Capítulo 3

851 Words
Na manhã seguinte, Alicia chegou cedo. Muito antes do horário. Sentou-se na terceira fileira, lugar de sempre, caderno aberto, olhos atentos. Havia estudado até tarde na noite anterior, relendo artigos e trechos da Constituição como se sua vida dependesse disso. E talvez, de certa forma, dependesse. O professor Calderon ainda não tinha chegado, mas o clima já era de tensão. Os alunos cochichavam entre si, alguns trocavam olhares nervosos. As meninas do fundo, especialmente duas — Bianca e Luma, sempre maquiadas demais e com blusas meio abertas demais — só falavam dele. — Hoje eu falo com ele no final da aula — disse Bianca. — Ele vai acabar me notando. Homens assim gostam de desafio. — Ou te ignora como sempre — comentou Júlia baixinho, ao lado de Alicia. — Ele trata qualquer mulher como se fosse vidro sujo. Alicia sorriu, mas sem força. Ela sabia bem disso. E ainda assim, algo nela desejava aquele olhar de novo. Aquele gelo ardente. A porta se abriu. Rafael Calderon entrou como uma tempestade contida. Camisa branca, mangas dobradas, gravata preta solta no colarinho. Os olhos azuis varreram a sala em silêncio, e como sempre, ninguém ousou falar depois disso. Ele largou uma pilha de papéis sobre a mesa. — Prova diagnóstica — disse, sem enrolar. — Não vale nota, mas vale atenção. Quero saber quem tem cérebro e quem veio aqui por status. Distribuiu as folhas com a frieza de um juiz em execução. Quando chegou na fileira de Alicia, seus olhos cruzaram os dela por um milésimo de segundo. Nenhuma palavra. Mas ela sentiu a pele tremer. A prova era complexa. Perguntas disfarçadas de simples. Casos reais misturados a conceitos jurídicos. Pegadinhas. Contradições. E ela adorava cada segundo daquilo. Era ali que ela brilhava. Onde sua mente deixava de ser insegura e se tornava afiada como uma faca recém-afiada. Quando terminou, Alicia entregou a folha sem olhar para ele. Mas ao voltar para o lugar, percebeu algo estranho: ele a observava. Não com luxúria, não naquele momento. Era algo raro: respeito misturado com curiosidade. E talvez… uma faísca de provocação. — Duas aulas depois, ele voltou para a sala com as provas em mãos. — Algumas respostas foram medianas. Outras, ofensivas. E uma… — ele pausou — surpreendente. A turma inteira ficou em silêncio. — Quem respondeu que o artigo 5º da Constituição se sobrepõe, em última análise, a toda legislação ordinária, mesmo diante de jurisprudência contrária, explicou corretamente o princípio da hierarquia normativa. E ainda citou decisões recentes do STF. Alicia sentiu o coração acelerar. Ela tinha escrito isso. E apenas ela. — Srta. Alicia — ele disse, olhando diretamente para ela. — Parabéns. O silêncio foi brutal. As meninas do fundo abriram a boca, chocadas. Júlia arregalou os olhos. Mel bateu o pé contra o chão, impressionada. Calderon nunca elogiava ninguém. Jamais. Nem por educação. — É bom ver que alguém ainda respeita o Direito como ciência e não como vaidade — completou ele. Alicia não sabia onde enfiar o rosto. Ao mesmo tempo em que se sentia vitoriosa, também se sentia exposta. Ele não piscava. E naquele momento, havia algo diferente em seu olhar. Algo que dizia: “Você me surpreendeu. E eu não gosto de surpresas.” — Na saída, Bianca passou por ela com uma expressão de puro veneno. — Hum, então agora temos a queridinha do professor? — disse com deboche. — Esperta. Ele gosta das que fingem ser quietinhas. Alicia a ignorou. Mas Júlia não. — Ele não gosta de ninguém, Bianca. A diferença é que a Alicia estuda. Você devia tentar. Bianca bufou e saiu com Luma logo atrás, jogando os cabelos para o lado. — Uau — disse Guilherme, se juntando ao grupo. — Você basicamente fez história hoje. Eu nunca ouvi um “parabéns” da boca daquele homem. Aposto que até ele se assustou. Alicia sorriu, mas estava inquieta. O olhar dele ainda queimava na memória. Não era só orgulho. Não era só respeito. Era como se ele tivesse aberto um novo tipo de guerra entre eles. — No final da tarde, Alicia passou pela biblioteca e pegou mais dois livros. Quando saiu, parou na escada lateral para ler o prefácio de um deles. Estava imersa nas palavras quando sentiu… presença. Ergueu os olhos. Ele estava lá. Calderon descia os degraus opostos, sozinho, a gravata agora solta de verdade, duas pastas sob o braço e o casaco nos ombros. Parecia perigoso mesmo sem dizer uma palavra. Ele a viu. Claro que viu. Mas ao invés de desviar o olhar, parou. — Srta. Alicia — ele disse, baixo, como uma sentença sussurrada. — Gosta de ser desafiada? Ela engoliu em seco. — Sim. Quando é justo. Ele inclinou levemente a cabeça, os olhos azuis fixos nela. — Então vai gostar muito desse curso. Mas cuidado… — Ele se aproximou, devagar, sem pressa. — Porque aqui dentro… alguns desafios têm preço alto demais. E então, passou por ela. Sem olhar para trás. Alicia permaneceu parada. O corpo inteiro pulsando. E no fundo, ela sabia: ele começava a vê-la. E isso mudaria tudo.
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