Prólogo
PrólogoQuinta-feira, 13 de agosto de 2020
“Finalmente percebi” Repete de si para si um homem enquanto percorre com um passo incerto na avenida da Liberdade: trazia na mão uma velha pasta em pele castanha. As luzes fracas da noite circundam a figura do mistério, uma fresca brisa proveniente do mar encana-se nas ruas de Lisboa.
Ribomba a ruido feito pelo elevador da Gloria, o funicular que se escala a partir da Baixa sobre um dos outeiros da capital portuguesa.
O ancião apoia-se na bengala com a mão, com a outra agarra a haste para subir; na tentativa a pasta abre-se e o conteúdo cai no chão. UM rapaz alto, vestido de preto, ajuda-o a apanhar os papéis espalhados, não sem ter dado antes um relance de olhos à folha por cima. O estranho veículo amarelo parte, de um momento para o outro abranda, pouco mais ou menos refreia-se, parece não conseguir chegar em cima, depois com um sopro retoma a subida.
O homem finge de estar a reparar fora através da janelinha, observa realmente os outros passageiros: fixa preocupado o jovem que o tinha ajudado.
O Bairro Alto é pitoresco para os turistas, mas percorrer aquelas vielas m*l iluminadas não é tranquilizador nem tão-pouco para mestre de Krav Maga, a arte de combate do exército israelita. O ancião acelera o passo, até que alguém na rua do Norte pega-o pelos ombros.
«Italiano? Jantar ao espetáculo de fado?»
Para ser claro um daqueles “provedores” que se estacionam por fora dos restaurantes típicos; aquilo na verdade não é um restaurante para turistas, mas a Adega Machado, a mais antiga CASA do Fado de Lisboa.
«Não, obrigado, não tenho fome.»
O empregado de mesa insiste mostrando as fotos das antigas exibições de Amália Rodrigues e Marceneiro, celebres fadistas, desconhecidos aos demais.
“O fado é como o jazz: uma música lindíssima, que não deixarias de forma alguma de escutar...mas apenas durante três minutos” pensa o homem.
E depois não se tem o tempo para comer o bacalhau de costume escutando aquela triste lengalenga portuguesa.
Com um sacão distancia-se do restaurante. O vento parece empurrá-lo para cima, para uma obscura subida até a um prédio todo azul.
«Abram, já voltamos» Grita a partir da janela entreaberta no segundo piso.
UM jovem claramente em sobrepeso desce os degraus dois a dois. Chega ofegante ao portão da entrada.
«Sua Santidade.»
UMA longa inclinação acompanha a entrada do homem.
«Feche a porta! Nos seguiram.»
«Aqui está seguro. Protegeremos com a nossa vida a sua sagrada pessoa.»
O ancião conhece há bastante tempo Bruxa, o referente chefe para Portugal da Hermetic of the Golden Dawn, a ordem neopagã da qual é líder indiscutível, e sabe bem que é preciso tarar como afirma. Está convicto de que à primeira dificuldade Bruxa passará correndo ao inimigo e não o esconde.
«Os ratos, e às vezes os comandantes, são os primeiros a fugir do navio que afunda.»
Ele pousa o chapéu sobre uma poltrona, continuando segurando na mão a pasta em pele.
«Descobri que...» interrompe-se.
«Ela está em casa? Diga-lhe logo para vir ao nosso encontro.»
«Com certeza, Sua Santidade. Acorremos ao seu conspecto.»
«Não, só ela! Tu ocupas-te em aprontar um banho quente.»
«Muito bem. Toda a vossa vontade é uma ordem.»
Atrás daquela maneira obsequiosa, o Adeptus Exemptus lusitano esconde uma alma mesquinha.
Bruxa volta-se por sua vez à uma mulher, permanecida especada pela chegada do ancião.
«Prepara um banho quente para o Altíssimo!»
“Por que pretende referir as suas descobertas só para ela?” Refletiu Bruxa, encaminhando-se para o aposento do segundo andar.
Bate a porta, de uma forma leviana.
«Sim, quem é?»
«Bruxa. Sua Santidade quer conferenciar-se contigo.» a porta abre-se.
«Subo de imediato ao encontre dele. Vens comigo?»
«Não, deseja falar contigo a sós. Eu dirigir-me-ei ao templo para alimentar o sagrado fogo.»
«Vê-se não o apagues como há um mês» ressalvou ela fechando de novo a porta.
UMA ampla lareira ilumina a sala das cerimónias; aladas as estatuetas de Júpiter e de Esculápio, por cima pavoneava-se uma graúda de Hélios, o deus do Sol. Bruxa acresce uns ramos apanhados no parque natural de Gerês; transpira diante do fogo. No entanto a rapariga entra na sala do Magus Ipsissimus, o chefe absoluto da Ordem Hermética.
«Meu senhor, vós estáveis à minha procura?»
«Chega aqui, minha estrela.»
O ancião sentado sobre uma poltrona, estafado pela longa caminhada.
«Neste momento podes tratar-me por tu: Bruxa não está aqui. Parece muito gentil, mas tenho a certeza de que estaria pronto para me sugar o sangue se voltasse o olhar algures.»
Ela acocora-se perante a ele sobre uma enorme almofada colocado no tapete.
«Durante estes meses de pesquisa na biblioteca percebi uma coisa fundamental: estava convencido de que fossem dois e pelo contrário... São três!» A rapariga sabe muito bem do que se refere e repete estupefacta: «Três?»
«Assim mesmo!» exclama a suprema guia espiritual.
«Descobriste o que estava escrito?»
«Muitos anos atrás vi aquele livro, durante um instante, depois desapareceu. Não tinha até agora percebido quem tivesse gravado aquelas palavras.»
«Quem?» Ela encoraja-o para prosseguir.
O homem esvoaça uma folha diante do seu rosto.
«UM imperador!» o ancião interrompe-se e repara-se em volta.
«Porém descobriram-me. UM rapaz há bocado no elevador.»
«O que aconteceu?» pergunta ela preocupada.
«Sei que foi mandado por eles. Eles estão aqui!»
«Não deixar-nos-ão em paz até quando não lhes darás... Comenta ela.
«Isso nunca. Prefiro morrer.»
«Não digas assim... Estou curiosa: posso ver?»
O homem caricia o rosto da rapariga, ela cessa de se distanciar.
«Diga-me pelo menos…»
«Patientia animi occultas divitias habet.»
«É uma citação de Cícero? Ou se calhar Séneca?» pergunta ela.
«É uma das sententiae de Publilio Siro: Quem tem paciência tem um grande tesouro escondido.»
Depois ele prossegue: «O caminho para a verdade é longo e tortuoso: deve ser percorrido passo a passo... Agora estou cansado. Desejo tomar um bom duche».
Ela levanta-se.
«Respeito a sua vontade, deixo-a às suas abluções, Sua Santidade.»
Ele abana a cabeça.
«Não faças dessa maneira, minha fofa. São anos que faço pesquisas… Esperar mais um dia não muda nada.»
Assim que saiu a rapariga, o Magus Ipsissimus despe-se e entra na casa de banho pessoal com a folha na mão.
Liga o leitor de cassetes, um cimélio do século transato, e enfia uma cassete que ele mesmo tinha preparado nos anos ’90. Atira à banheira alguns sais de bergamota, acende uma vela e se acomoda na banheira. Começa um trecho pouco conhecido de Angelo Branduardi que canta uma poesia de Yeats, o único Nobel que tenha feito parte da Ordem Hermética:
Sento che troverò il mio fato in un luogo tra le nuvole lassù; coloro ch’io combatto io non odio,
coloro ch’io difendo io non amo… [Sinto que encontrarei o meu fado num lugar entre as nuvens lá em baixo; aqueles que eu combato, eu não os odeio, aqueles que eu defendo, eu não os amo…]
A música interrompe-se de um momento para o outro... A escuridão oculta uma figura entrada sorrateiramente.
«Mas o que estás a fazer? Quem és tu?» duas mãos o empurram pelo peito.
O ancião tenta levantar-se da banheira, em vão.
«Não dir-vos-ei nada. Podem até…»
Depois lança um olhar rápido aos seus preciosos apontamentos deixados em cima do lavatório, por fim, à luz fraca da vela cheirosa ao gengibre, reconhece o rosto. A partir daí cessou de rebelar-se: «Seja feita a vontade divina».
O homem deixa-se deslizar debaixo da água, e o intruso o detém pelo peito e pela cabeça. Ele está afogando, mas não se desvincula, não abre a boca num gesto desesperado e inútil à procura de ar. Com os olhos abertos repara quem está a dar cabo dele e sorri. Sim, sorri. Inesperadamente a misteriosa figura levanta o homem ainda vivo da banheira e sai do compartimento.
O Magus enxuga-se, veste-se com cuidado. Por último clica novamente o play:
Ho soppesato tutto, valutato ogni cosa,
gli anni a venire parvero uno spreco di fiato, spreco di fiato gli anni del passato,
in bilico con questa vita, questa morte. [sopesei tudo, avaliei cada coisa,
os anos vindouros pareceram um desperdício de folego, desperdício de folego os anos do passado, a balançar com esta vida, esta morte.]
O homem fica com um calafrio quando abre janela que dá no pátio interior. Depois um tombo seco. O sangue espalhe-se na calçada.
Tombado de costas no chão, tem ainda a força para pronunciar uma palavra, uma só:
«Gudrun».