"O poder que não escuta, apodrece em silêncio."
O dia seguinte amanheceu nublado. O céu, espremido entre os arranha-céus de São Paulo, refletia exatamente o que Helena sentia por dentro: confusão abafada.
Ela chegou à empresa às 8h04. Quatro minutos de atraso. E isso já era um indício de que algo nela havia começado a sair do eixo.
Heloísa a aguardava com o tablet em mãos e o semblante hesitante.
— Bom dia, senhora Duarte.
— Me poupe de gentilezas, Heloísa. O que há de urgente?
— O senhor Estevão… convocou uma reunião geral com todos os setores. Agora, às 8h30.
Helena parou de andar.
— E eu não fui avisada?
— Fui instruída por ele a repassar apenas esta manhã. Disse que você seria bem-vinda… se quisesse assistir.
Assistir.
A palavra atingiu como veneno. Ela, que sempre foi o centro de tudo ali dentro, agora era apenas uma convidada — se assim desejasse.
Engoliu em seco e virou os saltos em direção ao auditório. Não seria deixada de fora do próprio império.
O auditório estava cheio. Funcionários de todos os níveis — desde os cargos operacionais até os diretores — ocupavam as cadeiras com uma ansiedade coletiva no ar.
Helena entrou como sempre: ereta, altiva, ignorando olhares. Mas dessa vez, os olhares não a temiam como antes. Havia uma mistura de surpresa, desconfiança e… curiosidade.
Estevão já estava no palco. Camisa social clara, mangas dobradas, microfone de lapela preso discretamente. Sem pompa. Sem segurança. Sem discursos ensaiados.
Ele olhou para ela quando entrou. Apenas um segundo. Depois voltou os olhos para o público.
— Bom dia a todos. Eu sei que minha presença aqui levanta dúvidas. Talvez até preocupações. Por isso, vou direto ao ponto: não estou aqui para derrubar nada, nem para me aproveitar de nada. Estou aqui para cumprir a vontade do homem que fundou essa empresa. E para relembrar que nenhuma empresa cresce às custas de quem sofre calado.
A sala ficou em silêncio.
— Nos próximos dias, serão feitas revisões de contratos, processos internos e, principalmente, da cultura que nos trouxe até aqui — ele continuou. — Muitos de vocês foram calados, ignorados ou reduzidos a números. Isso acabou. Quero portas abertas, escuta ativa e dignidade no trabalho. Quem quiser crescer será apoiado. Quem quiser abusar de poder… não terá mais espaço.
Helena se manteve imóvel, com a mandíbula travada. Mas por dentro… um pequeno abalo sísmico começava.
Ele estava mexendo com a base que ela construiu.
E o mais perigoso: os funcionários estavam ouvindo. Com atenção. Com esperança.
Ao final da reunião, alguns funcionários se aproximaram de Estevão para cumprimentá-lo. Helena observava de longe, enojada com o entusiasmo quase infantil que via nos rostos deles.
Clara, a estagiária que ela havia humilhado dias atrás, se aproximou de Estevão com os olhos brilhando.
— Senhor Estevão… obrigada por nos ouvir. Nunca vi ninguém olhar pra gente assim aqui dentro.
Ele sorriu de forma simples.
— Agora é tempo de mudança, Clara. E toda mudança começa pela escuta.
Helena sentiu algo estranho: ciúme? Inveja? Não sabia nomear. Apenas doía.
Mais tarde, na antiga sala dela — agora de Estevão —, Helena entrou sem bater.
Ele levantou os olhos, sem pressa.
— Não aprendeu a bater na porta ainda?
— E você não aprendeu seu lugar ainda. Isso aqui não é um campo de caridade. Você está destruindo o foco da empresa.
— Foco? — Ele largou a caneta. — Você quer dizer medo. Intimidação. Resultados obtidos à base de sofrimento.
— Resultados que funcionaram! A empresa dobrou de tamanho sob minha gestão. Ganhamos prêmios!
— E perdeu pessoas. Alma. Respeito. Seu pai enxergava isso. Você se perdeu nele. E agora está irritada porque alguém acendeu a luz.
Helena mordeu o lábio inferior com força.
— Você é só um homem simples que acha que pode salvar o mundo com abraços e discursos bonitos.
— E você é só uma mulher ferida que acha que pode controlar tudo tratando os outros como objetos.
A frase ficou entre eles como uma faca invisível.
Ela virou de costas, pronta para sair.
— Não se engane, Estevão. Isso aqui ainda é meu. Eu vou tomar de volta. De um jeito ou de outro.
— Pode tentar — ele disse, com a calma de quem já conhece o desespero alheio. — Mas lembre-se: a única guerra que você nunca venceu… é contra si mesma.
Naquela noite, Helena demorou para dormir.
Sentou-se na beira da cama com um copo de vinho que não desceu pela garganta. Olhou a cidade pela janela e se perguntou por que nada mais parecia suficiente. Nem o poder. Nem o luxo. Nem as conquistas.
Tudo estava ali. Menos ela.
E, pela primeira vez… ela não tinha certeza se sabia quem era.
O poder que não escuta, apodrece em silêncio.
"Se eles servem para algo, é para esquecer depois." – Helena Duarte.
A tarde estava abafada, como se o ar se recusasse a circular — pesado, denso, tão sufocante quanto a raiva que Helena carregava consigo desde a maldita reunião no auditório.
Ela passou os olhos sobre a cidade pela janela de vidro espelhado da sala onde agora era apenas “vice”, e não presidente. Uma palavra que pesava feito pedra na boca. Vice. Como se ela tivesse sido rebaixada a coadjuvante dentro da própria história.
A campainha do celular vibrou. Uma notificação de redes sociais. Helena abriu sem real interesse — apenas um movimento automático — e lá estava ele. Um dos seus antigos “casos”. Um executivo de fintech, vinte e nove anos, abdômen definido, olhos vazios. Havia postado uma foto com uma legenda pretensamente filosófica sobre “conexão real”. Ela revirou os olhos.
— Conexão, meu cu — murmurou.
Helena nunca precisou de conexão. Ela precisava de distração. De controle. De poder em sua forma mais íntima.
Aquele era o ciclo: encontros, corpos, comando. Ela escolhia. Ela usava. Ela dispensava. E nunca, nunca, ligava depois.
Ela aprendeu cedo que emoção era fraqueza. Ainda adolescente, vira sua mãe chorar pelos cantos da casa após ser traída mais uma vez pelo pai. A imagem da mulher destruída, desfigurada pela dependência emocional, ficou gravada em sua memória. Prometeu ali, com doze anos de idade, que jamais seria aquela mulher. Jamais precisaria de ninguém. Nem mesmo de amor.
Os homens, portanto, tornaram-se peças descartáveis num tabuleiro que ela dominava. Cada um servia a um propósito: sexo, status, distração. E quando acabava, ela simplesmente fechava a porta e apagava o nome.
Uma vez, um deles — um jovem advogado da área fiscal — ousou perguntar por que ela nunca respondia suas mensagens depois de uma noite.
Ela respondeu sem piscar:
— Porque você já serviu ao seu propósito. Quer mais o quê? Café da manhã e um abraço?
Ele nunca mais apareceu.
Naquela mesma tarde, ela revisou mentalmente seus últimos “contatos”. Nada a interessava. Tudo tão fácil, tão previsível. Ela piscava, eles vinham. Ela decidia, eles obedeciam. Era bom enquanto era útil.
Mas agora, algo diferente incomodava. Um vazio que nenhum deles preenchia — porque não havia preenchimento, apenas distração temporária.
E pior: havia alguém que não reagia como os outros. Que não se dobrava. Que não a desejava.
Estevão.
O maldito homem simples.
Ele não a olhava como os outros. Não bajulava, não se impressionava, não cobiçava. Isso a enlouquecia. Porque, no fundo, ela sabia o efeito que causava. Sabia o que carregava no corpo, na postura, na presença.
Mas Estevão… era imune.
Ela decidiu testar. Chamar para uma “conversa de reconciliação”. Afinal, podia dizer que queria “apaziguar os conflitos”. Ninguém suspeitaria. Mas por dentro, o plano era simples: sedução.
Vestiu um vestido vinho, justo, com decote suave, que não era vulgar, mas revelava poder. Cabelos soltos, perfume sutil, salto firme.
Marcou no fim do expediente, quando o prédio começava a esvaziar. Uma “conversa em particular”.
Estevão apareceu pontualmente, com a mesma simplicidade irritante: camisa azul clara e calça preta. O blazer dobrado no braço. O olhar direto.
— O que você quer, Helena?
Ela cruzou as pernas devagar, deixando um pequeno silêncio preencher a sala.
— Falar. Como adultos. Podemos?
— Depende do assunto.
Ela inclinou-se ligeiramente, o suficiente para que o decote fizesse seu papel. Ele não desviou o olhar.
— Olha, talvez a gente tenha começado tudo errado. Eu fui… dura. Você também. Mas talvez ainda possamos…
— Você quer algo.
— Quero que a gente encontre uma forma de conviver em paz. Só isso.
Ele ergueu uma sobrancelha. Depois se aproximou da mesa, sem se sentar.
— Você não quer paz, Helena. Você quer domínio. E usa charme como ferramenta.
Ela riu com ironia.
— Está com medo de cair na armadilha?
— Não. Porque eu não desejo você.
A frase foi uma facada. Nua. Crua. Real.
Helena se endireitou. A expressão mudou.
— Não brinque com isso.
— Não estou brincando.
— Então é gay? Ou simplesmente burro?
Ele respirou fundo, sem alterar o tom.
— Não desejo o que não me desperta admiração. E, com todo respeito… hoje, você não desperta.
Silêncio.
Ela se levantou devagar. A face empalideceu um pouco. Mas manteve o controle.
— Saia da minha sala.
Ele obedeceu. Sem alarde. Sem ressentimento. Apenas saiu.
Quando a porta se fechou, Helena caiu na cadeira como se o ar tivesse sumido da sala.
Nunca, nunca, tinha sido rejeitada.
Nem quando estava começando. Nem quando era só assistente. Nem quando ainda não tinha um sobrenome temido. O mundo sempre respondeu ao seu toque com submissão. Mas Estevão… era a exceção.
E a pior parte: aquilo mexia com ela. De verdade. Em algum lugar que ela não sabia nomear, aquilo doía.
No dia seguinte, ela acordou mais cedo que o habitual. Foi até a cozinha, fez café com as próprias mãos — algo que não fazia há anos — e sentou-se com o jornal impresso como fazia seu pai.
O silêncio era opressor.
A lembrança de Estevão a rejeitando a acompanhava como sombra.
Não pela vaidade ferida — embora ela sentisse, sim, orgulho arranhado —, mas porque, pela primeira vez, alguém a olhou sem desejo. E isso a fez sentir… invisível. Humana. Frágil.
Não era sobre homem e mulher. Era sobre alguém que via por dentro — e não gostava do que via.
Ela pegou o celular. Abriu a galeria de fotos. Passou por dezenas de selfies com executivos, festas, viagens, sorrisos forçados. Homens bonitos, fortes, bem vestidos. Todos tão… vazios.
Nenhum deles disse não.
E por isso, nenhum deles importava.
Mais tarde, ao cruzar com Estevão nos corredores, ela o viu rindo com dois funcionários do setor de compras. Um deles contava uma história qualquer e ele ouvia com atenção genuína, como se cada palavra importasse.
Ela parou por alguns segundos, observando de longe.
O que havia nele?
Não era beleza clássica. Nem status. Nem aparência dominante.
Era presença. Verdade.
E, ironicamente, justamente por ele não querer nada dela… ela começou a querer algo dele.
Naquela noite, Helena abriu o armário e tirou de uma caixa trancada uma antiga agenda. Lá, páginas com anotações frias de contatos, encontros, prazos e nomes riscados. Cada homem uma anotação. Um lembrete. Um fim.
“Homens não são nada.”
Era uma frase que havia escrito há seis anos, no topo de uma das páginas.
Ela olhou para aquilo por longos minutos.
E pela primeira vez… não teve certeza se ainda acreditava.