Marília Narrando
Acordei cedo, como sempre. O sol nem tinha nascido direito, mas a claridade alaranjada já invadia o pequeno cômodo onde eu e Ludmila morávamos.Na parte de baixo a sala e a cozinha na parte de cima tem um quarto e um banheiro. Ela ainda dormia, encolhida na cama, com a respiração tranquila. Era nesses momentos que eu sentia uma paz estranha, porque sabia que o mundo lá fora não era tão tranquilo quanto parecia do lado de dentro.
Estava na hora de sair. A grana estava curta, como sempre, e eu precisava encontrar um emprego antes que a situação ficasse ainda pior. Já fazia semanas que eu batia de porta em porta, entregando currículos e oferecendo meus serviços, mas a resposta era sempre a mesma: "Já temos alguém".
Vesti minha melhor roupa, uma calça jeans surrada e uma blusa simples, mas limpa. O cabelo preso num coque improvisado, tentando parecer apresentável. Antes de sair, fiz um café rápido, deixei um bilhete para Ludmila dizendo que voltava logo e desci o morro com o coração apertado.
A comunidade já estava acordada. O som das motos subindo e descendo as vielas era constante, assim como as conversas abafadas e as risadas nas esquinas. No meio de tudo isso, encontrei Luís, encostado no muro de uma das casas, com um cigarro na mão e aquele olhar que parecia ver além mexia comigo.
Luiz — Vai pra onde tão cedo, dona Marília? — ele perguntou, com a voz baixa, mas firme.
Eu parei, O incrível é que ele sempre estava por perto, como se ele me cercasse. Luís tinha essa presença que intimidava, mas não de um jeito r**m. Era como se ele carregasse uma autoridade natural.
— Atrás de trabalho, né? — respondi, tentando soar casual. — Preciso sustentar minha filha.
Ele soltou a fumaça do baseado e me olhou como se analisasse cada palavra.
Luiz — Tá difícil, né? Aqui no morro, quem não tem sorte, tem que ter jeito. – Eu não sabia bem o que ele queria dizer, mas balancei a cabeça em concordância.
— Trabalho honesto sempre é difícil, mas não vou desistir.Luís deu um meio sorriso, inclinando a cabeça para o lado.
Luiz — Gosto disso em você. Tem força. Mas, se precisar de ajuda... é só falar.
Aquelas palavras ficaram ecoando na minha mente enquanto eu seguia meu caminho. Luís tinha algo de enigmático, uma mistura de proteção e perigo que me deixava desconfortável. Eu não sabia exatamente de onde vinha o respeito que ele tirava das pessoas , mas era evidente que ele não era como os outros.
Hoje não quis fazer como ontem que passei o dia andando, entregando currículos em mercados, lojas pequenas e até casas que pareciam precisar de uma faxineira. Entreguei dois na padaria aqui da comunidade do Formiga e voltei para casa com os pés doendo, mas a sensação de dever cumprido.
Sem olhar para trás, terminei meu caminho, entrei em casa e coloquei as sacolas na mesa. Comecei a preparar o café da manhã para Ludmila, que tomaria antes de ir para a escola. Enquanto cozinhava, ouvi o som dela se mexendo no quarto, se organizando para sair. Isso me arrancou um sorriso silencioso, um daqueles pequenos momentos que aquecem o coração.
Eu, porém, não tinha muito apetite. Tomei apenas um café preto, deixando tudo pronto para ela. Abri todas as janelas, deixando o sol inundar o pequeno espaço. A luz e o calor traziam uma sensação de renovação, ainda que breve.
Depois de conferir que tudo estava no lugar, olhei para a cadeira na varanda, minha companheira das manhãs. Coloquei mais dois dedos de café na xícara, saí e sentei ali, respirando fundo o ar fresco do início do dia.
Sem muito o que fazer perdidos no meu pensamento estava sentada na pequena varanda de casa, observando a rua movimentada lá embaixo. As crianças correm descalças, enquanto os adultos cuidam de suas rotinas. Ao avistar Ludmila passando apressada, carregando a mochila como se estivesse fugindo de algo, nem hesitei. Já levantei de orelha em pé.
— Ludmila, para aí! — gritou, com a voz firme..... – Ela parou, revirando os olhos antes de se virar lentamente.
Ludmila — Que foi agora, Marília? Tô com pressa.
— me respeita Ludmila que eu sou a sua mãe. – Falo nervosa
Olhei para ela, desapontada, sem acreditar que só tem 10 anos e já tenta me tratar como se eu fosse irmã dela.
— Com pressa de quê? — ela cruzou os braços, descendo os degraus rapidamente. — Não me diga que tá indo matar aula de novo. — ela tenta manter uma distância e eu acelero os passos.
Ludmila — E se eu tiver? — toda desaforada ergueu o queixo, desafiadora. — Ninguém manda em mim.
— Ah, é? E quem foi que disse isso? — parei na frente dela, impedindo-a de continuar andando. — Ludmila, você acha que eu não sei o que acontece quando você resolve "andar por aí"? Eu já tive a sua idade mocinha, então não tenta me passar a perna.
Respirei fundo, segurei firme no braço dela e, com a outra mão, dei um tapa em sua boca, sem dó, até sentir meus dedos queimarem. Ela me olhou incrédula, mas eu não podia deixar que ela crescesse desse jeito, desrespeitando e passando por cima de mim. Ela sabe que, comigo, não tem essa.
Ludmila — Eu só quero um tempo pra mim, tá? — ela bufou. — Aquela escola é uma prisão. Não tem nada lá que vá mudar minha vida. – aí nesse momento eu respiro fundo olho para o céu e pergunta para Deus aonde foi que eu errei.
— Não é só sobre a escola! — levei o tom de voz, mas logo respirou fundo, tentando se controlar. Odeio corrigir gritando. — É sobre o que acontece aqui fora. Você anda com quem não presta, se mete em encrenca, e depois eu que tenho que resolver!
Ludmila — Você não entende! — ela retrucou firme , os olhos brilhando de raiva. — Todo mundo aqui tá preso a alguma coisa. Eu só quero me sentir livre, nem que seja por umas horas.
— Livre? — sorri sem graça. — Você chama isso de liberdade? Ficar pelas ruas, correndo risco, enquanto poderia estar construindo um futuro? Ludmila, eu me preocupo com você! Somos só nós duas filha. – o jeito que ela olha com desprezo parte o meu coração.
Ludmila — Eu não pedi pra você se preocupar, tá bom? — Ludmila deu um passo para trás. — E se eu me meter em problema, é problema meu!
— Não é só seu, Ludmila! — Me aproximo dela de novo, apontando o dedo no rosto dela. — A sua vida depende da minha também. Você acha que eu vou ficar aqui, parada, vendo você se destruir?
Ludmila abaixou a cabeça por um momento, mas logo levantou o olhar.
Ludmila — Eu só queria que você parasse de me cobrar tanto... – o olhar triste dela me fez entender, que assim como eu ela está tentando se adaptar.
— E eu só queria que você parasse de me dar motivo pra cobrar! — falo suspirando , exasperada e cansada dessa situação. — Olha, eu sei que a vida aqui é difícil. Sei que você se sente presa, mas fugir não vai te ajudar. Você é inteligente, Ludmila. Tem potencial. Mas precisa acreditar nisso.... Ela permaneceu em silêncio, mordendo o lábio inferior.
Ludmila — Só mais um dia — disse baixinho. — Um dia longe de tudo. É pedir muito? – tentando não perder a paciência com ela, eu tento controlar a minha respiração.
— Não é sobre um dia, Ludmila. É sobre o que você faz com esses dias. — coloquei a mão no ombro dela, com o tom mais suave. — Eu só quero te ver bem. Ela desviou o olhar, mas não afastou a minha mão.
Ludmila — Tá bom. Eu vou pra escola.
— Assim que se fala. — Abrir um sorriso pequeno, mas sincero. — Vai lá. E, qualquer coisa, eu tô aqui. Sempre.
Ela sendo ela, deu um breve aceno, virou-se e seguiu em direção à escola. Fiquei observando até que ela desaparecesse entre as vielas, com o coração apertado, mas esperançoso.
Aproveitei para dar aquela ajeitada em tudo: lavei algumas roupas minhas e de Ludmila, limpei a casa e preparei o almoço. Subi para tomar um banho e, quando voltei, Ludmila estava jogada no sofá, mexendo no celular.
— Como foi na escola? — pergunto, largando minha bolsa sobre a mesa.
Ludmila — Normal. — Ela deu de ombros sem tirar os olhos da tela.
Suspirei. Era difícil alcançá-la ultimamente, como se ela estivesse construindo um muro entre nós. Mas eu não a culpava. A adolescência já era complicada por si só, e aqui no Morro, as coisas só ficavam mais difíceis.....