Os dois começaram a correr de mãos dadas, sem tempo para recuperar o fôlego. Raissa achou que os bambus pareciam estar sempre em um horizonte muito distante, até que de repente eles estavam bem na sua frente e ela precisou soltar a mão de Daniel para continuar a correr entre a vegetação, forçando as pernas a irem mais rápido, ainda que elas parecessem prestes a sucumbir pelo esforço. Raissa tinha noção de como haviam demorado demais até conseguir sair da casa, tinha noção de que a equipe de segurança poderia chegar ali a qualquer momento, tinha noção de que os dois seriam levados a uma delegacia e que dali até serem reconhecidos por algum policial corrupto e serem entregues a Romeu seria um processo rápido. Ela estava tão envolvida com todas aquelas possibilidades que sequer notou quando os bambuzais ficaram para trás e os seus pés tocaram o asfalto da pista. Também não ouviu o som quase inaudível de pneus contra o chão. A primeira coisa que transpassou seus pensamentos foi o grito de Daniel, mas antes que ela pudesse olhar na direção do amigo, seu corpo foi atingido em cheio por algo duro que a lançou alguns metros à frente na pista. Ela sentiu o lado esquerdo do corpo arrastar contra o chão, sua cabeça atingiu o asfalto em um impacto doloroso que nublou a sua visão e fez os seus ouvidos zumbirem.
— Raissa? Raissa, olha pra mim, tá me ouvindo? — o eco da voz de Daniel voltou a soar, meio distorcido, mas capaz de atravessar o zumbido nos seus ouvidos. Raissa sentiu as mãos dele no seu rosto e então o ouviu xingar — Olha só para você — a voz embargada do amigo a puxou um pouco para fora do torpor causado pela queda. Ela fechou os olhos com força e voltou a abri-los na tentativa de fazer sua visão voltar ao normal.
— O que aconteceu? — ela ainda tentava focar o olhar no rosto aflito de Daniel, naquele momento ele parecia uma pintura de um anjo perdido. Os cabelos castanhos claros bagunçados e os olhos verdes, escuros pela pouca iluminação ao redor, brilhando de lágrimas. Um anjo desesperado, sujo e lindo e que não merecia sofrer...
— Você foi atropelada, precisa levantar — Raissa apertou os olhos mais uma vez, sua visão borrada a estava deixando enjoada. Ela tentou parar de divagar sobre anjos para prestar atenção no que o amigo falava. A sua mente parecia ter virado um longo túnel que dificultava a conexão das palavras com sua capacidade de entende-las — Temos que sair daqui — Daniel alisou o lado direito do seu rosto, o lado esquerdo começava a arder com o vento que batia contra sua pele.
Raissa piscou para ele, pensando, talvez um segundo mais tarde que o devido, que deveria questionar o motivo de Daniel estar lhe olhando daquela forma, com tristeza e resignação. Mas antes que falasse, faróis fortes foram ligados atrás de seu amigo, fazendo-a apertar os olhos e sentir uma pontada dolorosa na cabeça.
— Agora ele liga os faróis — Daniel murmurou, ao mesmo tempo em que ouviram o barulho da porta do carro sendo fechada ao longe. A percepção de que havia mais alguém ali fez o cérebro de Raissa começar a sair do estado de embaraço para um estado alerta, o que intensificou a dor que sentia na cabeça. E por falar em dor, ela finalmente passou a registrar os danos no seu corpo, mesmo sem ter coragem de olha-los. O rosto agora ardia ainda mais, assim como o braço e perna esquerda, e ela podia sentir a umidade quente do sangue em alguns pontos da sua pele...
— Rainha, temos que ir — Daniel apressou em tom exasperado, os olhos angustiados vagando por seu rosto, vendo o estrago que ela apenas era capaz de sentir. Ela respirou fundo, odiava dar notícias r*ins ao amigo, mas...
— Não dá, não consigo — informou. Tentou erguer a mão para segurar a dele, porém desistiu quando sentiu a pele do braço repuxar e arder com mais intensidade — Meu tornozelo está latejando de dor, acho que eu o torci — ela engoliu o desespero para continuar mantendo o tom calmo, não podia passar seu desespero para Daniel ou ele surtaria ainda mais rápido — Você precisa ir embora.
— Eu não vou deixar você — ele rebateu, sem cogitar a ideia sequer por um instante. Ao longe podiam ouvir som de passos esmagando a terra na pista, cada vez mais perto.
— Daniel...
— Não, isso está fora de cogitação.
— Me escuta, você não pode ficar — ela insistiu, o tom um pouco menos calmo que antes — Você está nisso por minha causa, se ficar aqui e eles te pegarem...
— E se você ficar? Sabe o que vai acontecer!
— Você ficar aqui não vai impedir que aconteça, vai apenas me fazer sofrer mais — ela respirou fundo novamente, vendo as lágrimas molharem as bochechas do amigo. Daniel era um chorão, e toda vez que ele derramava alguma lágrima Raissa sentia seu coração se partir mais um pouquinho. Mas mesmo se quisesse consolá-lo naquele momento, os passos do motorista do carro se aproximando mais e mais faziam a urgência de tirar seu amigo dali quase a sufocar, sobrepujando qualquer vontade de consolá-lo ou de mentir com o velho papo de que tudo ficaria bem. Ela preferia vê-lo triste e vivo à vê-lo consolado e ferrado — Eu sei que você jamais me abandonaria, mas preciso que faça isso por mim. Eu tenho a ficha limpa, não vou ficar detida por tempo o bastante para ser localizada por eles — completou com convicção, mesmo sabendo que não era verdade — Mas você já tem passagem e se eles te deixarem detidos, o Romeu vai encontrar nós dois. Vai embora.
— Não posso, não posso te deixar sozinha — Daniel abaixou a cabeça, os ombros tremendo pelo choro. Um nó se formou na garganta de Raissa.
— Por favor, vai embora logo...
— Desculpe interromper a cena — uma terceira voz se pronunciou, só então Raissa se deu conta de que os passos que se aproximavam haviam parado de soar na estrada — Mas acho melhor informar que ninguém vai sair daqui, então parem de perder o tempo de vocês.
Ela olhou para o lado, na direção da voz grave que interrompera o seu diálogo desesperado com Daniel. A primeira coisa que viu foram os sapatos sociais de couro bem polido do homem, e antes que erguesse o olhar para ver o resto do traje, seus olhos notaram de relance outra coisa parada ao lado dele: um enorme rottweiler. Os pelos dos braços dela se eriçaram, seu coração acelerou um pouco mais e sua boca secou. Aquele cachorro poderia fazer um bom estrago, e estava a encarando como se fosse capaz de ler os seus pensamentos. O cachorro ali era como a cereja do bolo, algo para aumentar as lembranças amargas na sua mente. Como um aviso de que daquela vez as coisas podiam realmente chegar a um fim e que talvez ela voltasse àquele inferno de torturas e ameaças que vivera e do qual tanto fugira.
Raissa voltou a olhar para Daniel, que encarava o homem acima deles. Ela se forçou a erguer o braço, ignorando a dor, e segurar a mão do amigo no seu rosto.
— Onze e meia no mesmo lugar de sempre — disse assim que os olhos de Daniel se voltaram na sua direção — E isso não é uma opção — completou em tom sério. Não precisou mais do que isso para que a aceitação passasse pelo olhar do amigo. Uma última lágrima escorreu pela bochecha de Daniel antes que ele se levantasse.
— Onze e meia — ele repetiu se preparando. Raissa assentiu.
— Volte para o chão — o homem de sapatos de couro ordenou.
— Onze e meia, rainha — seu amigo repetiu de novo, e então completou um segundo antes de começar a correr: — Eu memorizei a placa do carro.
Raissa o observou correr em direção as árvores e quando o outro homem tentou segui-lo, ela o segurou pela perna. O tranco da força do homem contra o seu agarre fez uma onda de dor passar por todo seu corpo, enchendo seus olhos de lágrimas e a obrigando a travar os dentes para não gritar.
— Solta — o homem ordenou. Ela o segurou com mais força — Solta agora ou eu mando o Tobias ir atrás do seu amigo.
Ela soube que Tobias era o rottweiler pela forma como o cão se pôs em pé e em alerta ao ouvir o nome.
— O que me garante que não vai mandar ele atrás do meu amigo mesmo se eu te soltar? — perguntou tentando ganhar tempo para Daniel, não que acreditasse que ele fosse capaz de fugir daquele cachorro enorme mesmo com o tempo de vantagem.
— Eu te garanto — o homem rebateu — Se quisesse fazer isso, já teria feito. Agora solta.
Ela soltou, não tinha muito o que fazer. O homem voltou a parar na sua frente, Raissa não se deu ao trabalho de erguer o olhar, não importava quem ele era, o que importava é que ele a havia pego e que ela estava ferida demais para fugir daquela vez.
— Então você é do tipo super-heroína? Se sacrificando pelo seu amigo, que patético. Sabe que eu vou achar ele, não é? — na sombra projetada no chão, viu que o homem ajeitava o terno. Pela roupa e pelo sapato, era fácil presumir que não era um dos seguranças da casa. Talvez fosse apenas um motorista qualquer passando por ali na hora errada. Ela poderia barganhar com ele, fingir que o denunciaria e então propor que a deixasse ir em troca do seu silêncio... — Quero saber o que os dois estavam fazendo invadindo a minha propriedade, e como saíram de lá.
Ok, ele não era só um motorista aleatório, era o dono da casa. Que maravilha!
— Antony — uma nova voz soou, dessa vez feminina e vinda da direção do carro — Está tudo bem?
— Eu mandei você esperar no carro, Camile — o homem rebateu em tom seco.
— Mas...
— Camile — ele a repreendeu.
— Desculpe, senhor Ribeiro — a mulher respondeu apressada, um segundo depois Raissa ouviu o som da porta do carro fechando novamente.
Antony voltou a atenção em sua direção e se abaixou na sua frente. Bom, o resto da roupa combinava perfeitamente com os sapatos caros. Ele usava um traje social todo preto e, para harmonizar com o look refinado, tinha a barba bem feita e os cabelos alinhados para trás.
— Vamos, você vai ter bastante tempo para explicar tudo a caminho do hospital — ele fez menção de pega-la pelo braço. Raissa se esquivou, ficando levemente tonta com o movimento repentino.
— Nada de hospitais — ela retrucou, rezando para não estar vesga, já que Antony agora estava tão embaçado na sua visão quanto Daniel esteve pouco antes. Antony estreitou o olhar na sua direção.
— Você precisa de um hospital, parece prestes a desmaiar. Mas se prefere ir direto para a delegacia... — ele deu de ombros, indiferente.
— O quê? Não! — se afastou novamente da tentativa dele de segurá-la, piscando os olhos com força para trazer algum foco à sua visão. Sabia que Antony tinha razão, a pancada que sofrera estava afetando bastante suas capacidades, mas ela sequer teria capacidades, ou cabeça, se fosse parar em algum hospital público, caísse no sistema e fosse pega por Romeu — Nada de hospitais, nada de delegacias...
— Ah, claro — ele retrucou com desdém — Acha mesmo que vou te deixar aqui depois de você invadir minha casa e de eu te atropelar?
— Eu juro que não roubamos nada da sua casa...
— Por quê? Notaram que as portas estavam trancadas antes de conseguirem tirar algo de lá, não é? — as perguntas vieram banhadas em sarcasmo. Raissa tentou manter a calma, com certeza mandar ele se f*der não ajudaria em nada na possibilidade de sair daquela situação ilesa.
— Nós não entramos lá para roubar — respondeu em um tom de voz controlado e voltou a focar o olhar nos sapatos de couro, apenas porque olha-lo na cara lhe despertava uma imensa vontade de soca-lo até ele abandonar aquele sarcasmo i****a e aquele arzinho de dono do mundo.
— E entraram para quê? — Antony continuou com o tom irritante — Queriam apreciar a minha mobília?
— Não, nós... eu queria apenas dormir em um lugar legal para variar. Acredito que você não faça ideia do que é isso, mas dormir na rua ou em abrigos é uma grande m*rda, senhor Ribeiro.
Ele não retrucou de imediato, e quando Raissa ergueu os olhos, viu que o deboche e o sarcasmo haviam sumido da sua expressão.
— Deixa eu ver se entendi, você quer que eu acredite que vocês dois invadiram a minha casa apenas para passar a noite lá? — Antony indagou, a observando com atenção.
— Foi exatamente isso — ela começava a ficar impaciente — Por favor, me deixe ir embora.
— Não. Mesmo se eu quisesse simpatizar por sua causa, não há a menor possibilidade de te deixar aqui sem prestar socorro depois de te atropelar. Não sou nenhum i****a, querida, sei que assim que virar as costas essa sua cabecinha vai começar a planejar a melhor forma de me processar.
— O quê? Isso nem sequer passou por minha cabeça!
— Além disso — ele continuou, a ignorando — Não vou te liberar antes de ter certeza de que todos os meus pertences estão na minha casa e que eu não sofri nenhuma perda com essa sua invasão.
Naquele momento a imagem do Xbox one quicando no chão inundou sua mente. Raissa se forçou a manter a expressão neutra, ainda que por dentro quisesse gritar.
— E por fim — o homem continuou — Não posso simplesmente deixar vocês dois irem assim, desse jeito vão julgar que estou sendo complacente com o que fizeram e eu não estou. A minha casa não é motel, querida.
— O quê? Mas nós não...
— Vamos, levanta logo daí — ele tentou segura-la novamente e mais uma vez Raissa se esquivou.
— Não. Não vou a lugar nenhum.
— Deixa de besteira, garota. O que você pensa que vai acontecer se ficar aqui no meio do nada toda machucada desse jeito?
— Não importa — ela rebateu, desistindo de manter o controle na voz — Eu prefiro definhar nessa estrada do que cair nas mãos do Rom... Nas mãos das autoridades.
— É mesmo? — algo transpassou a indiferença no olhar de Antony, ele ergueu uma sobrancelha, a observando com mais atenção do que antes — Você está fugindo da polícia ou algo do tipo?
— Não. Eu estou... fugindo dos meus pais. Eles são influentes, sabe? — ela tentou parecer convincente — Se o meu nome for fichado em hospital ou delegacia, vai ser fácil para eles me acharem.
— Tudo bem — ele voltou a falar após uma pausa — Sem polícia e sem hospitais, mas você fica comigo até a equipe de segurança avaliar os pertences da casa e checar se está tudo ok. E você vai passar por um médico particular, nada que gere uma ficha, não se preocupe.
Dessa vez, quando ele tentou segura-la pelo braço, ela permitiu. Antony se levantou e a ergueu em um movimento só, fazendo com que uma nova onda de dor insuportável passasse por seu corpo.
— Vai com calma — ela pediu entredentes — Acho que torci o meu tornozelo.
— Então é melhor começar a pular de um pé só até o carro.
Ele continuou a segurando pelo braço, mas sem fazer qualquer movimento para ajuda-la no percurso. A cada pulo que Raissa dava, uma nova dor tomava seu corpo. Quando alcançou o veículo, não pôde resistir ao impulso de apoiar a mão no teto do carro e descansar o corpo contra ele. Os seus membros tremiam pelo esforço e pela dor, e uma camada de suor frio cobria a sua nuca.
— Quando você diz que eu vou ficar com você até a equipe de segurança checar sua casa... — ela começou, recuperando o fôlego — O que vai acontecer caso, hipoteticamente, eles encontrem algum dano?
Antony desviou o olhar do carro para ela.
— É simples, você só vai ser liberada quando pagar pelos danos.
— Mas... Você não pode me manter com você até eu pagar, isso... isso é sequestro!
— É mesmo? — ele voltou a adotar o tom sarcástico — E o que você vai fazer para me impedir, falar com a polícia?
Antony sorriu, debochando dela. Raissa nunca precisou se esforçar tanto para não mandar alguém ir à m*rda, mas, considerando o valor estimado dos danos que ela e Daniel haviam causado na casa, achou melhor evitar contradizer o m*ldito homem.