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4901 Words
Já passava da hora do almoço quando acordou de novo, o estômago roncando. Anne passou as mãos pelos cabelos despenteados e pulou da cama, começando uma caminhada sonolenta para baixo. Queria um bom café, ovos mexidos e torrada. Queria a voz de Charles ecoando pela casa enquanto fazia o café da manhã. Queria que pudesse haver um jeito... um jeito de simplesmente libertá-lo daquele frasco. Torná-lo físico não apenas uma hora e sim em todas as horas... queria os olhos negros sempre ali, o tempo todo.             A saudade apertava o coração quando levou o prato de comida e o café para a biblioteca, colocando tudo em cima da mesa e se sentando para abrir o laptop enquanto mastigava a torrada.             Anne continuou a pesquisa que os últimos acontecimentos a tinham obrigado a pausar. Ela comeu os ovos mexidos, bebeu o café, devorou as torradas. E não desgrudou mais os olhos do computador até às oito da noite, quando decidiu desistir das buscas que só lhe mandavam para becos sem saídas e ir tomar um banho, se preparar para dormir. A vista estava cansada quando se arrastou para cima, e se jogou no banho. Encheu a banheira; ficou nela por pelo menos duas horas, até que os dedos ficassem enrugados.             A cada minuto, mais e mais ansiosa. Pegou-se esfregando a nuca com as mãos espalmadas, viajando dentro dos toques que se recordava, viajando deliberadamente com um simples tom de voz que ecoava de repente e assoprava para longe todo seu equilíbrio. Quando saiu da banheira, a pressão estava até mais baixa. Puxou a toalha e andou para fora do banheiro respingando água no piso de madeira. Secou-se, jogou a toalha na cama que estava arrumada exatamente como havia deixado antes de Mary e Lucia dormirem nela.             Anne olhou para o óleo corporal que não usava a séculos jazendo no fundo do armário e o puxou, checando a validade. Tinha essência doce, mas suave, que ela gostava, só não tinha o hábito de usar. Mas já eram dez da noite e Anne resolveu passar aquele óleo pelo corpo inteiro para então vestir a calcinha de algodão branca e uma camisola de cetim da mesma cor, secando os cabelos. Rumou para a cozinha e fez um sanduiche natural. A comida estava acabando e teria que ir ao mercado logo mais. Esgotou com o suco de laranja que ainda restava no copo e jogou o guardanapo no lixo, ignorando a louça de xícaras e copos que se acumulava na pia, subiu de novo ao segundo andar.             O silêncio daquela casa era natural para ela. Gostava tanto dele. Estava prestes a subir o primeiro degrau do sótão quando aquele mesmo silêncio lhe lembrou de que não tinha alimentado os cães. Anne desceu correndo as escadas e vestiu a capa de chuva, pegando um balde grande de comida ela calçou as botas ao lado da porta e saiu da casa pisando nos cascalhos molhados. A chuva fina caía lá fora e sentiu o frio arrebatá-la. O corpo estava quente e de repente gelado. Apertou o botão verde. As portas do canil se abriram para os cães que imediatamente saíram correndo, fazendo um alvoroço em volta dela. Anne entrou lá e colocou comida em todas as dezoito baias, percebendo alguns cães começarem a comer enquanto os outros preferiam brincar na chuva. Checou se o aquecedor ainda estava ligado e decidiu deixá-los soltos. Se sentissem frio bastava se abrigarem no canil aquecido.             Voltou correndo para dentro e tirou as botas e a capa de chuva, subindo de novo para o segundo andar num passo ligeiro e ansioso até que os olhos estivessem encarando o frasco no criado-mudo do sótão. Anne andou até a cama, sentando nela, pegou o pequeno objeto. Com uma estranha sensação se apossando do peito, a morena abraçou o frasco e deitou de vez, afundando-se nas cobertas e travesseiros, fechou os olhos, sentindo o vidro contra os s***s até que a consciência se esvaísse e ela caísse no mundo dos sonhos onde Charles só viria as duas da manhã.             O sol banhava o campo de margaridas que se estendia infinitamente e Anne acordou nele como se tivesse esperado dentro de um vácuo por uma eternidade. Seu coração estava acelerado quando os pés pousaram no chão coberto por uma enorme toalha xadrez vermelha e branca. O vento fresco penetrando nos cabelos soltos, o sol batia contra a pele leitosa, aquecendo-a singelamente.             Havia uma centena de perguntas que levitavam em sua mente, em seu coração... mas havia também uma certeza que prevalecia diante de todas as dúvidas: Ele estava ali. Presente. Podia senti-lo chegando.             Naquele paraíso paralelo que era restrito aos dois, os olhos azuis se fecharam diante do calafrio que permeava sua espinha no segundo antes das mãos masculinas circundaram sua cintura e costas, num abraço esmagador. O coração bateu em desespero. Charles a levava a tantos extremos que tinha desistido de lutar. Ela se entregava a cada centelha da alma enjaulada daquele homem esperando um dia libertá-lo da mesma forma que ele a fizera sentir liberta. Livre. Completamente livre das correntes que lhe prendiam ao chão. Asas com um simples toque e lhe fazia voar com um beijo calmo.             O vento ainda batia em suas peles quando se separaram. Ele ficava trêmulo toda vez que a via, no momento em que simplesmente se materializava ali, e seus olhos se chocavam contra a figura delicada. Naquele segundo, sentia-se desesperado. O coração explodia, não conseguir conter a vontade de abraçá-la, sentir o cheiro que escapava de seus cabelos, de seus poros, o peso dos olhos azuis se arrastando minuciosamente sobre seu corpo e cravarem-se nos negros e cintilantes orbes que pareciam nunca cansados de fitá-la daquela maneira.             ― Nem acredito que está aqui... ― Confessou, parecendo um pouco ansioso.             ― Você criou um cenário perfeito... ― Anne respondeu. O rosto voltando a afundar no peitoral masculino.             ― Não fui eu que criei. ― O ruivo deslizou as mãos até que estivesse abraçando os ombros delicados, vendo-a se afastar levemente para encará-lo mais uma vez.             ― Está dizendo que fui eu que criei tudo isso?             ― Foi você. ― Um sorriso leve se desenhou nos lábios. ― Está surpresa?             ― Sim, pra ser sincera..., mas estou feliz, porque... ― Ali a morena hesitou e foi rapidamente noticiada.             ― Por quê? ― Insistiu. Os olhos fincados nos dela.             ― Porque... assim posso ver perfeitamente como a luz do sol bate na sua pele... como faz seus olhos ficarem ainda mais bonitos... ― Ela teve que rir do rosto masculino ficando vermelho. ― Tímido ao sol... ― Sussurrou antes de começar a gargalhar da cara que o fantasma fez.             ― Não estou tímido coisa nenhuma...             ― Você está vermelho, Charlie.             ― Eu posso estar vermelho, mas isso não quer dizer que-             ― Não tente desconversar. ― Anne o interrompeu ainda rindo e nem percebeu quando o homem lhe passou uma rasteira, segurando sua cintura e a levando para o chão num piscar de olhos.             ― Não estou desconversando. ― Ele murmurou, já sobre ela como um verdadeiro lobo.             A luz do sol banhando a pele pálida como se Anne fosse naturalmente dourada. Os olhos azuis refletiam aquela claridade fortemente, cintilando em sua direção enquanto os lábios rosados permaneciam protegidos pela sombra de Charles.             Aquele descompasso terrível que o circundava quando ela estava presente... Era a certeza que a cravava cada vez mais fundo em sua alma.             ― Por que me pediu pra dormir cedo ontem? ― A voz feminina soou aveludada e tranquila. Ela não se assustava mais. Parecia confiar mais nele do que em si mesma. Era como se bastasse olhar nos olhos dela para saber que Anne o amava. Cegamente. Intensamente. Mesmo que tudo aquilo fosse um sonho, suas consciências estavam despertas para uma única e irrefutável verdade.             O sentimento que ambos nutriam era avassalador, quase palpável. Naquela proximidade e inconscientemente, era como se um segurasse o coração do outro nas mãos. Como se cada fração de milésimo de segundo contasse. Ali, entre os dois, toda respiração significava alguma coisa. Cada semblante, pensamento prolongado, cada olhar que parecia dizer muito mais do que mil horas de palavras. Frases jogadas ao vento quando se olhava alguém daquela maneira e era olhado de volta, tão intensamente recíproco que chegava a te arrepiar por completo, tão preso no momento que parecia impensável sequer mover um músculo, mas Charles apoiou o peso do corpo em um dos braços para pousar a mão livre na lateral do rosto pequeno, afagando-a amorosamente.             Ele a olhava como talvez nunca tivesse olhado antes: Por tanto tempo em silêncio, apenas atentando-se aos pequenos e imperceptíveis detalhes, como a minúscula pinta que ela tinha em cima do fim da sobrancelha esquerda ou as pequenas rachaduras no lábio inferior cujo insistia em umedecer com a língua, aveludada, quente, capaz de varrer para longe seu medo, a solidão, a infinidade de perguntas. Charles não pensava em sua própria existência quando estava perto dela. Ele pensava apenas em existir para estar ali. Mais nada. Tudo que ansiava era poder respirar o mesmo ar, compartilhar aquela vida tão restrita.             Pela primeira vez desde que se lembrava existir... ela era a primeira pessoa capaz de fazer seu coração bater daquele jeito. A única que incendiava sua alma, que o botava de joelhos com um simples olhar. Era ela.             E Anne estava ali, deitada naquela enorme toalha xadrez com os olhos cravados nos dele enquanto cada fibra de seu corpo parecia se liquefazer. O coração desenfreado, a alma dançando e não sabia como parar. Nunca havia sido contemplada daquele jeito por ninguém. Nenhum olhar fora capaz de penetrar tão profundamente dentro de seu espirito ao ponto de simplesmente paralisá-la.             Uma quieta, mas turbulenta companhia. Era a que queria manter até o fim da vida. Sem sequer uma palavra, ela entendia cada intenção, quase como se pudesse de fato escutar seus pensamentos e anseios mais secretos, e haviam as vezes que ressoavam, mas outras em que se tornavam berros ensurdecedores e vibrantes como um mantra.             E então, existiam os momentos como aquele... onde levitava em um paraíso paralelo, próxima o bastante para sentir sua respiração.             Não precisava ouvi-lo para saber a resposta de sua pergunta. Bastava olhá-lo e Anne sabia... sabia que tudo que ele queria era a mesma coisa que ela:                                                                                   Mais Tempo.             Mais tempo para abraços, para beijos, palavras e olhares como aqueles.             ― Não consigo mais imaginar minha vida... ― A voz de Charles soou baixa, rouca. ― ..., sem você... ― Cheia de um sentimento que fez os olhos de Anne arderem. Ela levantou os braços e circundou o pescoço masculino. ― Você é a primeira imagem que surge na minha cabeça..., eu não sei ao certo o que está acontecendo... nem o que vai acontecer... eu só sei que não quero ficar longe, eu... não...eu não acho que suportaria..., ficar tão longe de você... ― Mas Anne fez as próximas palavras se perderem quando o puxou levemente, colando a boca dele na sua com delicadeza. Charles viu os olhos azuis se fecharem lentamente, em êxtase, antes de fazer o mesmo.             E Anne o beijou, trazendo um efeito calmante que o anestesiou e o incendiou ao mesmo tempo. Quando os lábios femininos se entreabriram, ele deixou que um pouco do peso caísse sobre ela e colou seus quadris, abaixando-se levemente conforme Anne deitava as costas no chão mais uma vez. A língua feminina deslizou por seus lábios antes de lhe adentrar a boca, fazendo uma súbita e persistente falta de ar acometer o homem.             Charles não sabia o que lhe deixava mais maluco: os beijos desesperados ou os calmos como aquele, que amortecia seu corpo inteiro e implantava nele o anseio de percorrer o corpo de Anne com a boca e beijar cada milímetro de sua pele alva, sedosa. Branca como leite.             Eles se separaram levemente, os olhos se abrindo devagar, com a visão ainda embaçada, Charles e Anne se encararam.             ― O que importa... não é a única hora que você tem por noite, Charlie... O que importa é que você as terá por todas as noites..., até eu morrer... ― Foi seu sussurro. ― Nós temos esse lugar e isso nos dá duas horas... uma é física e a outra não, mas ambas são reais... ambas são feitas para mim e pra você... não podemos parar o tempo... mas podemos... fazer... cada segundo valer a pena... ― Anne o beijou novamente, ao fim daquela frase. Um beijo breve e quente, mas firme como um ponto final.             Charles sorriu em meio ao beijo singelo e saiu de cima de Anne para deitar ao seu lado.             ― Você tem razão... ― Murmurou, tentando apagar o fato de que enquanto falava, o tempo estava escorrendo como areia entre os dedos. ― Então vamos aproveitar... vou tentar não pensar que daqui a pouco vai estar fora do meu alcance... ― Ele se sentou, sendo seguido por Anne que nutria um olhar caloroso e lábios inchados.             ― Pense que estou ao seu alcance agora... E você está ao meu.             Acometida pela súbita sensação de esmagamento e queda, Anne despertou para a realidade quase ao mesmo tempo em que Charles surgia em frente a cama, adquirindo peso e sustentando um meio sorriso nos lábios.             ― Eu tive uma ideia... ― O peito arfava, o pescoço queimando gradualmente até a ponta das orelhas, mas ignorando tudo aquilo, a morena se levantou, agarrando a mão do ruivo. ― Vem!             ― Do que está falando...? ― Sendo guiado escadaria abaixo, o fantasma sentia os dedos finos abraçados aos seus, puxando-o para o quarto da escritora e chegando lá, sem nenhuma hesitação, Anne tirou a camisola.             Charles ficou petrificado. Ele honestamente ficou sem palavras. De costas para ele, a mulher exibia as curvas esculturais andando em direção ao armário.             A falta de ar o atingiu em cheio, como se estivesse sendo subitamente compactado por duas paredes invisíveis.             ― Vamos sair.             ― Sair? ― Os olhos negros se arregalaram conforme Anne vestia a calça jeans. ― Como assim sair?             ― Existe um supermercado vinte e quatro horas há vinte e cinco minutos daqui. ― Ela puxou a blusa da gaveta e Charlie ainda tentava encontrar algum sentido em suas intenções.             ― Supermercado vinte e quatro horas...             ― Vamos, vamos! ― E novamente, se viu ali. A mão sendo agarrada por dedos frágeis, sendo arrastado para o piso térreo da casa.             ― Porque quer sair?             ― Você nunca quis conhecer o mundo? Comer coisas novas? Experimentar bebidas e.... ― A morena parou, subitamento, no oitavo degrau. ― Não quer ir?             ― Não, eu... ― Por um momento, não conseguiu negar. Ele não queria sair. Ele não fazia parte daquele mundo. Do mundo onde supermercados existiam. ― Eu já tentei sair daqui, mas...             ― Mas sempre esteve sozinho. Eu sei. ― O sorriso o aqueceu, e a mão forte apertou a de Walch. ― Não precisa ter medo. Quando provar um verdadeiro hambúrguer, não vai se arrepender.             ― Estamos saindo para comer hambúrgueres?             ― Estamos saindo para viver um pouco fora da caixa, Charlie, algo que você não faz há um bom tempo! ― Então ela voltou a descer as escadas. Empolgada, puxando sua mão, em três minutos estavam dentro do carro, com a chave sendo girada na ignição. ― Preparado?             ― Não exatamente. ― Não estava. Nem um pouco. Já tinha se materializado em muitos lugares, mas o medo secreto da humanidade o havia impedido de continuar. Charlie passou muitos anos se contentando apenas com aquela casa, e mais nada, embora pudesse muito bem conhecer o mundo inteiro, ainda que tivesse apenas uma hora por noite.             Enquanto o portão abria, Anne ligou o som.             O som explodiu no meio de uma música que Walch não se deu ao trabalho de manter baixa. “Coming Down” da cantora Halsey.             Era o novo álbum da garota, muito talentosa. Foi estranho. Por que de repente, a canção pareceu ter sido feita para um momento que sequer havia acontecido ainda. Aquele momento. E a morena não pôde evitar o sorriso e a felicidade espontânea surgindo na alma, fazendo uma quase incontrolável vontade de pular assolá-la por alguns segundos conforme Charles a encarava com orbes assustados.             O fantasma deu por si ouvindo a música. Não podia fazê-lo sempre. Na verdade... Ele nunca quis ouvir.             Porque se o agradava, servia apenas para lembrar-lhe de que era uma assombração. Uma criatura aparte daquele universo.             Levitando entre o real e o incerto.             E justo ali, dentro de um carro rumando pela escuridão que os faróis amarelos furavam na estrada, Charles encarou o perfil animado da mulher ao seu lado e ela movia a boca num cantarolar mudo e contagiante que fez seu estômago girar pelo menos uma centena de vezes.             ― Lick it off my lips like you needed me...             Não havia escapatória.             Preso em uma armadilha invisível. A boca de Anne Walch tornava-se, tão facilmente, um labirinto.             ― Would you sit me on a couch… With your fingers in my mouth… Silencioso, sem interferir, ele apenas a observou como um psicopata faria. Analisando cada traço, cada expressão. A respiração calma que ia e vinha, o conjunto perfeito de cabelos escuros e bochechas rosadas. ― You look so cool when you’re reading me… A morena o encarou, de repente, e foi rápida em voltar os orbes turquesas para estrada, mas Charles soube que era como se ela cantasse para ele. Como se aquelas palavras fossem um código secreto e sua obrigação fosse apenas compreender. Era tão simples. E tão cruamente excitante que chegava a doer. ― Let’s cause a little trouble! Anne sorriu, os cinquenta quilômetros por hora na estrada recém-arrumada m*l podiam ser sentidos. Tudo que ela sentia era a sensação anestésica de liberdade. De que poderia fazer qualquer coisa simplesmente porque estavam juntos. Porque ele estava ali. ― Você já saiu antes? ― De repente, a voz feminina surgia um pouco mais alta que a música, enquanto os dedos ágeis abaixavam o volume. ― Me dei conta de que não te perguntei isso... ― Então eu pareço legal quando estou te observando? ― No fim, tinha sido o melhor jeito de mudar de assunto. A morena caiu na risada, quebrando o contato visual pela vergonha fazendo o pescoço queimar. ― Sim... Como um caçador. Charles arregalou os olhos. Havia um calor absurdo subindo pelo corpo. Ele sabia que Anne não o encarava pelo único e genuíno motivo de que não tinha coragem para fazê-lo. ― Não devia dizer coisas assim para um fantasma impulsivo... ― O tom nitidamente transpareceu perigo. ― Viu? ― Um sussurro acabou sendo o bastante para o braço masculino se erguer e abraçar a nuca alva. ― Viu o que? ― Você... ― Walch engoliu em seco. O ruivo a encarava diretamente. Podia sentir o peso de seus olhos. O peso das palavras que ele não dizia. ― Eu...? ― Mas Charles a provocava descaradamente e a mão grande deslizando devagar pela pele de sua nuca em direção às madeixas soltas e o fato talvez a estimulasse mais do que qualquer coisa. Qualquer coisa que não fosse o par de olhos negros caindo sobre si como um apocalipse. ― Charles..., vai me fazer bater o carro. ― A caminhonete avançou para fora da estrada de terra, adentrando a entrada para o asfalto. Nenhum carro além do 4x4 vermelho cereja poderia ser visto correndo pela estrada. ― Eu só quero saber o que você ia falar. ― A ironia, palpável, a fez encará-lo rapidamente. Anne respirou profundamente, cheia de uma súbita coragem e sussurrou: ― Você... está me provocando. ― Não posso negar isso... E a mulher dirigindo suava frio, como um porco prestes a ser abatido, conforme os dedos longos atingiam seu couro cabeludo em um impacto doce, mas tão potente que Anne tirou o pé do acelerador, deixando que a segunda marcha mantivesse ao menos alguma velocidade naquela reta. ― Eu só perguntei se já tinha saído, e olhe onde chegamos... ― A morena mordeu os lábios, pisando no acelerador. ― Eu já fui para muitos lugares. Mas sempre retorno para a casa, no fim. ― Um pouco seco, o ruivo afastou a mão pesada e bastou desejar para o vidro do carro descesse. O vento frio varreu o cheiro forte de lavanda. ― Sozinho? ― Anne teve medo de perguntar. ― O que você acha? ― Por um momento, os orbes negros recaíram para o perfil feminino. Suas sobrancelhas estavam franzidas para baixo. ― Claro que sim... ― Então este é oficialmente seu primeiro encontro? ― Encontro...? ― Sabe, quando duas pessoas que... gostam uma da outra. ― Um pouco constrangida, a morena retribuiu o olhar rapidamente. ― Quando elas decidem sair... Chamamos de encontro. ― Entendi... ― Então...? ― Acha mesmo que eu já tive outros encontros, Anne...? ― Charles olhou para ela de novo, dessa vez, uma expressão impaciente arrancou risadas dela. ― Olhe pra mim, eu sempre fui o mo- ― Mas as coisas mudaram agora. ― A interrupção, proposital, não permitiu que ele finalizasse a sentença. ― Você é algo diferente agora... ― Algo diferente... ― É, Charlie. ― A mão bateu na seta e a caminhonete passou para a outra pista com um leve girar do volante. ― Você não é mais a assombração na casa. Você mora nela. E como qualquer outro morador, tem o direito de fazer compras com- ― Com minha esposa. Às três da manhã. ― O coração feminino explodiu quando ouviu a voz rouca. Ela o encarou, deixando uma leve freada fazer os pneus cantarem. ― Como verdadeiros animais noturnos. ― A eletricidade de mil raios parecia percorrê-la quando sentiu a mão masculina espalmar-se em sua coxa. Com o carro parado em frente a cancela de entrada do supermercado, Walch não o encarou. Ela abriu o próprio vidro e esticou o braço, trêmulo, em direção ao botão, apertando-o e esperando que a máquina cuspisse o ticket. ― Eu posso me acostumar com isso... ― Charles sussurrou, observando a mulher colocar o pedaço de papel no painel. A cancela se abriu e engatando a primeira marcha, Anne acelerou para dentro do estacionamento. ― Te ouvindo cantarolar, enquanto tento me controlar para não avançar e beijar você... ― Mas, não... ― A respiração foi profunda, rápida. Atônita. ― Não precisa se controlar. E exatamente naquele segundo, o pé pisou no freio e a caminhonete parou na vaga. Ao mesmo tempo em que Charles avançou em sua direção. Suas bocas colidiram como um acidente de trem. A explosão foi imensa, imediata, transformou o interior da cabine em um forno em menos de um segundo. Os dentes ferozes morderam com violência e o gemido baixo escapando pela garganta feminina fez as mãos fortes agarrarem os braços alvos apenas para trazê-la para mais perto. De repente, Anne se viu cozinhando de dentro para fora, com o corpo latejando da cabeça aos pés. A boca do ruivo deslizava sobre seu maxilar, distribuindo beijos, mordidas, lambidas que levantavam cada pelo, protuberava cada poro. Incendiava seu espirito. Era inapagável. ― Espera. ― Mas a palavra simplesmente escapou pela boca ao atingir o vale dos s***s fartos. A morena ofegava, o peito ia e vinha em cima de sua língua. Charles se ergueu um pouco, o suficiente para presenciar as pálpebras de cílios longos se abrirem vagarosamente. ― Não... Não, Anne... O coração já disparado falhou uma batida imprestável ao ver a expressão no rosto dela mudar completamente. Walch se recompôs, ou pelo menos tentou. ― Desculpe... ― O ruivo sussurrou. ― Não acho que esse seja... ― .... Você tem toda razão. Não é o melhor lugar... desculpe por provocá-lo... ― Ela tremia violentamente. Sequer podia encará-lo. A mão esquerda abraçou a maçaneta da porta. ― Vamos? ― Anne. ― E quando deu por si, agarrava o punho esguio com alguma brutalidade. O tom saíra urgente. Quase desesperado. ― Espera... ― Mas Charles não conseguiu controlar a própria força, puxando-a para si, trazendo a boca carnuda para perto de novo e sem perguntar, sem avisos. Ele simplesmente a beijou de novo. Dessa vez tão calmo. Nocauteou a morena com um único golpe, e ela foi incapaz de impedir a si mesma quando enterrou as mãos nos cabelos ruivos. Se apoiou no peito forte e deixou que o calor de um fantasma a levasse para outra realidade. Os dois minutos seguintes deixaram bem claro para Charles que se ele não parasse naquele exato momento, as coisas iam sair do controle. Mais do que já tinham saído. ― Charlie... ― E para seu eterno alívio, a morena o parou antes. Ofegante. Os lábios inchados e vermelhos. ― Acho que- ― Acho que esse carro é maligno e está nos enlouquecendo. ― O ruivo abriu a porta, precisava de um banho gelado, mas em vez disso, tudo que fez foi pular para fora do carro e encará-la com um meio sorriso. Os cabelos que Anne tinha descabelado fizeram a morena rir enquanto ela fazia o mesmo, fechando a porta e acionando o alarme. ― O carro né... entendi... não é você, não... ― Andando até ele, Walch o viu levantar levemente o braço, chamando-a para perto e quase sem poder conter o sorriso, ela simplesmente o fez, deixando que o homem a abraçasse para iniciarem uma caminhada pelo estacionamento. ―  Eu? ― Charles a encarou e foi o que precisava para a escritora rir, quase descontroladamente, do fantasma descabelado. ― O que? ― Desculpe... ― Ela tentou se recompor, encarando-o mais uma vez. Um sorriso aberto, as bochechas rosadas. E o olhar capaz de derretê-lo por completo. ― Eu baguncei seus cabelos...             O homem parou de andar, encarando-a fixamente.             ― Acho que deveria fazer alguma coisa sobre isso... ― E abaixando apenas o suficiente para que ficasse ao alcance fácil das mãos pequenas, Charles a viu esticar os dedos em direção ao seu rosto.             Os cabelos ruivos talvez passassem dos meios das costas. Lisos, sempre soltos e muito bem penteados. Anne enterrou as mãos nos fios cor de ferrugem e sentiu a textura sedosa dos fios. Endireitando-os gentilmente enquanto os orbes negros, fixos aos seus, faziam seu coração bater descompassado. m*l podia respirar.             ― Acho que a culpa não era mesmo do carro... ― Charles murmurou, rouco como um bêbado, aproximando-se quase na mesma velocidade que os dedos femininos atingiam sua nuca e começavam a puxá-lo para mais perto. Não houve hesitação de nenhum dos lados, e quando percebeu, Anne era tirada do chão como uma boneca, presa em um abraço delicioso.             Eles se separaram brevemente, a procura de ar.             ― Acho que não vamos conseguir entrar nesse supermercado hoje... ― Disse, envergonhada, mas divertidamente.             ― Quem disse isso falou uma inverdade... ― E iniciando um súbito e surpreendente aperto, Charles a pegou no colo, saindo em disparada pelo estacionamento.             ― Charles! ― A morena tinha começado a gargalhar descontroladamente. ― Meu Deus, Charlie, para, para!             Ele parou em frente a porta, que se abriu mediante o reconhecimento suas presenças e a escritora pegou-se agarrada ao pescoço do homem, o rosto colado ao peitoral forte.             ― E aqui estamos... O grande supermercado.             ― Hambúrgueres! ― Anne quase berrou, como uma adolescente empolgada, apontando para o guichê de fast-food. ― Vamos, vamos! ― Balançando as pernas animadamente, ela o fez rir. Um riso grave e baixo que fez o coração falhar uma batida.             Amava de verdade aquela risada.             ― Se não der tempo de voltar para casa, vai ficar bem?             ― Sim. ― O homem a colocou no chão, sendo guiado até a comida. Não havia absolutamente ninguém além deles na pequena praça de alimentação. ― Não se preocupe com isso, vamos aproveitar, ali, viu? ― O dedo indicador de Walch guiou o par de olhos negros até o relógio digital grudado na parede do fast-food. ― Temos mais vinte e oito minutos. Rápido!             E em cinco minutos, eles andavam pelo estacionamento conforme a mulher desembalava o lanche dizendo:             ― Quando eu era criança, minha mãe me comprava esses sanduiches quase como moeda de troca. Enquanto todos os meus irmãos odiavam, eu limparia a casa inteira apenas por uma mordida.             ― Irmãos...?             ― Sim... Além de Eliza, eu tenho mais irmãos. Jordan e Samantha. Mas... eu não falo com eles.             ― Por que? ― Acompanhando-a, Charles observou a escritora se sentar no meio fio, podiam ver a caminhonete vermelho cereja de longe.             ― Porque somos pessoas diferentes. E eles acham minha maneira de viver estranha demais para manter algum contato. ― Com extrema frieza e talvez até sendo calculista, Anne deu de ombros, oferecendo-lhe o hambúrguer. ― Aqui, experimenta.             ― E seus pais... sua mãe?             ― Minha mãe morreu. Ela teve um aneurisma cerebral a cinco anos atrás dentro do carro, no caminho da casa da Eliza. E eu nunca conheci meu pai. Nenhum dos meus irmãos conheceu. Ela nunca quis contar quem era o homem que a engravidara tantas vezes. Agora pare de fugir do assunto e coma. Não vai se arrepender.             Charles pegou o sanduiche com uma vontade surpreendente de abraçá-la. Sem dizer nada. Mas não o fez. Ele a encarou com orbes cuidadosos. O coração palpitando forte quando abriu a boca e mordeu um pedaço do hambúrguer, mastigando conforme uma explosão de sabores se espalhava pela boca. Os orbes negros se arregalaram perante ao sorriso crescente de Walch.             ― Viiiu! Eu te disse!
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