Capítulo 2

848 Words
O barulho da praça de alimentação da faculdade era um alívio depois da tensão sufocante da sala 204. Alicia se sentou à mesa com a bandeja nas mãos, o prato ainda intocado. Os olhos azuis de Calderon não saíam da mente dela. Ainda sentia o calor onde ele nunca sequer a encostou. — Eu te disse — murmurou Mel, empurrando um canudo na boca do refrigerante. — Ele é o próprio demônio vestido de terno. — Um demônio lindo, né? — completou Júlia com um sorriso malicioso. — Jesus… se for pra reprovar, que seja olhando praquele homem. Alicia tentou rir, mas foi um riso nervoso. — Vocês já viram alguém encarar assim uma aluna? Ele me olhou como se quisesse… sei lá. — Te comer viva? — Guilherme brincou, mordendo o hambúrguer. — Isso porque é o primeiro dia, viu? — Eu me senti… invadida — Alicia disse mais para si do que para os outros. — Como se ele visse coisas que nem eu sei que tenho. As meninas se entreolharam, o tom da conversa mudando um pouco. Havia algo diferente em Alicia — uma intensidade que ela talvez ainda não tivesse percebido. — Mas e vocês, já estudaram pra próxima aula? — Mel perguntou, mudando de assunto. — Aquela lista de leitura é surreal. — Já imprimi tudo, mas não entendi nem metade do primeiro artigo — respondeu Guilherme, fazendo careta. — Como alguém consegue decorar tanta coisa? — Não é só decorar — explicou Júlia, sempre mais focada. — É interpretar. Por exemplo: o que a gente viu hoje sobre o Estado Democrático de Direito… ele queria que a gente entendesse o papel do advogado no equilíbrio entre justiça e lei. — Ou ele só queria intimidar a sala inteira — murmurou Alicia. — Isso ele fez com sucesso — Mel riu. — Mas no fundo, ele não tá errado. Direito é um curso pesado. O tipo de coisa que muda quem você é. — Ou revela quem você sempre foi — disse Júlia, mais séria. Alicia ficou em silêncio por alguns segundos. Aquela frase a atingiu. Como se alguém tivesse desenterrado algo que ela tentava manter longe. — Meu pai dizia isso — ela soltou, sem pensar. — Que estudar Direito era descobrir do que somos capazes. — Seu pai é advogado? — Mel perguntou. — Era. — Alicia forçou um sorriso. — Ele morreu quando eu tinha 15. O silêncio caiu por alguns instantes. Não era tristeza o que ela sentia — era um peso antigo, preso no fundo do peito, que raramente deixava escapar. — Sinto muito — Mel disse com sinceridade. — Tudo bem. Foi isso que me fez escolher esse curso, na verdade. Ele era obcecado por justiça. Acho que herdei isso dele. Guilherme tocou o copo com os dedos, desviando o olhar. — Meu pai queria que eu fizesse medicina. Quando falei Direito, ele me olhou como se eu tivesse confessado um crime. — O meu nem sabe que entrei na faculdade — disse Júlia, sem drama, apenas como um fato. — Tá preso. — Sério? — Alicia perguntou, surpresa. — Tráfico. Mas não é segredo. Cresci no meio disso. Estar aqui já é uma vitória. Mel assentiu devagar. — A gente carrega mais do que o nome na matrícula. Todos ficaram em silêncio por um momento, até que Guilherme quebrou o clima: — Ok, isso tá parecendo terapia em grupo. Podemos voltar a falar no quão gostoso é o professor Calderon? As meninas riram. — Aquele homem não devia ser legal — disse Mel. — É tipo… injusto. Ele fala uma frase e meu corpo arrepia. — Eu fico pensando como seria ele fora da faculdade — comentou Júlia. — Será que tem alguém? Casado? Viúvo? Assassino? Alicia mordeu o lábio inferior. — Ele não usa aliança. E não parece do tipo que divide a vida com alguém. — Parece o tipo que comanda, não que compartilha — disse Mel. — E vocês viram a cicatriz na mão esquerda? — comentou Guilherme. — Passa quase dos dedos até o pulso. Eu reparei hoje quando ele apontou algo no quadro. Alicia gelou. Não tinha reparado nisso. Mas agora queria ver. Queria saber o que causou aquela cicatriz. E por que o olhar dele parecia carregar uma guerra não vencida. — As aulas da tarde passaram mais leves. Professores menos rígidos, colegas mais animados. Alicia fez anotações, sorriu mais, mas em nenhum momento conseguiu esquecer Calderon. Na saída, Mel convidou as meninas para um café em frente à universidade, mas Alicia recusou. Disse que precisava resolver algo pessoal — e era verdade. Precisava respirar. Sozinha. Ela caminhou pelo campus, os olhos fixos nos corredores vazios do bloco A. Passou novamente pela sala 204. Estava trancada. Silenciosa. Mas ainda carregava a mesma energia estranha, quase viva. Por que ele a fez ficar? Por que a olhou daquele jeito? Por que… ela gostou tanto da sensação de perigo? Alicia não sabia. Mas o frio no estômago toda vez que pensava nele era viciante. E errado. E ainda assim… impossível de ignorar.
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