Capítulo 9

1608 Words
Os dias pareciam se arrastar, como se algo estivesse sendo construído no silêncio entre os olhares. Alicia e Rafael não se tocavam mais — e ainda assim, cada segundo era como se estivessem colados um no outro. Mas ao invés de explosões, agora era o jogo da espera, da observação… do controle. Na cantina, Alicia sentou com Mel, Guilherme, Lucas e Júlia. Riam alto, compartilhando histórias da infância, dramas de faculdade e planos para o futuro. Lucas era naturalmente carismático e gentil, mas todos começavam a notar que Alicia, embora risse com ele, lançava olhares perdidos quando ninguém via. Guilherme percebeu isso. — Tá distraída, garota? — ele perguntou. — Só pensando nos artigos de penal… — ela mentiu. — Claro. “Artigos de penal” com olhos azuis, barba por fazer e terno italiano — sussurrou Mel, e todos riram. Enquanto isso, Rafael conversava com outro professor no corredor, mas a atenção dele estava toda naquela mesa barulhenta. Ele observava Alicia como um caçador que, por algum motivo, decidiu não atacar… ainda. O sorriso dela quando mexia no cabelo, o jeito como ela encostava o queixo na mão e ouvia os outros. Lucas a fazia rir. E isso, silenciosamente, estava destruindo Rafael por dentro. O que ninguém sabia é que Rafael estava tentando se reconstruir com muito esforço. Visitava o pai diariamente após as aulas. Sr. Antonio, agora nos estágios médios do Alzheimer, m*l reconhecia o próprio filho, mas sempre sorria quando Rafael chegava com café e jornal. Era nesses momentos de silêncio entre os dois que Rafael se lembrava de quem queria ser… e de como Alicia estava, perigosamente, interferindo nisso tudo. Numa tarde qualquer, Guilherme convidou a galera para um karaokê universitário. Alicia, sem pensar duas vezes, aceitou. Ela estava cansada da tensão. Precisava sorrir sem segunda intenção. Lucas foi também, e durante a noite, ao vê-la cantar desafinada mas rindo como criança, ele disse com doçura: — Você tem uma risada que alivia o mundo. Ela agradeceu, encabulada. E naquele momento, sentiu culpa. Porque era Rafael quem ela queria ouvir dizer isso. E ele nunca diria. Na aula seguinte, Rafael começou a explorar temas sobre ética e poder, provocando discussões acaloradas. — Até que ponto um profissional pode se envolver emocionalmente com um cliente? Ou com um aluno? O silêncio caiu como um raio. Alicia cruzou os braços e encarou-o. — Depende. Se for recíproco, verdadeiro… e se houver respeito, não seria antiético. O problema é usar o poder como desculpa pra esconder covardia. Os olhos de Rafael cravaram nos dela. — E quando a verdade machuca mais que a mentira? Todos ficaram em silêncio. Mas Mel arregalou os olhos. — Que tensão foi essa? Pareceu briga de ex com indireta. No fim da aula, Rafael ficou na sala organizando papéis. Os alunos já tinham saído, menos Alicia, que esqueceu um caderno de propósito. Quando voltou, os dois se encontraram a sós pela primeira vez desde o beijo. — O que você quer de mim, Alicia? — ele perguntou, sem olhar. Ela segurou o caderno e respondeu com voz firme: — Quero que pare de fingir que não sente nada. Ele se aproximou lentamente. O ar entre eles ficou pesado. — E se eu sentir demais? A tensão se instalou. Ele segurou o caderno que ela ainda apertava contra o peito. As mãos quase se tocaram. Os olhos se encontraram. Mas antes de qualquer toque, Alicia recuou. — Então sinta. Mas seja homem o bastante pra não fugir depois. Naquela noite, Rafael estava sozinho em casa, e pela primeira vez, não se tocou pensando nela. Só ficou olhando a foto da mãe, do pai jovem, e de si mesmo ainda criança. Perguntava-se o que ela acharia dele agora. E se algum dia, Alicia descobriria tudo o que ele escondia — inclusive o motivo pelo qual ele se afastava tanto. Inclusive a aluna do passado. O sangue. A carta. A culpa. Enquanto isso, Alicia colocava a irmãzinha pra dormir. Nina era doce, com olhos castanhos e sardinhas como as dela. — Mana, você tá triste? — perguntou baixinho. — Não, bobinha… Só com saudade do papai. — Eu também. Mas eu gosto quando você me conta histórias. E naquela noite, Alicia contou uma nova história. Sobre uma garota teimosa que se apaixonou por um homem feito de pedra, mas que, sem saber, carregava dentro dele um coração quebrado. O capítulo termina com ambos olhando pela janela. Ele, do casarão escuro. Ela, do quarto iluminado. Dois mundos opostos, mas ligados por um fio invisível. Ainda sem toque. Ainda sem beijo. Mas cada vez mais perto do colapso. A tarde caiu quente na cidade, e Alicia sentia-se inquieta. O clima estava abafado, o coração acelerado, e a mente… em Rafael. Era como se os dias ficassem mais longos quanto mais ela tentava manter o controle. Mas controlar era algo que Alicia não fazia bem. E, definitivamente, não queria fazer agora. Naquela manhã, a coordenação do curso havia passado um comunicado: alunos e professores iriam trabalhar juntos em duplas nos projetos da Semana Jurídica. Sorteio ao vivo, sem exceções. Alicia até achou que não teria ligação alguma com Rafael — mas o destino gostava de brincar. Seu nome saiu junto ao dele. Justo com ele. O único professor da sala 204. — Coincidência? — ela perguntou, cruzando os braços. — Destino — respondeu ele, com a voz mais baixa do que o habitual. Os outros alunos vibraram com seus pares. Alicia e Rafael apenas se encararam em silêncio. A faísca estava ali — disfarçada sob o verniz de formalidade. Lucas, do outro lado do auditório, franziu o cenho ao ver a cena. Ele sabia. Sentia. E aquilo o incomodava. Após a aula, Lucas encontrou Alicia no corredor. Ela sorria, distraída. — Então… você e o Calderon. Projeto juntos? — ele tentou soar despreocupado. — Sorteio — disse, tentando cortar o assunto. — Você ainda está saindo comigo? Ou só me usando pra provocar alguém? A pergunta a pegou de surpresa. Ela abriu a boca, depois fechou. Respirou fundo. — Eu gosto de você, Lucas. Mas eu… não quero mentir. Tem alguém que bagunça tudo em mim. — E esse alguém é seu professor? Ela não respondeu. Mas o silêncio confirmou tudo. Lucas assentiu. — Quando ele te machucar — disse, com sinceridade — eu ainda vou estar aqui. Mas eu não sou plano B, Alicia. Ele saiu, e ela ficou com o coração apertado. Por ele. Por ela. Por tudo. Na tarde seguinte, Alicia e Rafael marcaram a primeira reunião para o projeto. Seria numa sala reservada da biblioteca — ambiente neutro, formal. Mas o que menos havia ali era neutralidade. Ela chegou primeiro. Estava com uma calça preta justa, blusa social branca levemente aberta nos primeiros botões e um coque preso com lápis. Elegante. Profissional. Perigosa. Rafael entrou dois minutos depois. Terno cinza, camisa azul clara, barba cerrada. O cheiro dele inundou o ambiente. Madeira, couro e pecado. — Vamos focar no tema constitucional — disse ele, tentando soar técnico. — Pode ser. Mas a parte de jurisprudência vai exigir nossa atenção. — Eu gosto quando você fala “nossa” — ele disse, sem pensar. Ela o olhou de lado. Ele desviou. Passaram uma hora mergulhados em leis, julgados, discussões técnicas. Mas os toques acidentais nos papéis, os olhares demorados e os sorrisos contidos diziam outra coisa. Em um momento, os dedos se tocaram. Ambos recuaram. Mas devagar. Como se quisessem deixar a eletricidade ali. — Isso é loucura — disse ele, baixando o tom. — Você está falando da Constituição ou de nós dois? Ele a encarou. Fundo. Longo. Perigoso. — De você. Ela se aproximou. Um passo só. A voz saindo como um desafio doce. — Medo, professor Calderon? — Do que você pode fazer comigo? Todo. A campainha da biblioteca tocou, interrompendo o clima. Mas a tensão ficou ali. Presa no ar. Vibrando. No dia seguinte, Alicia almoçava com Mel, Júlia e Guilherme no refeitório. Contavam histórias de relacionamentos desastrosos, riam alto, e comiam besteiras como se fossem adolescentes livres do mundo. — E aí, o Lucas sumiu? — Mel perguntou. Alicia deu de ombros. — Eu fui honesta. Ele merece alguém inteira. Eu ainda tô… quebrada. Guilherme a observava em silêncio. Ele percebia mais do que os outros. Sabia que Alicia estava se perdendo em algo que não podia controlar. Enquanto isso, Rafael estava em casa cuidando do pai. Sentado na varanda da mansão, observava o velho homem brincando com uma caixa de botões como se fosse um quebra-cabeça. — O senhor está melhor hoje, pai? — Você é o Rafael? — o velho perguntou, confuso. — Sou sim. — Sua mãe era linda. Você puxou ela nos olhos. Mas tem o coração do seu avô. Forte. — Às vezes acho que meu coração virou pedra. — Pedras às vezes viram diamantes. Quando são pressionadas. Rafael sorriu triste. Sabia que as palavras do pai nem sempre faziam sentido, mas naquele dia… fizeram mais do que ele queria admitir. Naquela noite, Alicia chegou em casa com o corpo cansado e a cabeça cheia. Nina correu até ela, e as duas assistiram desenho até a caçula dormir no colo dela. — Ele me faz esquecer quem eu sou… — sussurrou, olhando o teto. — E isso me assusta. Ela pegou o celular, abriu a tela da conversa com Rafael — onde só havia uma troca de mensagens acadêmicas — e digitou: “Estamos ferrados, não é?” Mas apagou antes de enviar. No fundo, ela sabia. Eles não estavam só ferrados. Estavam perigosamente próximos de cruzar a linha. E quando cruzassem… ninguém sairia ileso.
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