A Consulta

1128 Words
Soraia O coração parou. O teste lá no chão, entre meus pés e os dele. Aquele silêncio pesado, que durou uma eternidade, enquanto o cérebro do Tito processava o que estava vendo. Eu me congelei, a respiração presa, esperando o grito, a violência, o fim de tudo. Ele se abaixou, devagar, e pegou o teste. Ficou olhando para aquele bastãozinho de plástico, com a carranca mais fechada que eu já vi. — O que é isso? — a voz dele saiu baixa, mas carregada de um perigo que fez meus pelos se arrepiarem. A mentira veio na hora, instintiva, um ato de sobrevivência pura. Eu me abaixei também, num movimento rápido, e peguei o teste da mão dele, guardando no bolso como se fosse a coisa mais normal do mundo. — É um termômetro novo, Tito. Digital. Como eu tenho me sentido tão m*l, com tanta tontura, achei melhor ter um aqui em casa pra medir a temperatura. Deve ter caído do bolso — falei, tentando manter a voz o mais estável possível, evitando o olhar dele. Ele ficou me encarando por um tempo que não acabava mais. Eu conseguia ver os pensamentos passando atrás daqueles olhos escuros, desconfiados. Será que ele ia acreditar? Será que ele sabia o que era um teste de gravidez? Minha vida inteira dependia dessa resposta. Por um milagre, ou talvez porque ele realmente não fazia ideia de como era um teste de gravidez, a expressão dele mudou um pouco. A tensão não foi embora, mas a carranca amenizou. — Tá mesmo precisando ir no médico, então. Tá com uma cara de doente — ele resmungou, virando as costas e indo em direção à porta. O alívio foi tão grande que minhas pernas quase falharam. Eu me segurei na parede, respirando fundo, tentando me recompor. Aproveitei a deixa. — É... acho que preciso mesmo, Tito. Um check-up, só pra ver se não é nada sério — sugeri, tentando soar o mais natural possível. Ele parou, pensou um pouco, com aquele jeito desconfiado que nunca some totalmente. — Tá. Pode ir. Mas o Lobo vai levar você. E vai ficar te esperando. Não quero você dando volta sozinha por aí — ele decretou, e eu sabia que não era uma sugestão. Era uma ordem. E uma forma de vigilância e teste. Na hora, meu estômago embrulhou de novo. O Lobo. Ia ter que encarar o Lobo. Aquele silêncio pesado, a distância que ele criou, a culpa, a confusão... e agora, com essa possibilidade rolando na minha cabeça, ia ser uma tortura. Algumas horas depois, lá estava eu, entrando no carro com o Lobo. Ele abriu a porta, eu sentei, e ele fechou. Nem olhou na minha cara. O clima dentro daquele carro era mais gelado que freezer. Ele ligou o motor e saiu, os olhos fixos na estrada, a mandíbula tensionada. Parecia um robô. Um robô cheio de ódio e dor por dentro. Eu olhei pra ele, tentando captar algum sinal, qualquer coisa. Mas nada. Ele estava fechado. Completamente. E eu não podia falar nada. Não com ele ali, do meu lado, com a possibilidade de estar carregando o filho dele... ou do homem que ele mais odeia no mundo. Ele estacionou na frente do consultório e ficou no carro, como ordenado. — Eu espero aqui — foi tudo que ele disse, a voz impassível. Entrei no consultório com as pernas tremendo. A enfermeira me chamou, o médico veio, eu expliquei os sintomas, a tontura, o enjoo. Ele pediu um ultrassom transvaginal. Deitei naquela maca, com o gel frio na barriga, o meu coração batendo tão forte que eu tinha certeza que dava pra ver na tela. O médico introduziu o transducer, olhando para a tela. O silêncio na sala era absoluto, só o barulho da máquina. E então, ele apontou. — Olha só — ele disse, com um sorriso profissional. — Tá vendo? O seu bebê. Tudo certinho, se formando direitinho. Tá com... — ele mediu alguma coisa — oito semanas. O mundo desabou. Não foi um desabamento barulhento, foi silencioso. Foi como se todas as cores sumissem e tudo virasse preto e branco. Eu olhei para a tela, para aquele pontinho minúsculo, aquele ser que estava crescendo dentro de mim. E a única coisa que veio na minha cabeça foi um turbilhão de perguntas sem resposta, um pânico tão profundo que nem as lágrimas vinham. — Tá... tá tudo bem com ele? — consegui engolir em seco, a voz um fio. — Tudo ótimo. Batimentos cardíacos fortes, tamanho correto para a idade gestacional. Só tomar os cuidados de sempre, vitaminas... — o médico continuou falando, mas eu já não ouvia mais. Oito semanas. Oito semanas. Eu fiz as contas na cabeça, desesperada. Oito semanas atrás... era a época em que o Tito me forçava quase todo dia, naquela fase possessiva e violenta dele. E também... também era a época da minha noite com o Lobo. Aquela noite intensa, proibida, cheia de desejo e desespero. Meu Deus. O bebê é do Lobo? Ou é do Tito? A dúvida era uma faca torcendo nas minhas entranhas. Como saber? Não tem como saber. Até nascer, talvez nunca tenha como saber, sem um exame de DNA. Saí do consultório com as pernas bambas, a mão instintivamente indo para o ventre ainda plano. O Lobo ainda estava no carro, imóvel, olhando para o nada. Ele me viu sair, e nosso olhar se encontrou por uma fração de segundo. Eu devo ter parecido um fantasma, pálida, assustada. Ele deve ter visto o desespero nos meus olhos, porque por um instante, a frieza dele pareceu rachar. Um breve piscar de curiosidade, talvez preocupação. Mas então, ele desviou o olhar, endurecendo de novo. Abri a porta do carro e sentei. Ele não perguntou nada. Só ligou o carro e começou a dirigir de volta. E eu, aqui, olhando pela janela, com a confirmação de uma vida dentro de mim e a dúvida mais aterrorizante do mundo na cabeça. Como é que eu vou contar pra ele? Como é que eu vou viver com isso? E se for do Tito... meu Deus, o que esse monstro vai fazer quando descobrir? E se for do Lobo... ele vai querer? Vai me olhar com nojo? Vai me ver como uma lembrança da traição que a gente cometeu enquanto a mulher dele tá desaparecida? O mundo desabou, e eu tô soterrada nos escombros, sem saber pra que lado cavar. Não. Eu não quero viver assim, se esse bebê for do Lobo ele vai me ajudar, vai me tirar desse inferno e por mais que ele encontre a esposa, ele cuidaria do filho, sem dúvidas. — Para o carro! — foi o que consegui dizer. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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