Laura
A casa ainda está silenciosa quando saio, o tipo de silêncio que ecoa mais alto que qualquer barulho, pesado, carregado de coisas não ditas.
Minha mãe não bateu à porta do meu quarto, não pediu desculpa, não tentou me impedir e o silêncio dela pesa mais do que qualquer grito, como se fosse uma parede invisível que ela ergueu entre nós, esperando que eu desista sozinha.
Eu acordo cedo, e desço as escadas com cuidado, apoiando mais no corrimão por causa do tornozelo que ainda lateja de leve, ajusto a mochila no ombro, uma garrafinha de água e um caderno rabiscado com nomes das crianças e saio para rua antes que a dúvida consiga me alcançar de vez.
Observo as pessoas indo para o trabalho, cada uma carregando seu próprio mundo nos ombros: uma senhora de sacola de feira no braço, conversando alto no celular sobre preço de tomate; um homem de terno amarrotado, fone no ouvido e café pra viagem na mão, olhando para o relógio como se o tempo fosse inimigo; uma mãe empurrando carrinho com bebê choroso, ninando com paciência que eu invejo.
Eu carrego o meu também, o eco da discussão com a minha mãe, o formigamento de ansiedade no estômago, só que, pela primeira vez em meses, ele não está em ruínas completas. Tem rachaduras, sim, mas também luz vazando, como o sorriso que não sai do rosto quando penso nas crianças esperando.
Nos nomes que ainda estou aprendendo: a Maria Clara de tranças coloridas que me pediu ontem pra ensinar um “passo de fada” que ela viu na TV; o João, o menino tímido de cabelo curto e olhos baixos, que riu nervoso quando errou a pirueta, mas tentou de novo até acertar, caindo de joelhos, mas levantando com um “de novo, tia!”.
Elas me esperam lá em cima, na quadra simples com lona azul e chão marcado de giz, e isso muda tudo, transforma o ônibus barulhento em ponte, o medo em expectativa.
O Uber não sobe até o alto, eu já sei, o aplicativo corta na base, “área de risco” piscando no mapa como aviso vermelho. Peço a corrida até o Largo e desço ali, respirando fundo, ajustando a alça da mochila antes de seguir a pé pela rua principal.
O morro está diferente de ontem à tarde: mais barulhento com o movimento do meio-dia, mais vivo com vendedores ambulantes gritando, crianças correndo entre as pernas das mães com mochilas da escola, motos ziguezagueando devagar pra não atropelar. O sol alto iluminando as fachadas de tijolo e varais estendidos balançando como bandeiras coloridas.
Cumprimento uma senhora varrendo a calçada, ela tá de avental florido, pele morena marcada pelo sol, olhando pra mim com olhos curiosos, mas amigáveis.
— Bom dia, tia da dança — diz, acenando. Eu sorrio, aceno de volta.
— Bom dia! As meninas já tão na quadra? — Ela ri baixo, balançando a cabeça.
— Tão sim, esperando desde as nove. Vai lá, elas adoram você.
Subo com passos firmes, o tornozelo protestando em curvas, mas aguentando, o coração disparando não só pela ladeira, mas pela expectativa que sobe com o suor na nuca.
Ainda sinto alguns olhares, um grupo de adolescentes encostados em motos na esquina, sussurrando e rindo, uma mulher na porta de casa com bebê no colo inclinando a cabeça pra me medir, mas hoje eles não me paralisam como ontem; viraram parte do cenário, como o funk tocando baixo em algum rádio aberto. Não vim pra ser aceita de bandeja, com tapete vermelho na calçada; vim pra ensinar, pra ver os olhos das crianças brilharem num giro certo, e isso basta por enquanto.
Quando a quadra aparece na terceira esquina, meu peito se aquece como se alguém acendesse uma vela lá dentro. As crianças já estão lá, sentadas em semicírculo, pernas cruzadas e olhos fixos na entrada, como se eu fosse o evento do dia.
Nove hoje, uma a mais que ontem, a Maria Clara de tranças trazendo uma amiga nova, magrinha com cabelo solto e sorriso tímido. Elas pulam de pé ao me ver, vozes sobrepondo num coro bagunçado: “Tiaaaa! Chegou!”. Eu rio alto, abrindo os braços sem pensar duas vezes, sentindo o eco do riso delas me envolver como abraço coletivo.
— Bom dia, minhas estrelas! Prontas pra voar hoje? — digo, com a voz saindo leve, apesar do cansaço da subida, largando a mochila no canto.
Elas vibram, pulando no lugar e todo o medo que tentei ignorar desde que acordei, some.
A aula flui melhor do que ontem, o cimento quente sob os pés descalços delas, o ar da quadra carregado de poeira levantada e risos que cortam o burburinho distante do morro.
Os movimentos ainda são simples, respeitando meu tornozelo que lateja menos hoje e os corpinhos delas que se cansam rápido no calor, alongamentos sentados com braços como asas, equilíbrio em uma perna com mãos dadas pra não cair, ritmo com palmas que vira batida improvisada. Há entrega nos olhos delas, atenção que não precisa de bronca, alegria que explode em gritinhos quando a Maria Clara acerta um giro e puxa a amiga pra tentar junto.
Ensino equilíbrio com uma mão na parede para os mais novos, postura com espelho imaginário, ritmo batendo palma no cimento que ecoa como tambor.
Durante um intervalo curto, sento no banco de madeira lascada na beira da quadra, bebendo água da garrafinha e observando o morro ao redor, as casas de tijolo empilhadas em degraus precários, pessoas passando na rua com sacolas ou ferramentas no ombro, o sol filtrando pela lona e pintando padrões no chão. Não é bonito como um palco com luzes; é real, com poeira nos pés e barulho constante, mas gosto disso, da textura, do pulso vivo que não para pra aplauso.
Sinto, de novo, aquela sensação estranha no meio do peito, como se alguém estivesse observando de longe, um peso nos ombros que não é paranoia, mas presença. Não me viro pra checar a escadaria alta ou as lajes vizinhas; não paro a aula pra varrer o olhar para os becos. Não vou deixar que isso roube o que estou construindo aqui, tijolo por tijolo de riso e movimento. Em vez disso, chamo as crianças de volta para o círculo, voz alta pra cobrir o formigamento.
— Vamos tentar o laço com elástico agora, quem quer ser a fada primeiro?
No meio da tarde, uma das mães se aproxima devagar, segurando a mão da filha, olhando pra mim com olhos castanhos que medem, mas sorriem.
— Obrigada por vir de novo, viu? — diz, voz rouca e prática, apertando a mão da filha que se esconde atrás da perna dela. — Elas ficam esperando desde cedo, perguntando “a tia vem hoje?”. Minha pequena aqui não parava quieta no café.
Engulo em seco, a garganta apertando, sentindo o peso bom das palavras dela, gratidão simples, sem drama ou pena.
— Eu que agradeço, de verdade — respondo, abaixando pra ficar na altura da menina, tocando o braço dela leve. — Vocês me esperam, e isso faz o dia valer a pena, amanhã a gente faz o laço de fada, combinado?
A mãe assente, sorriso se abrindo devagar, e puxa a filha pra ir, acenando uma última vez. Quando arrumo minhas coisas pra ir embora, tapete dobrado na mochila, elásticos sobrando na bolsa, giz branco manchado nos dedos, o cansaço finalmente chega, pesando nas pernas e na pálpebra, mas vem acompanhado de algo bom, sólido, a satisfação que enche o peito como ar depois de respiração presa. Pertencer não é sobre lugar fixo ou placa na porta; é sobre escolha diária, e eu escolhi isso, o cimento quente, os nomes rabiscados no caderno, os tropeços que viram vitórias.
Enquanto desço o morro mais uma vez, passos mais confiantes na ladeira que ontem sugava o fôlego, penso que talvez minha mãe nunca entenda o porquê de eu subir de novo.
Talvez eu mesma não entenda tudo ainda, o arrepio dos olhares distantes, o peso de pertencer a dois mundos que não conversam, mas uma coisa é clara, batendo no peito com cada degrau: eu não estou mais parada, olhando para o espelho que mente ou para o laudo médico que adia. Estou me movendo, girando desajeitada, mas pra frente.
E isso… já é dançar de novo, no ritmo torto, mas meu.