Caio
Acordei antes do nascer do sol. Faz tempo que não durmo direito. Quando você comanda tudo, não tem descanso. Um deslize e alguém crava uma faca nas suas costas.
Me levantei, fui até a janela do meu quarto e olhei pro morro. Ainda escuro, silencioso, mas eu sabia... a qualquer hora, alguém ia sangrar por querer meu lugar. Isso é regra. E pra continuar no topo, eu preciso lembrar a todos quem manda.
Inclusive ela.
Isabela.
A menina dos olhos grandes, da boca insolente e da coragem suicida. Quando ela entrou pela primeira vez na minha sala, percebi na hora: não era só mais uma. Tinha fogo naquela garota. E eu sempre fui atraído pelo que tenta fugir de mim. Porque no fim… ninguém escapa.
Ela passou a noite em silêncio. Lúcia me disse que não comeu. Que chorou. Que tremeu. Tudo esperado. Mas o olhar... o olhar ainda era de desafio. Ela não entendeu.
Não é sobre o corpo, é sobre o controle.
Me vesti e desci os andares da mansão com calma. As luzes ainda apagadas. A favela começava a acordar, com o som de motores e vozes ecoando entre as casas apertadas. Mas aqui dentro, era outro mundo. Um mundo onde só eu ditava as regras.
Bati na porta do quarto dela, mas não esperei resposta. Entrei.
Ela estava sentada na beirada da cama, com a mesma camisola branca que mandei deixar. O tecido marcava as curvas de um jeito que nenhum vestido ousaria. E mesmo assim, ela tentou cruzar os braços, como se ainda tivesse alguma proteção.
— Entrar sem bater é mais uma das suas especialidades? — ela disparou, sem ao menos me encarar.
Sorri.
— Isso aqui é meu, lembra? O quarto. A cama. Você.
Ela arregalou os olhos e se levantou de súbito.
— Eu não sou sua. Nem agora, nem nunca.
Dei dois passos e fechei a porta atrás de mim. Não com pressa, mas com firmeza. Queria que ela ouvisse o som da tranca. Queria que ela soubesse que agora... era só eu e ela.
— Você tá aqui por causa do seu pai. Ele fez uma escolha. E eu aceitei a moeda de troca.
— Isso não é moeda. Isso é tráfico humano — ela cuspiu as palavras, com o queixo erguido.
Me aproximei, devagar. Cada centímetro reduzido entre nós era um teste. Ela não recuou. Ainda.
— Eu não toco em mulher à força, Isabela. Mas também não costumo perdoar afronta. Você não é uma prisioneira, mas também não é livre. Entende isso?
Ela engoliu seco. Finalmente, os olhos vacilaram.
— E se eu continuar recusando tudo? Até seu olhar?
— Então eu vou quebrar você aos poucos — sussurrei. — Não com dor. Com tempo. Com controle. Com silêncio. E um dia, você vai se olhar no espelho e não vai mais lembrar da mulher que acreditava que podia me desafiar.
Ela balançou a cabeça, os olhos brilhando de raiva e medo.
— Você é um monstro.
— Sou. — Assenti, encarando-a. — Mas sou um monstro honesto. Eu não finjo ser o príncipe. Eu sou o dragão. E você... foi deixada como oferenda.
O silêncio entre nós foi um campo de batalha.
Ela respirava com dificuldade, mas não chorava. Admirável. Tinha força. Tinha alma. Eu gostava disso.
Estendi a mão, tocando o queixo dela com a ponta dos dedos.
— Você tem duas escolhas. Resistir e sofrer. Ou obedecer... e encontrar paz aqui dentro.
Ela virou o rosto.
Não falei mais nada. Apenas sorri de canto e me afastei.
Antes de sair, me virei uma última vez.
— O café da manhã será servido em vinte minutos. Se você descer, é um sinal. Se não... eu subo de novo. E da próxima vez, não vou só conversar.
Fechei a porta devagar, com o mesmo som metálico da tranca ecoando. Enquanto caminhava pelo corredor, minha mente ainda pulsava.
Ela ainda não entendeu.
Mas vai entender.
Porque no meu mundo… até o que é fogo aprende a se curvar.