CAPÍTULO 2
BIBI NARRANDO
Meu nome de batismo é Fabiana, mas aqui ninguém me chama assim. No morro, sou só a Bibi. Tenho 17 anos, morena de pele clara, cabelo liso escuro que bate na cintura e olho verde herdado da minha mãe. Dizem que chama atenção, mas eu nunca liguei muito pra isso não.
Cresci nesse beco, nessa quebrada, ouvindo o chiado do rádio, os tiros na madrugada e a correria da boca como se fosse música de fundo da minha vida. Perdi meu pai cedo — ele era braço direito do pai do Escorpião. Tombou antes mesmo de eu entender o que era perder alguém.
Mas o que me derrubou de verdade foi perder a minha mãe. Não foi bala, não foi morro, não foi invasão. Foi câncer. Eu vi ela definhar na cama, vi a força dela ir embora aos poucos, e eu não podia fazer nada. Isso me quebrou por dentro. Eu tinha só uns doze anos, e parecia que o mundo inteiro tinha desabado na minha cabeça.
Ver a pessoa que mais te ama no mundo ir embora, sem poder segurar, sem poder mudar nada, é a pior dor que existe. Aquilo me fez endurecer. Eu aprendi a engolir o choro, a ser forte na marra, porque senão a vida me engolia.
Se não fosse a coroa do Escorpião, eu e o Júlio não íamos ter pra onde ir. Ela abriu a porta da casa dela pra gente, criou nós dois como se fosse sangue. Cresci chamando ela de tia, dividindo a mesa com eles, vivendo como parte daquela família.
O Júlio virou meu alicerce, meu porto seguro. Ele é meu irmão, meu protetor, mas também é braço direito do Escorpião, e isso fez com que eu crescesse sempre colada com eles. O Escorpião… bom, ele sempre foi o cara que eu admirei. Na minha cabeça, era tipo herói: frio, firme, não abaixa a cabeça pra ninguém. Só que enquanto todo mundo só via o patrão do morro, eu via o Gabriel que cresceu comigo, que um dia dividiu pão na mesa da minha tia.
Só que tem um detalhe que ninguém sabe: eu aprendi a esconder um sentimento que sempre foi só meu. Cresci amando um cara que nunca me olhou do jeito que eu olhava pra ele. Pro Escorpião, eu era só a irmãzinha do Júlio, a menininha da casa. Pra mim… ele sempre foi tudo.
E é aí que mora a minha fraqueza. Porque no meio de tanto fuzil, tanto sangue e tanta piranhä em volta dele, eu continuo sendo só a Bibi. A que ama em silêncio.
Agora já faz um ano que eu e o Júlio decidimos sair da casa do Escorpião. Não foi briga, não foi nada… foi só porque a gente queria o nosso canto. Júlio arrumou uma casinha simples, mas firme, bem perto da casa dele, e não deixa faltar nada pra mim. Ele faz de tudo pra eu ter conforto, e eu sei o quanto ele rala pra isso.
Tô no último ano da escola e, pra falar a verdade, só tô conseguindo terminar porque o Júlio nunca me deixou eu largar. Ele me leva e me busca quase todo dia. Quando ele não pode, quem aparece é o próprio Escorpião. Já me vi várias vezes entrando no carro dele, ouvindo as batidas do rádio chiando e os menor cumprimentando o patrão, enquanto eu ia em silêncio até a escola. Ninguém sabe, mas por dentro meu coração sempre dispara nessas horas. Viver entre o livro da escola e o barulho do fuzil é uma corda bamba. Mas eu sigo, porque eu sei que é isso que minha mãe ia querer: ver a filha dela formada, de cabeça erguida
E se tem uma coisa que eu aprendi nesse morro, é que amizade de verdade é rara. Eu só tenho uma pessoa que eu confio de olhos fechados: a Kelly. A gente estuda junto desde criança, cresceu colada, e ela mora na mesma rua da minha casa. Sempre foi minha confidente, a única que sabe das minhas dores, dos meus medos e… do que eu sinto pelo Escorpião.
As outras minas daqui, a maioria, só cola perto de mim por interesse. Ou querem chegar no Júlio, que é meu irmão, ou ficam dando voltas pra se aproximar do Escorpião. Eu vejo o jeito que elas falam, que elas se vestem, só pra chamar atenção dele. E eu fico quieta, guardando o que eu sinto comigo, porque sei que se eu deixar escapar, vão usar isso contra mim. Kelly não. Ela sempre esteve do meu lado, me ouvindo chorar, me ouvindo reclamar, me incentivando a ser forte. Sem ela, eu acho que já tinha desmoronado.
Na escola é sempre a mesma coisa: molecada zoando no corredor, professor cansado, livro aberto que ninguém presta atenção. Mas é ali que eu e a Kelly respiramos um pouco fora do peso do morro.
A gente sempre senta junto, lá no fundo da sala, caderno aberto e conversa baixa, só no cochicho.
— Tá viajando de novo, Bibi… — ela falou, cutucando meu braço. — Fala logo no que tu tá pensando.
Revirei os olhos, mordendo a tampa da caneta.
— Cê já sabe, Kelly… sempre a mesma coisa.
Ela riu baixinho, ajeitando o cabelo.
— Escorpião, né? Caralhø, amiga… tu não cansa não?
Soltei um suspiro pesado.
— Como é que eu vou cansar, Kelly? O cara cresceu comigo, mora do meu lado, me trata como irmãzinha… e eu fico aqui, guardando tudo engasgado.
Ela fechou o caderno e virou de frente pra mim, séria.
— E tu acha mesmo que é só tu que olha pra ele desse jeito? O morro inteiro sabe que ele é patrão, bonitão, cheio de mulher atrás. Mas nenhuma delas conhece ele como tu conhece.
Fiquei em silêncio, o coração acelerado só de ouvir aquilo. Kelly sempre teve esse dom de me fazer enxergar as coisas que eu tento esconder.
— Só que tu tem que ter cuidado, Bibi. — ela completou. — O mundo dele é bala, sangue e traição. Se tu for entrar de cabeça, não tem volta.
O sinal bateu, cortando o papo. Todo mundo levantando da carteira, barulho de mochila arrastando, e eu ali, parada, com as palavras dela martelando na minha mente. Kelly tinha razão. Mas quando se trata do Escorpião, razão é a última coisa que eu consigo ter.
— Bora, Bibi… teu irmão deve tá lá fora já. — ela falou, jogando a mochila nas costas.
Saímos juntas, descendo os degraus da escola. O sol de fim de tarde batia forte, iluminando a rua cheia de gente, barulho de carro passando e camelô gritando na calçada. Meu olhar foi direto pra esquina, procurando… não sei nem por quê. Mas eu sempre espero, no fundo, ver o Escorpião encostado no carro, baseado na boca, jeito marrento de quem não precisa falar nada pra impor respeito.
Só que não era ele. Era o Júlio, sentado na moto, boné na aba, braço apoiado no guidão. Ele levantou a mão quando me viu e abriu um sorriso rápido.
— Vambora, maninha. — gritou, chamando.
Kelly me cutucou de leve, percebendo meu silêncio. Eu respirei fundo e caminhei até ele, mas não consegui evitar aquele peso no peito. Tristeza boba, escondida, mas que sempre aparece quando não é o Escorpião que vem.
O Júlio é meu porto seguro, meu irmão, meu herói. Mas no fundo, eu queria que fosse outro homem me esperando ali. E isso é o tipo de coisa que eu nunca vou poder dizer em voz alta.
— Valeu pela companhia, Kelly. — falei, tentando disfarçar o nó na garganta.
Ela só sorriu, me dando um tchau.
Subi na garupa da moto, segurei firme na cintura do meu irmão e deixei o vento bater no rosto. Por fora eu era só mais uma menina voltando da escola. Por dentro… eu tava quebrada, porque até o simples ato de quem me busca no portão mexe comigo.
Continua.....
Deixem bilhetinhos 📚❤️