LOBO
O instinto é a primeira língua de um soldado. E o meu estava gritando.
Tinha olhos em mim.
Não os olhos desinteressados dos outros vapô, mas um par específico, persistente, que me acompanhava como uma sombra grudenta. Eram dois: um magricela com boné que eu já tinha visto com o Jacaré, e um mais parrudo, com uma tatuagem de cobra no pescoço. Eles se alternavam, tentando disfarçar, mas a rotina deles agora girava em torno da minha.
Eu já sabia.
Tinha ouvido a conversa na varanda, os fragmentos que ecoaram até onde eu estava de guarda. A voz do Tito, carregada de um ciúme doentio e daquela paranoia violenta que é tão característica dele.
"Fica de olho nele. Dobrado."
A sentença tinha sido proferida.
Agora, eu não era apenas um infiltrado; era um alvo sob vigilância.
A primeira reação foi uma fúria fria.
O desejo primitivo de virar, encarar o magricela que estava fingindo amarrar o tênis pela terceira vez na mesma hora, e quebrar o pescoço dele ali mesmo. Mas a disciplina, aquele mantra de aço que mantém um sniper vivo, falou mais alto.
A mira precisa de calma, Bernardo.
Respirei fundo. E então, ao invés de lutar contra a vigilância, decidi a usar.
Reforcei o disfarce.
Tornei-me ainda mais "Lobo".
Cumprimentava os homens com um aceno mais desleixado, soltava uma gíria ocasional, fingia interesse nas conversas bestas sobre futebol e mulheres. Meu comportamento mudou levemente; eu me forçava a parecer um pouco mais relaxado, um pouco mais integrado. Não podia parecer um robô, nem um cara nervoso. Tinha que ser um homem qualquer, um segurança fazendo seu trampo.
E, ao mesmo tempo, comecei a usar os meus novos "companheiros" a meu favor. Se eu ia dar uma volta pelo morro para mapear os pontos cegos, os acessos, os esconderijos possíveis, eu ia. E levava meus seguidores junto. Eles pensavam que estavam me vigiando, mas na verdade eram minha escolta involuntária, me dando uma razão plausível para estar em lugares onde um segurança comum talvez não fosse. Observava tudo com um olhar ainda mais aguçado, catalogando cada detalhe, cada rosto, cada movimento. O território ao meu redor estava se tornando uma extensão da minha mente, um mapa tridimensional de perigo e oportunidade.
Mas havia uma variável que nenhum treinamento militar poderia ter me preparado. Soraia.
Ela era uma fissura no meu controle, uma rachadura por onde a loucura entrava. E eu me irritava profundamente com essa fraqueza. Era uma vulnerabilidade tática, um ponto cego emocional que poderia custar tudo.
E, no entanto, não conseguia expulsar ela da minha mente.
À noite, deitado na cama dura do quarto dos empregados, o silêncio era um convite para os demônios. E a imagem que vinha, nítida e proibida, era a dela. A beleza dela, que era de um tipo raro, uma combinação de força e fragilidade que me atraía como um ímã. E o corpo... meu Deus, o corpo dela. A memória daquela noite no banheiro invadia minha mente sem permissão. A visão dela nua, as curvas perfeitas, a pele macia marcada pelos hematomas roxos que eu tentara limpar. Os s***s firmes, a cintura fina, o quadril generoso. Uma mulher tão perfeita, tão viva, presa àquele monstro violento, sendo quebrada todos os dias.
E então, do fundo mais obscuro e confuso da minha mente, surgiu um pensamento, não como um convite, mas como um pesadelo em forma de pergunta:
"Será que ela iria embora comigo e minha família quando eu encontrar a minha esposa?"
A pergunta ecoou na escuridão, obscena e traidora. Eu me sentei na cama de um salto, como se tivesse sido tocado por um choque.
— Droga, Bernardo. — sussurrei para o quarto vazio, a voz áspera de raiva e nojo. — O que você faria com isso? Iria ficar com as duas?
Me repreendi imediatamente, esfregando o rosto com as mãos, tentando apagar a imagem que o pensamento havia conjurado: Soraia em meus braços, não como uma patroa, mas como uma mulher. Seu corpo contra o meu, sua boca...
Não.
Era uma traição.
Uma loucura.
— Estou perdendo a sanidade. — declarei para mim mesmo, o som das palavras um lembrete frágil da minha realidade. — Amo a minha mulher e não quero nenhuma outra.
Mas a verdade, nua e crua como a lâmina de uma faca, era que Soraia não saía do meu pensamento o dia inteiro. E cada vez que eu a via, a conexão entre nós – forjada no sofrimento compartilhado, na cumplicidade silenciosa, na atração proibida – aumentava drasticamente.
Era nos pequenos momentos.
O modo como nossos olhos se encontravam por uma fração de segundo a mais do que deveriam. O jeito que ela baixava o olhar quando eu me aproximava, não por medo, mas por uma timidez que era nova. A maneira como ela confiava em mim com o menino que ela nem imagina ser meu filho, com seus segredos, com seus ferimentos.
Era uma armadilha.
Uma armadilha perigosíssima.
Eu estava no território inimigo, com a vida da minha família em jogo, e meu maior adversário não era o Tito ou seus capangas. Era o meu próprio coração, confuso e faminto por um conforto que ele não podia ter.
A missão era Joana.
Encontrar Joana.
Salvar Miguel.
Essa era a única verdade.
Todo o resto – incluindo os olhos tristes e a beleza devastadora de Soraia – era ruído. Era um desvio que poderia levar todos nós à morte.
Mas, deitando novamente e encarando o teto escuro, eu sabia que não era tão simples. Você não pode desligar a humanidade como desliga uma luz. E a Soraia, com toda a sua dor e sua força, havia se tornado um farol de humanidade nesse lugar desumano. E eu, Bernardo Lobo, o sniper de coração frio, estava me encontrando perigosamente atraído por essa luz, mesmo sabendo que ela poderia me cegar e me fazer tropeçar direto no abismo.
Amanhã seria outro dia de vigília, de disfarces, de evitar os olhos dos meus seguidores e os olhos dela. Mas no fundo, a batalha mais difícil já estava sendo travada, silenciosamente, dentro de mim. E eu não tinha certeza de quem estava ganhando.