente andando com passos firmes, mulheres com sacolas de feira no braço, homens de camiseta regata suada carregando caixas de material de construção, crianças correndo descalças entre poças de água suja, rindo alto como se o mundo fosse brincadeira infinita. Motos sobem como flechas, ziguezagueando entre buracos e pedestres, o ronco dos motores ecoando nas paredes como um pulso acelerado. Meu estômago aperta, sobe do abdômen para o peito, como nos ensaios ruins, quando o corpo traía o passo. Minhas mãos também apertam, os dedos entrelaçados na alça da mochila, unhas cravadas na palma suada, deixando meias-luas vermelhas que sei que vão durar horas. Mas meu coração… meu coração dá um pulo diferente, um sim teimoso e vibrante que ecoa no peito como o primeiro plié de uma aula boa. É uma batida que não é medo puro, mas algo misturado, excitação crua, como quando eu girava no palco pela primeira vez, o ar rarefeito e o mundo desfocado em beleza. Olho para o motorista pelo retrovisor, forçando um sorriso que sai torto, e digo. — Tenho, sim. Pode parar aqui, por favor. Ele hesita por dois segundos longos, o carro desacelerando mais que o necessário, como se esperasse um “brincadeira, volta para o Leblon”. Acho que pensa em insistir, em contar uma história de assalto que leu no jornal ou de turista que sumiu na serra, mas desiste quando vê que eu já estou abrindo a porta com determinação. O ar quente da tarde bate no meu rosto, carregado de cheiros que invadem sem permissão: fritura de pastel de feira misturada com asfalto quente derretendo no sol, perfume doce de jasmim de um vaso na janela próxima, e um fundo metálico de diesel de moto que passa acelerada. O Uber vai embora rápido demais, deixando uma nuvem de poeira fina que gruda na pele. Fico sozinha na calçada irregular, o salto baixo dos tênis de corrida — escolha prática para a subida — afundando levemente na terra solta. Por um instante, penso: sério, Laura? Você pirou de vez. O que uma bailarina da Zona Sul, com lesão fresca e mãe ligando a cada hora para cobrar retorno aos ensaios, tá fazendo aqui, no meio de um morro que parece um mundo paralelo? Meu tornozelo lateja de leve, um lembrete fraco do gesso que tirei há dias, e o suor escorre pela nuca, colando fios soltos do coque na pele. Mas essa sensação passa ou é abafada pela necessidade teimosa de não voltar atrás, de não ser a garota que desiste no primeiro olhar torto. Eu seguro a mochila mais firme, sentindo o peso reconfortante das sapatilhas extras, da playlist no celular e de um frasco de água que já tá pela metade, e começo a subir a rua principal. Olhares. Muitos olhares, como se eu fosse uma mancha branca num quadro de cores vivas. Alguns curiosos, de mulheres paradas na porta de casa com panela na mão, inclinando a cabeça como se tentassem encaixar meu rosto num quebra-cabeça. Outros desconfiados, de homens encostados em motos estacionadas, braços cruzados e sobrancelhas franzidas, avaliando se sou ameaça ou só distração passageira. E alguns… simplesmente tentando entender o que uma garota como eu está fazendo sozinha no Morro do Cruzeiro com uma bolsa de tecido florida e o cabelo preso num coque de bailarina que grita “eu não sou daqui”. Meu coração bate forte no peito, mas meus passos não param, um pé à frente do outro, devagar para não forçar o tornozelo, mas firme o suficiente pra mostrar que sei para onde vou. Lembro do cartaz no hospital, da foto granulada das meninas com tutus de tule barato, dos sorrisos que pareciam ecos do meu próprio começo. Aquela sensação de respiro, de algo maior que a dor e a pressão, me impulsiona. E sigo, ignorando o suor que escorre pela espinha e o formigamento na nuca de quem se sente observada. A quadra onde o projeto funciona não está muito longe, pelo menos foi o que disseram no e-mail da coordenadora da ONG, uma mulher chamada Sandra, que soou animada demais ao telefone, como se eu fosse a salvadora que elas esperavam. Mas entre uma esquina e outra, as vielas se bifurcam em labirintos que o Google Maps não mapeia direito, e eu preciso parar pra perguntar. Escolho uma senhora que vende sacolé na porta de casa, uma estrutura simples de tijolo com portão de ferro gradeado. Ela é baixa, robusta, com pele escura marcada pelo sol e um avental florido amarrado na cintura, mexendo em potes de xarope colorido com uma colher de p*u. — Boa tarde, moça… a quadra de dança fica onde? O Projeto Dança na Comunidade? — pergunto, tentando sorrir natural, mas sentindo a voz sair um tom mais alta que o normal, como se volume compensasse a insegurança. Ela me olha de cima a baixo, os olhos castanhos estreitando levemente, não com hostilidade crua, mas com um tipo de alerta silencioso, o mesmo que uma mãe dá pra filha saindo à noite. Passa o olhar pelo meu coque, pela blusa branca de algodão que já tá suada nas axilas, pela mochila que grita “turista bem-intencionada”. Faz um som curto, quase uma risadinha preocupada, balançando a cabeça como se eu fosse um erro bonitinho. — Você é a professora nova, né? A da dança chique? — diz ela, voz rouca de anos gritando para os filhos ou clientes. Engulo em seco, a garganta seca como papel de seda, sentindo o calor subir para o rosto. — Sou… sim. Laura. Cheguei agora. Ela assente, limpando as mãos no avental e apontando com o queixo para uma viela à esquerda, estreita e sombreada por varais de roupa estendidos. — Então cuidado nas subidas, menina. Elas enganam, parecem perto, mas sugam o fôlego. E não fala com qualquer um, não, aqui é tranquilo para o dia, mas é bom respeitar o chão onde pisa, entender o ritmo. A quadra é ali na terceira esquina, depois da lojinha do Seu Zé. As meninas já tão esperando, coitadas, animadas com a novidade. — Claro, obrigada de coração — respondo, aliviada, sentindo um fio de gratidão por ela não ter me mandado de volta para o Uber. Ela sorri de leve, um vinco na bochecha. — Vai com Deus, professora. E se precisar, grita. Aqui a gente ouve. Sigo o caminho indicado, o sol batendo nas costas como mão pesada, o funk agora mais próximo, pulsando de uma janela aberta com cortina rasgada. Cada passo é uma conquista, o suor escorrendo pela testa. Passo por uma vendinha improvisada, com prateleiras de madeira cheias de salgadinhos e refrigerantes quentes, o dono, acenando com a cabeça sem parar o que faz. Quando a quadra aparece na terceira esquina, meu peito se abre como se alguém tivesse puxado uma fivela apertada demais. É simples, pequena, um retângulo de cimento rachado com linhas de giz desbotadas para o basquete que ninguém joga mais, coberto por uma lona azul desbotada que protege metade do teto de chuvas rápidas. Paredes de bloco cinza com desenhos de flores e corações pintados à mão, agora descascando nas bordas, e o espaço iluminado pela luz natural que vaza de uma brecha no telhado, criando poças de sol no chão irregular. Tem um som de rádio tocando baixo, uma música suave que parece saída de outra era. E tem crianças. Oito ao todo, cinco meninas e três meninos, entre 8 e 12 anos, sentados em círculo improvisado no chão, pernas cruzadas e olhos fixos em mim como se eu fosse alguém importante, uma fada saída de conto ou uma professora de verdade, não a voluntária nervosa que sou. Elas usam roupas comuns: shorts jeans remendados, camisetas folgadas com estampa de time de futebol, tênis velhos que rangem no cimento. Uma das meninas, de tranças coloridas com elásticos vermelhos, levanta primeiro, olhos grandes e curiosos brilhando sob cílios longos. — Você é a tia da dança? — pergunta ela, voz alta e animada, pulando de pé com energia que invejo. Tia. Sou “tia” agora, não a Senhorita Mendes dos estúdios chiques com ar-condicionado e espelhos impecáveis. Nem professora formal… tia. E isso, por algum motivo simples e profundo, é muito mais bonito que qualquer título que eu já tive. Me faz sentir parte, não acima. — Sou sim — respondo, sorrindo de verdade pela primeira vez em semanas, o tipo de sorriso que aquece o peito. — Meu nome é Laura. E vocês? Estão prontos pra dançar e se mexer um pouco? As meninas vibram alto, pulando e batendo palmas, um coro de “sim!” que ecoa na quadra como música própria. Os meninos fingem que não estão animados, mas vejo o brilho nos olhos, o sorriso contido que escapa no canto da boca. Eles são os mais quietos, talvez por vergonha ou por crescerem ouvindo que “dança é coisa de menina”, mas sei que o corpo deles quer se mover tanto quanto o das irmãs. Coloco a mochila no canto, perto de uma pilha de cones de sinalização que servem de marcador, e tiro as sapatilhas extras, alinhando-as com cuidado como ritual. — Vamos fazer um círculo grande — digo, mostrando com os braços abertos, girando devagar pra incluir todos. — Quero ver como vocês se movem, nada de errado, só diversão. Eles obedecem rápido, pés arrastando no chão pra formar o círculo irregular, mãos dadas hesitantes. Começo a trabalhar, o corpo lembrando instintivamente como ensinar, voz suave, mas firme, gestos amplos que guiam sem impor, música baixa no celular tocando um clássico suave de Tchaikovsky adaptado para versão moderna, com batida leve para não assustar. Peço pra eles andarem no lugar, sentindo o ritmo; depois, braços para o alto como asas, quadril solto como onda. As meninas pegam rápido, rindo quando tropeçam, imitando arabesques desajeitadas com pernas magras e determinadas. Os meninos seguem relutantes, mas um deles, de cabelo curto e sorriso tímido, solta um “uau” quando gira sem cair. Minha alma lembra como viver, nesse fluxo simples de movimento e riso. Quando uma menina de tranças tropeça num degrau invisível no cimento e segura meu braço para se equilibrar, rindo alto com dentes de leite faltando, percebo que era isso. Era isso que eu precisava, mais que palcos ou aplausos: liberdade crua, gente de verdade que não cobra perfeição, vida real que pulsa sem roteiro. O suor escorre, o tornozelo reclama, mas o peito se expande com algo leve, como ar fresco depois de tempestade. No meio da aula, entre um alongamento e uma sequência básica de plié, noto os observadores. São três homens, no alto de uma escadaria próxima que leva a uma laje elevada. Estão quase imperceptíveis, encostados na parede de tijolo, camisetas escuras coladas no corpo suado, rostos semi-ocultos por bonés virados pra baixo. Não falam nada, não se movem além de um gesto sutil de cabeça, só vigiam, olhos fixos como sentinelas. Um deles é alto, ombros largos sob a camiseta preta, postura que grita autoridade sem esforço, como se o morro inteiro soubesse quem ele é sem precisar de nome. Sinto um arrepio que não é medo puro, é aviso, como o vento que precede a chuva, dizendo que entrei num jogo maior que tutus e passos. O morro me olha de volta, avalia cada movimento meu, decide se fico ou se sou passageira indesejada. Mas continuo sorrindo para as crianças, guiando as mãos delas no ar, rindo quando um menino finge um jeté e cai de b***a no chão, levantando poeira. Continuo dançando no lugar, o corpo se aquecendo, o coração desacelerando para o ritmo delas. E mesmo assustada com os olhos nas sombras, mesmo tremendo por dentro com o peso dos olhares, eu estou exatamente onde deveria estar, onde o balé não é elite, é salvação.
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