Portugal – Porto Dias atuais.
Sam
As gotas de um vazamento qualquer ecoavam pelo corredor. Aquilo me incomodava bastante, estava deitado, esperando ser solto. Respirei fundo, observando o teto de concreto mofado. A luz m*l conseguia entrar na cela quase do tamanho de uma lata de sardinha. Era quente e úmida. De longe, pude escutar o guarda, com passos longos e firmes, balançando as chaves em sua mão. Mês passado, meu colega de cela havia sido morto com uma facada bem no meio da caixa torácica com a ponta acertando coração, e outra facada abaixo dos pulmões e deixado às moscas, mas eu nunca me envolvi com o pessoal, por isso, muitas vezes me livrei da morte. Um cara legal, mas sempre estava metido em rolos estranhos. Pobre John. Ele queria sair da cadeia para ficar junto à sua família, mas o destino não quis assim, e ele escolheu o caminho errado. Não queria terminar como ele, sendo morto de maneira brutal e completamente desumana. John era um cara do bem. Sempre ajudando os outros, mas pecava por se misturar com membros de gangues rivais dentro da cadeia. E, como sempre ficava em cima do muro, acabou tendo a vida ceifada por um m****o de alguma gangue.
Minha carta de liberdade já estava pronta e eu, louco para sair daquele inferno.
— Samuel Otto — chamou o guarda, fedorento, alto e gordo demais, que sorriu mostrando os dentes tortos e amarelados, mas suas bochechas eram as piores partes, ainda tinham rastros do café da manhã em sua barba, migalhas espalhadas pela barba malfeita e de pelos grossos. — Levante
— ordenou, com sua cara de buldogue. — Passe suas mãos entre as grades — levantei e obedientemente coloquei minhas mãos juntas entre o espaço das barras de ferro da grade para poder me algemar. Eu era o único a passar por isso... mesmo sabendo que não era de briga.
O balofo nunca foi com a minha cara, para ser mais exato. Porém, isso não importava mais. Eu estava a poucos segundos de sair e sentir o cheiro do ar puro, se era assim que eu poderia dizer. Eu m*l lembrava de como era a cidade, como era sentir um ar puro de verdade, sem sentir o mau cheiro que vinha daquele lugar.
Caminhei em direção à saída, parei apenas para olhar pela janela gradeada vendo o mundo lá fora, respirando fundo por finalmente sair dali, e continuei andando. O corredor frio e com cheiro esquisito me fez querer sair o mais rápido dali, entretanto, eu teria que esperar até que pegassem as poucas coisas que eu tinha.
Levantei meu pulso para as algemas serem retiradas quando cheguei à sala, senti um alívio por não precisar mais usá-las. Agora eu era um homem livre, pensei. Finalmente livre. Recebi do guarda m*l-humorado com cara de buldogue os poucos pertences que eu tinha em uma mochila pequena. Carteira, documentos, dinheiro... m***a! Roubaram meu dinheiro! Suspirei resignado com o que fizeram, mas não reclamei do ocorrido, afinal, eu também roubei de alguém e me arrependi profundamente dos meus erros, apenas peguei minhas roupas – uma calça jeans velha azul quase desbotada e uma camiseta sem mangas que minha mãe havia feito sob medida para mim, assim como um par de sapatos surrados marrom – e em um local reservado, me vesti e entreguei a roupa laranja, que por tanto tempo me cobriu.
Ao sair, pude sentir o olhar do guarda pairar sobre mim,– aquele era o guarda que me acompanhou com atenção, até mesmo na hora da minha liberdade. Bundão! – entretanto, não me importei em como ele olhava para mim, agora eu era, pleno e irrevogavelmente, um homem livre e com minhas contas pagas perante a sociedade.
Quando saí, não consegui conter um sorriso no rosto ao sentir o sol me aquecendo. Larguei tudo no chão e gritei de punhos cerrados, um grito de alegria, que saiu a plenos pulmões e me aliviou a alma. Não consegui conter minha alegria. O ar quente aquecia a alma e o vento estava muito forte, parecia que eu estava no meio do deserto.
Tudo que eu queria era dar um forte abraço no meu pai e lhe pedir desculpas por tudo que o fiz passar.
De longe, observei e reconheci o carro, – o Chevrolet Belair 56 azul-celeste, clássico e o meu favorito – e recolhi meus objetos do chão e corri em direção à mulher sentada dentro do carro, feliz por finalmente vê-la. Ela, a minha mãe, estava sentada com as mãos no volante, me olhando com lágrimas em seus lindos olhos castanhos com cílios longos e úmidos, o que me fez relembrar o porquê de querer fazer o que era certo e nunca mais magoar a mulher que me colocou no mundo. Que meu deu a vida.
Ela abriu seu sorriso encantador e desceu do carro para me abraçar forte, e logo depois, segurou meu rosto em suas mãos para avaliar meu estado físico – ela era verdadeiramente incrível – e na mesma hora, comecei a chorar. Um choro desesperado ao abraçá-la, enterrando minha cabeça em seu pescoço, sentido o seu cabelo cheiroso e sedoso. Ela apenas acariciava minhas costas, me acalmando e acalentando com as suas mãos pequenas e macias. Minha linda morena de corpo pequeno que tanto me fazia bem. Minha mãe.
— Calma — falou, afagando meu cabelo com as pontas dos dedos. — Já passou — me afastei, olhando para ela ainda chorando.
— Perdão — pedi, passando a mão em seu rosto e colocando uma mecha do seu cabelo atrás de sua orelha.
— Não é necessário pedir perdão — passou suas mãos em meus ombros. — Você é meu filho e haja o que houver, estarei ao seu lado. Sempre. Eu amo você, Sam, e não há nada nesse mundo que mude esse sentimento, nem mesmo seus erros — falou isso, me puxando para mais um longo abraço. — Agora, vamos — seu tom era mais alegre. — Seu pai já deve estar arrancando os poucos cabelos que lhe resta naquela careca — não pude deixar de rir ao lembrar que meu pai, o senhor Bernardo Joaquim Otto, reclamava sem parar do cabelo que já estava praticamente extinto do topo de sua cabeça.
Meu pai... bem, meu pai era o homem mais incrível e sensato que a humanidade deveria ter conhecido, achava que em cada centímetro de terra deveria ter um homem como ele no mundo. Aí meu perguntei... então, por que fui para o caminho da criminalidade? Nem eu sabia responder.
Pensei no homem de cinquenta e nove anos, branco, dono do par de olhos castanho-claros mais serenos que se poderia imaginar, cabelo liso e grisalho que já rareava e ele insistia em pintar de preto. Era de estatura baixa, uma barriga saliente, usava macacão de jardinagem – achava que tinha uma coleção daqueles macacões.
Resumindo, e definindo, aquele era meu pai, um ser de carne e osso, um homem amoroso, gentil, honesto e engraçado.
O seu caráter daria inveja ao ganhador do Prêmio Nobel da Paz.
Meus pais eram a combinação perfeita de um casal harmonioso, mesmo na hora das discussões. Nunca os ouvi brigar de verdade, ambos não levantavam o tom de voz, a não ser para chamarem um ao outro, e estavam sempre grudados.
Um dia, eu queria ter um relacionamento como o deles. Uma união capaz de passar por cima de tudo, só para se manterem juntos pela eternidade.
***
De longe, avistei o enorme portão de ferro bem trabalhado, e percebi que algumas coisas tinham mudado naquele local. Muros mais altos, câmeras de segurança na entrada, um jardim no centro, as árvores estavam mais frondosas, mas a casa era do mesmo jeito que me lembrava - foram apenas duas visitas, mas ainda me lembrava da casa.
Duas torres paralelas com dois andares, no centro, a maior parte da mansão, com janelas vitorianas e vidros verdes. Portas grandes de madeira, paredes brancas e impecáveis com detalhes de linhas circulares pequenas nas bordas, formando uma corrente muito bonita. O cheiro das flores era o mesmo, mas a beleza do local havia sido aprimorada pelo meu pai, que agora não podia mais cuidar do jardim, por isso ele convenceu o senhor Joseph Drummond para que me contratasse. Nunca fui tão bom jardineiro quanto meu pai, mas faria de tudo para deixá-lo orgulhoso.
Meu pai aguardava na entrada, e assim que o vi, comecei a chorar, então desci do carro logo que minha mãe parou. Corri para os braços do homem que me deu o exemplo do que é ser bom e honesto, mesmo não me tornando no que ele queria.
Abracei forte meu pai. Minha mãe estava de braços cruzados ao nosso lado chorando, mas não a deixei fora do abraço. Eu a puxei e com o meu um metro e oitenta, apertei os dois seres mais importantes da minha vida, e tudo se tornou completo.
— Oi, pai — falei, enquanto abraçava meus pais.
— Oi, meu moleque — respondeu com a voz embargada.
— Perdão — pedi assim como fiz com minha mãe. — Me perdoa por tudo que te fiz passar.
— Passado é passado — falou, se afastando e passando a mão no meu rosto e no rosto da minha mãe. — Você já pagou pelos seus erros. Agora é só seguir em frente.
— Amo vocês dois — declarei. — Não teve um dia sequer que deixasse de pensar em vocês.
— Nós também pensamos muito em você — falou minha mãe com ternura.
— Vamos — disse meu pai, pegando minha mochila suja de barro e colocando no ombro. — Quero lhe mostrar onde você vai morar.
— Eu não vou ficar onde vocês estão morando? — fiquei confuso.
— Ah, querido, o senhor Drummond fez questão de que você tivesse seu próprio canto e isso será bom para você — disse minha mãe, passando a sua mão em meu rosto enquanto caminhávamos em direção ao local. Não sabia o tamanho da residência, mas era muito grande. A casa onde eu ficaria era quase ao lado da dos meus pais. Perfeita. Quando entramos, ainda tinha o cheiro de tinta, era muito arrumada e organizada, com móveis simples, mas a TV de tela plana de cinquenta polegadas era, com toda certeza, meu objeto favorito.
— Gostou? — perguntou meu pai.
— Se eu gostei? — minha voz saiu surpresa por estar sendo bem tratado, mesmo sem merecer. — Muito — respondi, contente. — É mais do que eu podia imaginar.
— Espero que fique confortável — minha mãe me olhou com carinho. — Temos que ir. Amanhã pela manhã o senhor Drummond quer falar com você sobre o seu salário, já que agora seu pai não vai poder mais trabalhar e vamos ser só nós dois.
— Agora eu vou ser um inútil e explorador — meu pai franziu o cenho, fingindo estar orgulhoso da sua situação. — Trabalhem.
— Não me venha com essa, Jo. Você não é um inútil, só está velho — brincou minha mãe, e meu pai fez uma careta, e logo beijou o topo de sua cabeça. Todos nós rimos.
— Bom, o velho aqui precisa encher o estômago — passou a mão na barriga. — Vamos, minha velha — meu pai chamou minha mãe, segurando a sua mão. — Sam, qualquer coisa é só chamar.
— Obrigado, pai — dei um beijo no topo da cabeça de cada um e nos despedimos.
A casa era pequena, mas aconchegante. Nem lembrava a cela fria e fétida que fiquei. Finalmente teria privacidade, me lembrei, olhando o banheiro que tinha uma banheira enorme em comparação com o cubículo da cadeia e os chuveiros coletivos, onde a cada sabonete caído... um perigo para seu traseiro estava estabelecido. Ainda bem que nenhum sabonete escorregou da minha mão ou meu traseiro entraria para o cardápio prisional.
O meu sorriso aumentou quando vi a cama. Enorme, confortável, com lençóis brancos, macios e limpos – principalmente limpos.
Quando dei por mim, havia tirado os sapatos e pulava na cama, não era mais Sam, o ex- presidiário, era uma criança perdida em cima daquela cama enorme. Pulando, mergulhando e bagunçando a cama, revirando os lençóis.
Nem parecia que tinha trinta anos.
Quando a fome apertou, a primeira coisa que pensei ao sair do quarto foi chamar minha mãe, mas decidi antes abrir a geladeira, que para minha surpresa, estava repleta de alimentos. Abri todas as portas do armário e constatei que também estava abastecido. Preparei um senhor sanduíche recheado e um copo enorme de suco de laranja, me sentei na pequena mesa perto da janela que dava para ver o jardim e os fundos da casa. Saboreei cada pedaço mordido como se fosse único. Na cadeia, a comida não era r**m, mas também não era das melhores.
Depois, pediria para que minha mãe fizesse a sua torta de morangos com chocolate que tanto senti falta. Eu estava com saudade de um tratamento com carinho e atenção, e não queria perder isso, então daria duro no trabalho, e no tempo vago estudaria para ser o filho que os meus pais tanto mereciam.
Sam
Senti o calor escaldante sobre mim, mas não parei de trabalhar. Queria terminar antes do almoço. Meu pai havia saído para realizar os exames solicitados pelo médico e minha mãe havia ido junto. Minhas mãos estavam cobertas com terra, e por mais calor que fizesse, eu estava gostando de lidar com ela. Não era bom como o meu pai, que tudo o que tocava, se tornava uma obra de arte. Mas estava tentando.
Parei e olhando meu trabalho, gostei do resultado. Minha boca seca pedia por água. Olhei para os lados, não vi a empregada que sempre me trazia um refresco, então caminhei, subindo a escada da frente da casa, onde pude ouvir o ronco de um motor de uma moto, – uma Ecosse Titanium Series FE Ti XX preta – então me virei, vendo uma mulher de curvas generosas descer.
Quando ela tirou o capacete, balançando o cabelo, minha respiração parou. Era uma mulher espetacular, a pele era clara, pude notar que a altura dela era compatível com a minha, a cintura fina contrastava com um quadril generoso, as pernas grossas estavam marcadas pela calça preta justa, os s***s pequenos m*l apareciam debaixo do cabelo preto, longo com as pontas levemente cacheadas, olhos castanho-escuros me encararam e lindos lábios grossos bem desenhados se abriram para falar comigo.
Essa morena me tirou o fôlego.
— Quem é você? — perguntou ela com certo desdém. Franzi o cenho com o seu tom arrogante. Ela olhou para as minhas mãos sujas e fez cara de nojo.
— Ele é o filho do nosso adorado jardineiro — respondeu um senhor de cabelo branco. Senhor Drummond, com toda certeza.
— Samuel Otto — tentei parecer gentil mesmo ela não merecendo, estendi a mão para cumprimentá-la, mas logo me arrependi de ter feito isso.
— Ele é o tal bandido? — seu tom ácido me deixou desconfortável. — Não acho certo termos uma pessoa como ele em nossa residência — me olhou de cima a baixo, torcendo o nariz. — Não vou apertar sua mão suja.
— Alexya, por favor, não trate o Samuel assim — o tom de voz dele era firme. — Eu respeito muito a família dele e quero que você o respeite.
— Desculpa, senhor. Não quero causar problemas — eu me senti desconfortável diante daquela situação.
— O problema é você querer entrar pela porta da frente
— soltou rispidamente. — Empregados entram pela porta de trás. Mas acho que você já deveria saber disso — ironizou.
— Alexya! — advertiu seu pai. — Não foi assim que eu a ensinei a tratar os outros.
— Tudo bem, senhor Drummond — desci a escada. — Eu entro pela porta de trás.
— Samuel... — me chamou o senhor Drummond. — Entre, por aqui — pediu, estendendo sua mão para que eu entrasse pela porta da frente.
— Tudo bem, senhor — eu disse, sinceramente. — Não tem problema. Eu sou seu empregado e tenho que seguir as
regras.
— Muito bem — debochou Alexya. — Pelo menos você aprende rápido — levantou uma das sobrancelhas.
— Eu não estou mandando, Samuel — ele olhou rígido para ela. — Estou pedindo gentilmente que você entre — atendendo ao seu pedido, vagarosamente subi os degraus da escada novamente, mas não baixei a cabeça, mostrando que tinha meu orgulho, seguindo o senhor Drummond.