Caio
Já passava do meio-dia quando Lúcia apareceu na varanda da mansão com o semblante tenso. E quando ela vinha com aquele olhar, era porque algo tinha saído do controle.
— Senhor Caio... a menina.
Dei um passo à frente, meu corpo inteiro já em alerta.
— Que menina?
Ela engoliu seco.
— A Isabela. Ela... tentou sair.
A raiva veio como uma onda, quente, subindo do estômago até o peito. Soltei o copo de uísque na mesa com força.
— Tentou ou saiu?
— Ela fugiu pelos fundos. Pegou a chave reserva da lavanderia e desceu pela lateral. Os meninos já foram atrás.
Mas é claro que ela tentou.
Aquela garota era feita de veneno e teimosia. Eu dei escolha. Dei tempo. Mas ela ainda achava que estava lidando com homem comum. Que podia usar desafio como escudo e empatia como arma.
Peguei meu rádio de comunicação e falei com o segurança mais próximo.
— Me escuta, Ramon. Vocês têm dois minutos pra trazer ela de volta. Viva. Sem machucar. Mas se ela sair da área da favela... esquece. Aí eu mesmo vou atrás.
— Positivo, patrão. Já localizamos. Tá correndo pra parte baixa, perto da oficina do Valter.
Corri os dedos pela barba por fazer, sentindo o pulso acelerar. Ela estava correndo. Esforçando-se. Achando que podia atravessar um território onde cada esquina responde a mim.
Ela não sabia...
Até o chão em que pisa tem meu nome cravado.
Quinze minutos depois, o portão da mansão se abriu com força. Os dois seguranças a arrastavam entre si. O cabelo desgrenhado, a camisola suja, as pernas arranhadas. Os olhos… ainda queimando. Ela era puro desafio. Mesmo depois de falhar.
— Solta ela — ordenei, me aproximando. — Agora.
Eles obedeceram. Isabela caiu de joelhos no chão, mas ergueu a cabeça. A respiração descompassada. O peito subindo e descendo com fúria.
— Então é isso? Se eu tentar fugir, me caçam como um animal? — cuspiu.
Me agachei diante dela. Nível dos olhos. Silêncio. Queria que ela sentisse. Que ela entendesse. Que não era uma questão de punição. Era questão de território.
— Você não fugiu de um homem, Isabela. — Minha voz saiu baixa, controlada. — Você fugiu do Rei do morro. Do homem que segura os fios da sua sobrevivência. E agora, quero que me diga...
Segurei o rosto dela com firmeza.
— Onde você pensou que ia se esconder?
Ela tentou se soltar, mas meus dedos não cederam.
— Qualquer lugar é melhor do que aqui!
Meus olhos se estreitaram.
— Errado.
Soltei-a bruscamente. Levantei e tirei a jaqueta, jogando-a na cadeira mais próxima. O sol já batia alto, aquecendo as paredes da mansão como um forno. Meu sangue estava fervendo.
— Ramon, tranca o portão. Ela vai aprender o que significa desafiar o rei.
Isabela se ergueu, cambaleando.
— Vai me bater agora? É isso? Vai me ensinar a obedecer com tapa na cara?
Me aproximei de novo. Um passo por vez. E cada passo meu a fazia recuar até colidir com a parede da varanda.
— Eu não bato em mulher. — Encostei a mão na parede, ao lado da cabeça dela. — Mas posso quebrar você sem encostar um dedo.
— Você já me quebrou, Caio. Quando me trouxe pra cá, quando aceitou que eu virasse pagamento!
— Você ainda tá inteira. — Meus olhos mergulharam nos dela. — Mas não por muito tempo, se continuar me provocando.
Ela respirou fundo. O peito arfando. A raiva começava a se misturar com outra coisa. Confusão. Medo. Desejo. Aquela dança suja que eu conhecia bem. Que nascia do caos e virava obsessão.
— O que você quer de mim, afinal?
— Tudo. — Falei sem hesitar. — Sua boca. Seu corpo. Sua alma. Seu silêncio quando eu precisar. Sua presença quando eu mandar. E sua rendição... por vontade ou por exaustão.
Ela mordeu o lábio inferior, apertando as mãos contra o corpo.
— Você é um doente.
Sorri.
— Não. Eu sou resultado. Do que fizeram comigo. Do que fizeram com esse morro. Do que o mundo espera que um homem como eu seja. E você... foi jogada nesse mundo. Agora tem duas opções: afundar sozinha... ou se agarrar ao monstro que pode te manter viva.
Ela me empurrou, com as últimas forças.
— Eu nunca vou me agarrar em você.
— Vai. — Segurei o pulso dela com força, mas sem machucar. — No dia que perceber que ninguém vai te proteger lá fora. E que aqui, comigo... você pode pelo menos respirar.
***
Mandei Lúcia preparar um banho pra ela. Não queria vê-la naquela condição miserável. Não ainda. Mas deixei claro: nada de conforto. Nada de mimo. Ela desceria do salto por vontade ou por ruína.
Passei o resto da tarde na parte de baixo, na sala de reunião com os homens do morro. Discussões sobre rotas de transporte, armas, ameaças de milícia. Mas minha mente... minha mente não saía dela.
Isabela era uma pedra no meu sapato. Um fogo que eu não sabia se queria apagar ou atiçar até queimar.
Quando a noite chegou, pedi pra que ela fosse chamada. Não no quarto. Aqui embaixo. Na sala vermelha.
Lugar de obediência.
***
Ela entrou com os olhos mais calmos, mas o corpo ainda em guerra. Usava agora um vestido simples, preto, sem decote. Cabelo preso. Pele ainda marcada pelos arranhões da fuga.
— Achei que viria me amarrar — disse ela, sentando à minha frente.
— Se eu quisesse você amarrada, já estaria — retruquei. — Mas prefiro ver até onde vai sua resistência.
Ela me encarou.
— Você quer me moldar, né?
— Não. Quero que quebre sozinha. É mais bonito assim.
Ela desviou o olhar.
— Por que eu? — perguntou, de repente. — Por que não pegou qualquer uma das meninas que te bajulam nesse lugar?
Me aproximei.
— Porque nenhuma delas me desafia. Nenhuma me olha com ódio e me faz querer conquistar. Você me provoca, Isabela. E isso me move.
— E se eu nunca ceder?
— Então vou assistir você se despedaçar aos poucos... até implorar pra eu juntar os cacos.
Ela suspirou. Pela primeira vez, sem resposta. Pela primeira vez... vulnerável.
— Você tem ideia do que está fazendo comigo?
— Tenho. — Estendi a mão e toquei o rosto dela, com a ponta dos dedos. — E vou continuar fazendo. Porque agora você é minha. E eu... nunca divido o que me pertence.
Ela não recuou dessa vez. Ficou ali, parada, sentindo meu toque. O olhar ainda em guerra, mas o corpo... o corpo começava a trair a mente.
— Se for pra viver como escrava, eu prefiro morrer — sussurrou.
Inclinei a cabeça.
— Isso não é escravidão. Isso é adaptação. Você vai descobrir que há liberdade no caos... quando se aprende a controlá-lo.
Me afastei, observando cada expressão dela como quem analisa uma obra de arte viva. A forma como sua raiva se misturava ao medo, e o medo ao fascínio. Não era só eu quem estava sendo perigoso naquele jogo. Ela também era.
Mas o que ela ainda não percebia era que... nesse jogo, eu já tinha vencido.
— Você vai dormir no quarto de cima hoje. Sozinha. Pela última vez.
Ela arregalou os olhos.
— O quê?
— Amanhã, quero você no meu quarto. À noite.
— Você não pode…
— Eu posso tudo. — Interrompi. — Mas, como sempre, vai ter uma escolha. Se não quiser ir, tudo bem. Mas o preço... vai ser outro.
Ela se levantou, furiosa.
— Você é doente! Controlador, manipulador... um sádico!
— E você é teimosa. Inconsequente. Mas não burra. Por isso vai aparecer. Porque no fundo... você já tá começando a entender que não tem mais pra onde correr.
Ela me lançou um olhar de ódio puro. Mas por trás... eu vi. Vi o que sempre sei reconhecer.
Dúvida.
Depois que ela saiu da sala, acendi um cigarro. A fumaça subindo no teto como se carregasse meus pensamentos com ela. Algo em mim sabia que esse jogo ia além do físico. Era mental. Psicológico. Espiritual até.
Isabela era diferente de todas.
Ela não implorava. Não chorava aos meus pés. E, por isso mesmo, me deixava faminto.
A madrugada chegou como um manto. Um dos meus homens me avisou que estava tudo em paz nas bocas. Nenhuma movimentação estranha. A rua do Santo estava controlada, e os vizinhos da milícia ainda recuados. Mas minha mente não estava nas armas. Estava nela.
Na mulher que eu não escolhi… mas que o destino colocou na minha mesa como dívida. Como castigo. Como prazer.
***
Perto das três da manhã, fui até o andar de cima. Não sei por quê. Curiosidade. Desejo. Controle. Talvez tudo isso misturado.
Abri a porta devagar.
Ela estava dormindo.
Encolhida de lado, com os braços protegendo o corpo. O rosto ainda com traços de tensão. Mesmo em sonho, ela não descansava. Carregava o medo no peito como uma cicatriz invisível.
Me aproximei devagar. Sentei na beirada da cama. Toquei os cabelos dela com a ponta dos dedos.
Ela se mexeu, mas não acordou.
— Um dia você vai me agradecer por não ter desistido de te dominar — sussurrei.
Me levantei e fui embora.
Não a toquei.
Ainda não.
Porque quando o dia amanhecer… ela vai ter que escolher.
Ou aceita o destino que o morro escreveu pra ela.
Ou luta contra mim...
E descobre o preço real de desafiar o Rei.