Na manhã seguinte, Alicia chegou cedo. Muito antes do horário. Sentou-se na terceira fileira, lugar de sempre, caderno aberto, olhos atentos. Havia estudado até tarde na noite anterior, relendo artigos e trechos da Constituição como se sua vida dependesse disso. E talvez, de certa forma, dependesse.
O professor Calderon ainda não tinha chegado, mas o clima já era de tensão. Os alunos cochichavam entre si, alguns trocavam olhares nervosos. As meninas do fundo, especialmente duas — Bianca e Luma, sempre maquiadas demais e com blusas meio abertas demais — só falavam dele.
— Hoje eu falo com ele no final da aula — disse Bianca. — Ele vai acabar me notando. Homens assim gostam de desafio.
— Ou te ignora como sempre — comentou Júlia baixinho, ao lado de Alicia. — Ele trata qualquer mulher como se fosse vidro sujo.
Alicia sorriu, mas sem força.
Ela sabia bem disso. E ainda assim, algo nela desejava aquele olhar de novo. Aquele gelo ardente.
A porta se abriu.
Rafael Calderon entrou como uma tempestade contida.
Camisa branca, mangas dobradas, gravata preta solta no colarinho. Os olhos azuis varreram a sala em silêncio, e como sempre, ninguém ousou falar depois disso.
Ele largou uma pilha de papéis sobre a mesa.
— Prova diagnóstica — disse, sem enrolar. — Não vale nota, mas vale atenção. Quero saber quem tem cérebro e quem veio aqui por status.
Distribuiu as folhas com a frieza de um juiz em execução. Quando chegou na fileira de Alicia, seus olhos cruzaram os dela por um milésimo de segundo. Nenhuma palavra. Mas ela sentiu a pele tremer.
A prova era complexa. Perguntas disfarçadas de simples. Casos reais misturados a conceitos jurídicos. Pegadinhas. Contradições. E ela adorava cada segundo daquilo. Era ali que ela brilhava. Onde sua mente deixava de ser insegura e se tornava afiada como uma faca recém-afiada.
Quando terminou, Alicia entregou a folha sem olhar para ele. Mas ao voltar para o lugar, percebeu algo estranho: ele a observava.
Não com luxúria, não naquele momento. Era algo raro: respeito misturado com curiosidade.
E talvez… uma faísca de provocação.
—
Duas aulas depois, ele voltou para a sala com as provas em mãos.
— Algumas respostas foram medianas. Outras, ofensivas. E uma… — ele pausou — surpreendente.
A turma inteira ficou em silêncio.
— Quem respondeu que o artigo 5º da Constituição se sobrepõe, em última análise, a toda legislação ordinária, mesmo diante de jurisprudência contrária, explicou corretamente o princípio da hierarquia normativa. E ainda citou decisões recentes do STF.
Alicia sentiu o coração acelerar. Ela tinha escrito isso. E apenas ela.
— Srta. Alicia — ele disse, olhando diretamente para ela. — Parabéns.
O silêncio foi brutal.
As meninas do fundo abriram a boca, chocadas. Júlia arregalou os olhos. Mel bateu o pé contra o chão, impressionada.
Calderon nunca elogiava ninguém. Jamais. Nem por educação.
— É bom ver que alguém ainda respeita o Direito como ciência e não como vaidade — completou ele.
Alicia não sabia onde enfiar o rosto. Ao mesmo tempo em que se sentia vitoriosa, também se sentia exposta. Ele não piscava. E naquele momento, havia algo diferente em seu olhar.
Algo que dizia:
“Você me surpreendeu. E eu não gosto de surpresas.”
—
Na saída, Bianca passou por ela com uma expressão de puro veneno.
— Hum, então agora temos a queridinha do professor? — disse com deboche. — Esperta. Ele gosta das que fingem ser quietinhas.
Alicia a ignorou. Mas Júlia não.
— Ele não gosta de ninguém, Bianca. A diferença é que a Alicia estuda. Você devia tentar.
Bianca bufou e saiu com Luma logo atrás, jogando os cabelos para o lado.
— Uau — disse Guilherme, se juntando ao grupo. — Você basicamente fez história hoje. Eu nunca ouvi um “parabéns” da boca daquele homem. Aposto que até ele se assustou.
Alicia sorriu, mas estava inquieta. O olhar dele ainda queimava na memória.
Não era só orgulho. Não era só respeito. Era como se ele tivesse aberto um novo tipo de guerra entre eles.
—
No final da tarde, Alicia passou pela biblioteca e pegou mais dois livros. Quando saiu, parou na escada lateral para ler o prefácio de um deles. Estava imersa nas palavras quando sentiu… presença.
Ergueu os olhos.
Ele estava lá.
Calderon descia os degraus opostos, sozinho, a gravata agora solta de verdade, duas pastas sob o braço e o casaco nos ombros. Parecia perigoso mesmo sem dizer uma palavra.
Ele a viu. Claro que viu. Mas ao invés de desviar o olhar, parou.
— Srta. Alicia — ele disse, baixo, como uma sentença sussurrada. — Gosta de ser desafiada?
Ela engoliu em seco.
— Sim. Quando é justo.
Ele inclinou levemente a cabeça, os olhos azuis fixos nela.
— Então vai gostar muito desse curso. Mas cuidado… — Ele se aproximou, devagar, sem pressa. — Porque aqui dentro… alguns desafios têm preço alto demais.
E então, passou por ela. Sem olhar para trás.
Alicia permaneceu parada.
O corpo inteiro pulsando.
E no fundo, ela sabia: ele começava a vê-la. E isso mudaria tudo.